Mencionar a proteção do conhecimento implica em trazer à discussão o sistema de patentes, criado para garantir aos autores a exclusividade de exploração das suas invenções durante um determinado período. O estado brasileiro confere o direito exclusivo de exploração de 20 anos para os detentores de patentes de invenção, aquelas que produzem objetos ou métodos completamente novos, aplicados em escala industrial. Já as patentes de modelo de utilidade estão associadas ao aperfeiçoamento de objetos já existentes (como a inserção de dobras na parte superior de um canudo) e têm proteção de quinze anos. Após esses períodos, as criações caem em domínio público. Para compreender melhor o funcionamento do sistema de patentes, iniciaremos uma série de entrevistas sobre o assunto, tendo como primeiro entrevistado o diretor de patentes do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), Júlio César Moreira.
POR LUANA ASSIZ*
luanassiz@gmail.com
Luana Assiz – Como funciona o processo de patenteamento no Brasil, desde o processo para o depósito, até a concessão da carta-patente, a exploração do produto/processo e o recebimento de royalties?
Júlio César Moreira - Em primeiro lugar, é importante realizar uma busca para verificar se aquela tecnologia já não foi patenteada anteriormente. O acesso às bases de patentes pode ser muito útil para subsidiar as atividades de pesquisa e desenvolvimento, pois revela o “estado da arte” no campo tecnológico de interesse do inventor. Em seguida, deve ser feito o depósito da patente no INPI. O pedido fica 18 meses em sigilo e o inventor tem até 36 meses para solicitar ao INPI que examine o pedido. Depois disso, um especialista na área irá avaliar se o pedido preenche os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Em caso afirmativo, a patente será concedida. A partir daí, a exploração e a negociação de royalties são atividades feitas diretamente pelo detentor da patente com os interessados. Caso o contrato envolva remessas para o exterior, ele deverá ser registrado no INPI.
LA – Quais são os tipos de patentes existentes no Brasil?
JCM - Os tipos de patente existentes no Brasil são: Patente de Invenção (PI), produtos ou processos que atendam aos requisitos de atividade inventiva, novidade e aplicação industrial. Sua validade é de 20 anos a partir da data do depósito. Há o Modelo de Utilidade (MU), objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação. Sua validade é de 15 anos a partir da data do depósito.
LA – De que forma é feito o licenciamento compulsório?
JCM - O licenciamento compulsório está regulado pela Lei de Propriedade Industrial. Ele poderá ser feito em casos descritos na lei, tais como usar os direitos de forma abusiva, praticar abuso de poder econômico, não explorar o objeto da patente e quando a comercialização não satisfizer às demandas do mercado. Ela também pode ser feita em casos de emergência nacional ou interesse público. Vale acrescentar que a licença compulsória não é uma faculdade do inventor. Ela é utilizada em casos específicos e deve ser vista como exceção à regra. Existe outro tipo de licença na qual o inventor pode colocar seu invento à disposição de terceiros, mas não tem a ver com licença compulsória. Ela pode estar associada à necessidade de viabilizar o invento pelo próprio inventor, transferência de tecnologia entre as partes interessadas, por exemplo.
LA – O jurista Morten Walloe Tvedt, do Instituto Fridtjof Nansen, da Noruega, fez uma análise em que considera que os prováveis efeitos da introdução de um Sistema Mundial de Patentes serão predominantemente negativos para a maioria das nações do Terceiro Mundo, com efeitos tanto mais negativos quanto menos desenvolvido for o país. Quais seriam os impactos de um sistema mundial de patentes, na sua avaliação?
JCM - Este impacto, conhecido por harmonização legal do sistema patentário mundial, não é visto como desejável e nem possível de ser alcançado por nenhum escritório de patentes no mundo. Acredita-se que um certo grau de harmonização de práticas e técnicas é desejável com o objetivo de se aumentar a qualidade das patentes concedidas e aumentar a velocidade de processamento dos pedidos de patentes depositados nos diferentes escritórios. Independentemente da harmonização, acreditamos que um sistema de propriedade intelectual forte em cada um dos países separadamente, e no conjunto, somente fortalece o desenvolvimento e a inovação tecnológica.
LA – Existe uma expectativa de crescimento da inovação nas indústrias nos próximos anos e os governos dos principais nichos de atividade patentária já enxergam a necessidade de tornar o sistema de patentes apto a suportar o crescente registro de pedidos de patente. O Brasil está pronto para esse crescimento?
JCM - O crescimento dos pedidos de patentes, especialmente feitos por brasileiros, é uma das metas das políticas do Governo Federal. Para se preparar, o INPI vem tomando diversas medidas no sentido de garantir agilidade e qualidade às decisões sobre patentes, contribuindo para gerar um ambiente de segurança jurídica para os contratos envolvendo tais patentes e, assim, estimulando a geração de novas patentes.
