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Atualizado em 10 DE junho DE 2011 ás 12:53

Acordo internacional ameaça remédios genéricos

O ACTA é considerado uma resposta ao aumento do comércio global de mercadorias e pirataria de direitos autorais e obras protegidas. Medicamentos genéricos também são alvo do acordo

Rosana Guimarães*
jornalista.rosanaguimaraes@gmail.com

Afinal, o que é o ACTA?

O ACTA é uma proposta de acordo que tem como finalidade estabelecer normas internacionais sobre direitos de propriedade intelectual de execução e, assim, criar um novo quadro jurídico internacional onde os países possam participar numa base voluntária, além de criar o órgão diretivo fora das instituições internacionais existentes, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), a World Intellectual Property Organization (WIPO) ou das Nações Unidas.

Tal acordo, é tido como uma resposta ao aumento do comércio global de mercadorias e pirataria de direitos autorais de obras protegidas. O ACTA tem em seu âmbito bens falsificados, medicamentos genéricos e violação de direitos autorais na Internet.

A ideia primordial surgiu no Japão e EUA em 2006, com participação do Canadá, União Europeia e Suíça (2006/2007). Entretanto, em junho de 2008, após países como Austrália, México, Marrocos, Nova Zelândia, República da Coreia e de Singapura se juntarem ao grupo, teve início a negociação.

Embora as negociações tenham sido feitas de forma secreta, longe da população, conforme denúncias feitas pela Electronic Frontier Foundation (EFF), acadêmico canadense Michael Geist, Consumers International, Edri, Free Software Foundation (FSF), ASIC e pela Free Knowledge Institute (FKI), diversas versões do tratado vazaram, o que provocou as reações de diversas entidades, organizações e da sociedade no mundo inteiro, pedindo esclarecimentos sobre o acordo e que as informações sejam veiculadas de forma clara e frequente.

Segundo Elisandra Angrewski, professora de Sociologia no Paraná, o ACTA “esconde uma tentativa de frear as novas formas — não-mercantis — de intercâmbio de produtos culturais e conhecimento. Procura recompor a situação existente antes da internet, quando estas trocas (de música, vídeos ou notícias, por exemplo) requeriam obrigatoriamente um intermediário capitalizado (uma gravadora, um estúdio, um grande jornal). Como tal intermediação tornou-se tecnicamente desnecessária, o acordo procura reintroduzi-la reprimindo, por meios jurídicos, a circulação direta. Para isso, recorre a medidas que ferem direitos fundamentais do ser humano”.

Depois de tantos questionamentos, novas formulações e opiniões dos países envolvidos, foi publicada uma versão oficial em agosto deste ano, e, um texto novo do projeto consolidado, que reflete os resultados da rodada final das negociações (Tóquio), foi lançado em 06 de outubro de 2010. O documento, em inglês, dificulta o acesso da população nos dispositivos que o compõem, gerando mais desconfiança entre os povos sobre o real objetivo do tratado, já que também, os grandes produtores de medicamentos genéricos no mundo em desenvolvimento (Índia, China, Brasil, Tailândia e África do Sul) estão fora das negociações.

Ainda assim, diversas ONGs e entidades afirmam que o ACTA, conforme suas descrições e artigos, trataria medicamentos “genéricos” e “falsificados” de forma idêntica, sujeitando os genéricos às mesmas táticas de “apreensão e destruição” aplicadas aos medicamentos falsificados, tendo como fundadores deste argumento os gigantes da indústria farmacêutica, já que os medicamentos genéricos são até 90% mais baratos.

E os genéricos? O que são e como colaboraram com a saúde da população?

Os genéricos são “cópias” de medicamentos inovadores cujas patentes já expiraram. Para serem produzidos são feitos testes com rigorosos padrões de controle de qualidade e, após as experimentações, por lei, eles podem substituir os medicamentos de referência indicados nas prescrições médicas.

A indústria de genéricos teve origem na década de 60, por iniciativa do governo dos EUA, mas, somente em 1984 foram estabelecidos critérios para o registro destes medicamentos. O objetivo ao criar os genéricos, foi buscar uma alternativa para reduzir custos de tratamentos de saúde e ampliação do acesso da população aos medicamentos. Por serem cópias de patentes expiradas e não arcarem com os custos de pesquisa e desenvolvimento, os genéricos se mostraram efetivamente mais baratos que os medicamentos de referência.

