Adotadas pelas comunidades carentes do semiárido brasileiro, as cisternas de placas têm se notabilizado pelo seu caráter democrático enquanto política pública. Confira na primeira reportagem da nossa série especial.
POR RAIMUNDO SANTANA*
Quando se fala do lugar de produção da ciência, tecnologia e inovação (CT&I), de imediato nos vêm à mente ambientes sofisticados geridos por introspectivas e pessoas aparentemente excêntricas. Exceto como objeto de estudo, as pessoas externas a esse meio científico encontram dificuldade para entrar de imediato nesse mundo. A linguagem e os códigos soam incompreensíveis ao senso comum. Tudo isso lastreado por um modo de pensar bem específico: a CT&I, além de neutra e instrumental, irá determinar necessariamente o progresso da humanidade de forma inexorável. Ledo engano.
É que na contramão desse pensamento, as Tecnologias Sociais (TS) – adotadas por parte das comunidades carentes no semiárido do Brasil, com seus arranjos, tecnoprodutivos – vêm mostrando na prática da lida diária que o modelo vigente hegemônico, de compreender e executar as políticas públicas de CT&I deve e pode ser questionado, e mesmo redefinido.
As TS podem ser entendidas, por exemplo, na coleta e armazenamento eficientes das escassas águas de chuvas. Além disso, são aplicadas na simples construção de bombas de PVC que fazem a sucção das águas das cisternas; na instalação de canteiros com verduras e hortaliças orgânicas ou na manipulação da terra, de modo a evitar os abusos de agrotóxicos que têm trazido tantos problemas ao meio ambiente.
+SOBRE CISTERNAS
Dosagem adequada de materiais permite aperfeiçoar cisternas do semiárido
Diferentemente do modelo que pensa o Nordeste a partir do viés do atraso, do entrave ao desenvolvimento econômico nacional e da miséria, a convivência com o semiárido é um conceito relativamente novo, estruturado particularmente por mais de 700 organizações da sociedade civil e não governamentais (ONGs), todas articuladas em rede por intermédio da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). O semiárido brasileiro abrange 11 estados, sendo 9 no NE e mais Minas Gerais, ocupa uma área de 974.725 Km² onde vivem 24 milhões de pessoas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No âmbito baiano, uma dessas entidades é o Centro de Assessoria Assuruá (CAA), fundada em 1990, cuja atuação acontece nos municípios de Barro Alto, Brotas de Macaúbas, Gentio do Ouro, Irecê, Oliveira dos Brejinhos e São Gabriel. Suas ações estão direcionadas para melhoria das condições de vida de comunidades sertanejas por meio do fortalecimento da cidadania e da construção do desenvolvimento sustentável. Nos limites da Bahia, que ocupa 36% da região Nordeste, 66% de seu território se caracteriza como semiárido, o equivalente a 43% de todo o semiárido do Nordeste. De acordo com levantamento de 2010 do IBGE, a população baiana está estimada em 13.633.969 pessoas.
No Encontro Microrregional de Avaliação do Projeto Cisternas II: Água para Consumo Humano e Produção, ocorrido entre os dias 12 e 13 março de 2012, no campus da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) em Irecê, dirigentes da CAA apresentaram os seguintes números: as cisternas de placas para consumo humano já chegaram a 208 comunidades rurais. No período entre agosto de 2010 e março do ano passado foram construídas 2.225 cisternas e 660 canteiros com verduras e hortaliças orgânicas que servem, inclusive, para alimentação escolar; 200 pedreiras e pedreiros das comunidades foram mobilizados.
A Bahia possui 417 municípios e, de acordo com Casa Civil do Estado da Bahia, 234 decretaram “estado de emergência” em maio passado, enquanto o Governo do Estado havia reconhecido e homologado oficialmente 220. Em março deste ano, localidades de 214 municípios estão na mesma situação. O Governo Federal divulgou que Há mais de 10 milhões de pessoas afetadas pela seca nos estados nordestinos e na região setentrional de Minas Gerais.
