Sobrevivente ao tempo, cerâmica elucida hábitos cotidianos do período colonial em Salvador. Trabalho arqueológico faz parte de uma tese de doutorado orientada pelo arqueólogo Carlos Alberto Etchevarne (UFBA).
POR EDVAN LESSA*
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Podem – se reconhecer os homens através de suas fábricas. A frase do filósofo tcheco Vilém Flusser (1920-1991) ganha sentido ao vincular a existência humana ao uso da técnica, ou seja, a forma pela qual fabricamos. Um exemplo dessa capacidade de produzir pode ser constatado na atividade ceramista, que existe há milênios, desde que foi possível submeter material sólido inorgânico, não metálico, a altas temperaturas. Sobrevivente ao tempo, a cerâmica se tornou, assim, uma ponte entre arqueólogos, povos e culturas de outras épocas.
“As cerâmicas são materiais resistentes ao tempo. Ademais, muitas sociedades as produzem e as consomem permanentemente. Não nos damos conta, mas vivemos em um mundo cheio de materiais cerâmicos”, sublinha Carlos Etchevarne, arqueólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que retoma o projeto sobre a produção cerâmica na Salvador colonial. Esse projeto está vinculado a uma tese de doutorado, que analisa uma residência do Pelourinho, no Centro Histórico da cidade, na segunda metade do século XIX.
No primeiro andar da biblioteca de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, a sala de Etchevarne acolhe fragmentos de faianças (material cerâmico menos resistente do que a porcelana) portuguesas, faiança inglesa, porcelanas chinesas, etc, vestígios da vida cotidiana de famílias com certo poder aquisitivo, que datam a partir do final do século XVI. As peças, provavelmente descartadas já em pedaços, ajudam a entender hábitos do período colonial (quando as terras brasileiras foram colonizadas por portugueses), a exemplo dos alimentos que a população consumia.
A convivência com a cerâmica
Constata-se que os objetos cerâmicos mediavam as atividades corriqueiras da sociedade colonial. Recipientes para colocar água benzida, pratos, travessas, malgas (espécie de xícara grande), “alvarelos” (cilindros utilizados para guardar medicamentos). Os artefatos serviam para acondicionar alimentos, conter líquidos e acolher substâncias com finalidades farmacêuticas. Na construção de moradias, por exemplo, eram empregadas às telhas, tijolos e lajotas (placas usadas como piso).
A necessidade dos produtos cerâmicos no dia-a-dia dos colonos tornou o fazer ceramista um ofício. Segundo Etchevarne, era imperativo formar pessoas nessa atividade para que reproduzissem artefatos, conforme o exigia o governo. “Vamos supor, um cântaro que tinha que ter dois litros, quando o reproduziam, deveria comportar a mesma quantidade, os exatos dois litros”, especifica. O pesquisador também comenta que fiscais supervisionavam a produção dos ceramistas, e que, nem todas as pessoas desempenhavam tal papel. “Eram os mestres com muita experiência que podiam atuar na legalidade e que tinham a função de ensinar aos aprendizes”.
Uma circulação nem sempre declarada
Objetos cerâmicos produzidos na Europa, em países como Portugal, Itália, Espanha, e trazidos ao Brasil – na rota de comércio dos portugueses, eram introduzidos de maneira muitas vezes não declarada, de acordo com o arqueólogo da UFBA. Boa parte das peças, tipo faiança portuguesa, possuía semelhança estética com os utensílios do oriente.
Portugal sempre comprou muitas peças de porcelana da China. Elas eram bastante valorizadas em todo o mundo e, por isso, tomadas como modelos estéticos. Com o tempo, foram adaptadas ao gosto europeu. “Inicialmente são objetos que tem motivos gráficos chineses. Depois essa produção portuguesa foi adquirindo elementos de outras regiões da Europa, como por exemplo, da Espanha e Itália, com rostos e bustos nos fundos dos pratos, xícaras e sopeiras”, explica Etchevarne
“As faianças portuguesas, especialmente as do século XVII, eram produzidas em três grandes regiões de Portugal: Lisboa, Coimbra e Porto”, elucida o professor. “Elas se diferenciam de outras produções porque tem o fundo branco e são pintadas de azul”. Ainda de acordo com Carlos Etchevarne, todo século de XVII foi influenciado por esse estilo decorativo. Mais precisamente, por artefatos banhados com óxido de estanho (composto metálico utilizado na indústria cerâmica) e de chumbo para dar a base branca do fundo sobre o qual e se pintava com azul de cobalto. Linhas na cor roxa também eram comuns nos artefatos.
Etchervane avança, agora para a cerâmica do século XIX, de quando o país se aproximava do fim do Império e entra na era republicana. “Ainda falta bastante pesquisa para preencher o quadro de referência para esse período na Bahia”, pondera o professor, confiante de que em breve teremos significativas descobertas.
*Edvan Lessa é estudante de Comunicação-Jornalismo da Facom-UFBA e bolsista da Agência de Notícias Ciência e Cultura.