LA – Quais são os principais desafios do INPI atualmente?
JCM - O INPI vem trabalhando para conscientizar a sociedade sobre a importância da propriedade intelectual e ampliar a demanda por tais direitos, principalmente das empresas brasileiras, ao mesmo tempo em que o Instituto trabalha para garantir mais agilidade e qualidade às suas decisões. Conciliar estes objetivos é o principal desafio do INPI.
LA – A busca por mais agilidade na análise dos depósitos é também um desses desafios? Qual seria a solução para isso?
JCM - Sim. Em primeiro lugar, passa pela contratação de pessoal. O INPI aguarda autorização do Governo Federal para realizar concurso ainda este ano. Mas também passa pela revisão dos procedimentos internos, pela informatização do processo (ainda este ano será possível solicitar patente pela Internet) e pela colaboração com os INPIs de outros países, já que os examinadores que estão com os mesmos pedidos podem colaborar na etapa de exame técnico. Já existe um projeto para isso na América do Sul, o Prosur.
LA – Alguns especialistas criticam os critérios para concessão de Carta Patente no Brasil, sob o argumento de que eles seriam desfavoráveis à massa pesquisadora brasileira. Qual é a sua avaliação diante dessa crítica?
JCM - Os critérios para concessão da patente no Brasil são absolutamente técnicos, sendo regulados pela Lei de Propriedade Industrial. Qualquer alteração dependeria de uma mudança na legislação, mas vale lembrar que o Brasil é signatário do tratado da OMC de aspectos da propriedade intelectual relacionados ao comércio, o TRIPS, na sigla em Inglês, que cria exigências mínimas para a concessão de patentes no mundo.
LA – Existem perspectivas de reforma do nosso sistema patentário? Quais seriam os pontos principais a serem reformulados?
JCM - Sim. O sistema global está em processo de reforma, e a cooperação entre os países é um dos campos que terá avanços, já que a demanda cresce muito e, sozinhos, os países não terão condições de enfrentar o problema. No Brasil, também existem discussões sobre temas como a biotecnologia. Atualmente, não é possível patentear produtos extraídos a partir da biodiversidade, e isso poderia gerar prejuízos para um país megabiodiverso como o Brasil.
LA – Especialistas avaliam que o monopólio de uma tecnologia pode, ao contrario do esperado, afugentar os empresários e fazê-los reorientar seu capital para outros campos, uma vez que o interesse maior do detentor de uma patente é retardar o desenvolvimento de seus concorrentes. Como você avalia isso?
JCM - Não é bem assim. O objetivo do sistema de patente é o seguinte: o cidadão ganha um privilégio temporário em troca da revelação de sua invenção. Assim, todos os concorrentes podem partir do mesmo ponto, conhecendo o estado da técnica num determinado campo tecnológico. Com isso, as empresas evitam “reinventar a roda”, ou seja, fazer algo que outro já fez. E assim todos podem partir para criar algo novo, o que gera a patente e ela, por ser um monopólio temporário, permite que o inventor, durante sua validade, recupere os recursos investidos em pesquisa, fazendo com que esta pesquisa seja sustentável. Em suma, o objetivo principal do detentor de uma patente é gerar recursos para recuperar o gasto em pesquisa e reinvestí-lo, gerando ainda mais desenvolvimento, num ciclo virtuoso.
LA – Existe uma diferença entre invenção e descoberta. Essa diferença é delicada quando se pensa na área da biotecnologia, porque os elementos naturais estão disponíveis, já existem, porém, sua combinação e manipulação pelo homem pode gerar resultados desconhecidos. Como mensurar quando o nível de interferência humana pode fazer com que algo deixe de ser descoberta para se tornar uma invenção? Como o INPI avalia isso?
JCM - Nem todos fazem uma diferenciação clara entre descoberta e invenção. No caso brasileiro, de uma forma hipotética, uma solução poderia ser a declaração prévia do inventor de realizar uma determinada pesquisa para identificar na natureza algum produto para um determinado fim. De forma resumida poderia ser um processo onde o inventor seria motivado a buscar algo na natureza, preparar meios para realizar esta busca e atingir seu objetivo ao final, com o produto final pretendido. Devido ao potencial da biotecnologia brasileira, o INPI acredita que alguns meios para facilitar a pesquisa e o desenvolvimento nesta área devam ser incentivados.
*Luana Assiz é jornalista (Facom-UFBA) e especialista em Jornalismo Científico e Tecnológico pela mesma faculdade.