O reconhecimento do “estado de emergência” permite ao município que o decreta, por exemplo, a contratação em caráter emergencial de água através de carros-pipas e de alimentos (cestas básicas), prioridade negociação de crédito agrícola. Além disso, com esse tipo de decreto é diminuída a burocracia, o que facilita tomada de ações oficiais por parte dos prefeitos: a construção de sistemas simplificados de captação hídrica, perfuração de poços artesianos e recuperação barragens e açudes e sem realizar licitações. Do ponto de vista legal, a iniciativa é válida por seis meses.
“Indústria da Seca”
Tanto a ASA quanto a sua afiliada CAA são organizações que têm uma plataforma cognitiva, um modo de pensar a CT&I, que se opõe ao histórico modelo da chamada “indústria da seca”, formulado e implantado como política oficial do Estado brasileiro. E mais que isso: essa bem-sucedida convivência com o semiárido se impôs fortemente na agenda do Governo Federal a partir da gestão Lula, está presente no governo Dilma, apesar dos percalços.
Amparada em tecnologias sociais, as cisternas de placas têm se notabilizado pelo seu caráter democrático com forte participação e constante mobilização popular enquanto política pública. “Somos organizações sociais que partem do paradigma, segundo o qual o acesso à água é um direito humano básico que necessita ser urgentemente efetivado para toda a população, em especial aquela do semiárido. Temos a missão de fortalecer a sociedade civil na construção de processos participativos para o desenvolvimento sustentável e a convivência com o Semiárido referenciados em valores culturais e de justiça social”, esclarece o coordenador pedagógico da CAA, Cláudio Santos Rodrigues.
O grande referencial – as cisternas – que fundamenta a proposta de convivência com o semiárido diz respeito ao manejo, armazenamento e conservação da água proveniente das escassas chuvas que caem na região. Aliado a essa estratégia voltada a diferentes dimensões do desenvolvimento humano, comunidades pobres incorporam práticas comprometidas com a preservação ambiental e orientadas ao cultivo de uma agricultura livre dos agrotóxicos.
A rede construída a partir da consolidação da ASA congrega cerca de 750 organizações da sociedade civil que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas de convivência com a região. Conforme declarou a entidade, já são mais de dois milhões de pessoas beneficiadas em 1.076 municípios numa mobilização da qual fizeram parte 12 mil pedreiros e pedreiras.
Modalidade de armazenamento em forma cônica, coberta e semienterrada, as cisternas de placas aproveitam o escoamento de água de chuva a partir dos telhados das casas, sendo a captação feita por tubos de PVC (policloreto de polivinila). Este artefato tecnológico, cuja composição traz argamassa, cimento, areia, ferro e uma mão de obra local em forma de mutirão, torna possível o acondicionamento do líquido para consumo humano em reservatório protegido da evaporação e das contaminações causadas por animais e sujeiras trazidas pelas chuvas. O tamanho do reservatório varia de acordo com o número de pessoas da casa e do tamanho do telhado. E a experiência tem provado que ela pode garantir água potável para a família beber e cozinhar durante oito meses.
A construção desses equipamentos ganhou maior visibilidade a partir de 2003 quando personagens como Frei Beto e Oded Grajew, então conselheiros do presidente Lula, intermediaram a proposta da ASA no interior do governo que começara naquele ano. A partir daquele movimento, o equipamento passou a ser mais um item da Política de Inclusão Social abrigada no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A sua materialização é o Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas, o P1MC. Uma tarefa, diga-se de passagem, ousadíssima.
Contudo, embora a estratégia das cisternas tenha sido acolhida no interior do Governo Federal através do MDS, a tecnologia está longe de ser unânime entre os operadores e formuladores das Políticas Públicas de Inclusão Social (PIS) e da Política Científica e Tecnológica (PCT). Exemplo ilustrativo dessa falta de unanimidade, ou “visão diferenciada”, pôde ser constatado em dezembro de 2011 quando o governo tornou público que iria fazer mudança a partir dos arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria, ampliando assim os convênios com os estados e de forma indireta tencionando o afastamento dessas organizações não governamentais do processo.
* Raimundo Santana é jornalista e especialista em Jornalismo Científico e Tecnológico.