Em 1849, quando a Faculdade de Medicina da Bahia passou a aceitar mulheres e em 1887 formou a primeira médica, a gaúcha Rita Lobato Freitas, que teve coragem de enfrentar a resistência e o machismo.
POR CLÁUDIO ANTÔNIO DE FREITAS BANDEIRA*
A Faculdade do Terreiro guarda muitas raridades, como o registro de 1849, quando a instituição passou a aceitar alunas. A primeira a ter coragem de enfrentar a resistência masculina foi a gaúcha Rita Lobato Freitas, nascida em 1866. Foi uma luta árdua para vencer o preconceito e lograr o diploma do curso. Com determinação, Rita conseguiu se formar em apenas quatro anos em um curso que durava seis. Seu pai a acompanhava todos os dias à faculdade do Terreiro, ficando sentado em frente à praça, aguardando o fim das aulas. Foi assim até se formar em 10 de dezembro de 1887.
Uma justa homenagem à médica pioneira se deu através de despacho do professor José Tavares-Neto, então diretor da Faculdade de Medicina da UFBA, ao encaminhar proposta que a reitora da UFBA, Dora Leal Rosa, apresentou oralmente, após participar da reunião da Congregação da faculdade, no dia 5 de Outubro de 2010, de que o atual prédio da FMB/UFBA no Campus do Canela passe a ser denominado de Anexo ou Pavilhão de Aulas da Faculdade de Medicina da Bahia “Doutora Rita Lobato Velho Lopes”, homenagem a primeira médica formada pela instituição.
A formação de mulheres na medicina atravessa os tempos. Na Antiguidade, havia devoção às deusas protetoras da Medicina, como Isis, no Egito, e Saravaste, na India. Há ainda o registro das parteiras hebraicas Ponah e Siphra. E das parteiras romanas Cleópatra, Salpe e Laís. Já na Idade Média, o ofício de parteira era oficialmente regulamentado por ordenações especiais e legalizado pelo exame de uma comissão de físicos nas comunidades e elas eram intituladas comadres ou matronas. No Século XII, sem haver cursado escola médica, a monja Hildegarda foi a primeira mulher que se tem notícia a escrever um texto médico, denominado “Causas das doenças e métodos de tratá-las”.
No Século XIII, instituiu-se na Universidade de Salerno, o título de bacharel, com dois anos de estudos, o título de licenciado, com três anos de estudos, e o título de físico ou mestre, com cinco anos de estudos, e, após exames de provas, o título de doutor em Medicina, sempre outorgado solenemente diante dos docentes. Foi na Península Itálica que se diplomou a primeira mulher em medicina nos anos 1200. Seu nome era Trotou, conforme relata o professor honorário da Faculdade de Medicina e Presidente Emérito do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, Lamartine de Andrade Lima.
A partir de 1311, a Universidade de Paris permitiu que mulheres se diplomassem como cirurgiãs sem que, no entanto, tivessem acesso aos textos científicos privativos dos médicos clínicos, profissionais que juravam, em latim, jamais praticarem a cirurgia ou operar com ferro e fogo. Foram os árabes que reabilitaram a cirurgia através do médico do califa Abderrahman, Abul-Cassis, na Península Ibérica. A prática teve continuidade dois séculos depois, por Saliceto de Bolonha, também na Península Itálica, e reconhecida oficialmente pelo Imperador Carlos V da Alemanha e I da Espanha, senhor do Sacro Império Romano-Germânico. No Século XVIII, os médicos e cirurgiões começaram a exercer a Obstetrícia, até então reservada às parteiras.
A primeira médica da Europa Continental formou-se na Alemanha, na Universidade de Halle. Dorothéa Christina Erxleben foi diplomada em 1754. Já no Século XIX, em 1812, foi diplomada a primeira médica das Ilhas Britânicas, pela Universidade de Edimburgo, todavia disfarçada de homem e com o nome de James Miranda Stuart Barry, e assim exerceu a profissão, tendo o seu sexo revelado após a morte, em 1865. No ano de 1849, foi diplomada a primeira médica da América do Norte, em Nova Iorque, no “Genova College”, Elizabeth Blackwell. “No ano de 1881, foi diplomada a primeira mulher a receber bolsa para estudos médicos no exterior do Imperador Dom Pedro II, a primeira médica brasileira e sul-americana titulada por uma escola superior estrangeira, pelo “New York Medical College and Hospital for Women”, e a primeira mulher a revalidar um diploma de Medicina no Brasil, Maria Augusta Generoso Estrela”, conta o médico e pesquisador Lamartine Lima.
A primeira médica a ser formar em terras brasileiras, Rita Lobato Velho Lopes, nasceu prematura de sete meses, em São Pedro do Rio Grande, na província do Rio Grande do Sul, dia 09 de junho de 1866. Ainda criança revelou a sua mãe que gostaria de ser médica, como era o clínico de sua família, um italiano chamado doutor Romano.
Estudou o primário em Areial, o secundário em Pelotas, e o que se chamava de preparatório para ingressar na faculdade em Porto Alegre. Perdeu a mãe aos 17 anos, que faleceu aos 41 anos de hemorragia depois do 14º parto, em 1883. Junto com a família, Rita transferiu-se, em 1884, para a capital do Império onde se matriculou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Por causa de uma briga envolvendo agressão corporal causada por discussão entre seus filhos homens e alguns professores, a respeito da reforma que alterava o regulamento das escolas superiores, Francisco Lobato Lopes resolveu trazer os seus filhos, inclusive Rita, que estava no segundo ano médico, para a Faculdade de Medicina da Bahia.
Estabeleceram residência na Rua do Jogo do Carneiro e, em seguida, transferiram para a Rua do Sodré, no mesmo solar histórico de Jerônimo Sodré Pereira, onde morrera o professor Antonio José Alves, catedrático de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Bahia e pai do poeta
Antonio Frederico de Castro Alves. Rita viveu no local até se diplomar em medicina na turma de 1887, aos 21 anos. Em seguida retornou com o pai e os irmãos, para o Rio Grande do Sul, onde exerceria a profissão por 40 anos.
Nas eleições de 1934, aos 67 anos, ela se candidatou e foi eleita a primeira vereadora de Rio Pardo, no Rio Grande, mandato que se encerrou com o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1937. Recolheu-se as atividades particulares na mesma cidade onde morreu aos 88 anos, no dia 6 de janeiro de 1954.
As pesquisas documentais e testemunhais realizada pelo falecido professor Alberto Silva, da Faculdade de Medicina da Bahia e do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, há mais de meio século, atestam que Rita Lobato Velho Lopes foi de fato a primeira médica brasileira diplomada no Brasil na especialidade obstetra e a segunda médica titulada na América do Sul. As conclusões de Alberto Silva estão reunidas nas 250 páginas do livro de sua autoria “A primeira médica do Brasil”, Irmãos Pongetti – Editores, Rio de Janeiro, 1954.
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*Cláudio Antônio de Freitas Bandeira é jornalista especializado em Jornalismo Cientifico e Tecnológico