No Brasil, a Anvisa já tem em seus registros, genéricos de 337 princípios ativos, totalizando mais de 15.400 apresentações e aproximadamente 100 classes terapêuticas, englobando as patologias que mais frequentemente acometem a população brasileira e grande parte das doenças crônicas de maior prevalência. O programa de medicamentos genéricos foi criado em 1999 com a promulgação da Lei 9.787.

Com os genéricos, a população brasileira economizou cerca de R$ 15 bilhões, já que, em média, os genéricos custam 50% mais barato que as marcas de referência. Caso seja mantido o aumento da demanda pelos genéricos, os fabricantes devem fechar o ano de 2010 com alta de 30% nas vendas.

No primeiro semestre do ano, o mercado destes remédios cresceu 34,1% em volume de vendas comparado ao mesmo período de 2009 (foram comercializados 200,4 milhões de unidades de janeiro a junho/2010 contra 149,4 milhões no mesmo período em 2009), em todo o país R$ 2,8 bilhões, sendo o estado da Bahia líder no mercado de genéricos (15,6%).

Segundo o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, o acesso da população à saúde é um dos itens mais valorizados nas políticas públicas, já que, de acordo com estudos da Organização Pan-americana de Saúde (OPaS), no Brasil, o peso do desembolso direto com medicamentos onera proporcionalmente mais as famílias de baixa renda. Sendo assim, o Ministério da Saúde desenvolveu linhas de programas para facilitar este acesso. “A primeira linha é o que chamamos de farmácia básica, para doenças mais comuns, como hipertensão e diabetes, com repasse de renda per capita por ano para os municípios, que se soma ao que o governo estadual e ao que o próprio município coloca, com distribuição gratuita. Como o grau de competição é muito grande, você tem em tese uma competição maior por texto e a nossa estratégia foi descentralizar para os municípios essa compra.”

Por outro lado, centralizamos a compra dos medicamentos ou protegidos por patentes, que são mais caros e para doenças crônicas. Quando eu tenho patente, eu tenho monopólio. Com isso a gente começou a comprar melhor. Quando centralizamos no ministério ganhamos escala”, afimou Temporão.

Os medicamentos genéricos, embora tenham aumentado a geração de renda através da compra pela população mais carente, são também distribuídos em programas de parcerias do Governo, como a Farmácia Popular (vendem 105 produtos a preço de custo, em grande maioria, genéricos), o programa “Aqui tem Farmácia Popular” (drogaria do varejo, onde existem medicamentos que o governo paga 90% do custo e o consumidor 10%, como produtos para hipertensos, diabetes, colesterol, anticoncepcional etc).

De acordo com Temporão um novo programa deve facilitar ainda mais este acesso aos medicamentos básicos. “Dentro desse programa [Farmácia Popular], o nosso objetivo é ampliar não apenas o número de farmácias mais também a lista de medicamentos envolvidos.

Dentro do programa Mais Saúde, queremos chegar a 20 mil pontos até 2011. O mercado de medicamentos está crescendo 15% ao ano, é um dos mais dinâmicos do mundo, e os genéricos evidentemente têm um papel importante nisso”, ressaltou.

Tal afirmação feita pelo ministro é corroborada pelo mestre em Saúde Pública, Francisco Pacheco, o qual cita que após os genéricos o acesso a medicamentos foi ampliado de forma eficaz. “Segundo pesquisas realizadas pela Anvisa e instituições de ensino o acesso aos medicamentos melhorou com a chegada dos genéricos. Esta tem sido uma importante estratégia de inclusão e ampliação do acesso em diversos países. A situação no Brasil confirma esta tendência”, revelou.

Sendo assim, em que o ACTA vai influenciar?

Antevendo esta problemática de confundir genéricos com medicamentos falsificados, especialmente após países da União Europeia terem retido navios com medicamentos genéricos, durante a 63ª Assembleia Mundial da Saúde o Brasil lançou um alerta para que a discussão sobre medicamentos falsos não impedisse o trânsito de medicamentos genéricos. Na ocasião, o Brasil em conjunto com os países da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), apresentou resolução que determinava que a Organização Mundial de Saúde tratasse “a questão de um ponto de vista da saúde pública, deixando de lado questões comerciais e de propriedade intelectual (patentes)”. O órgão recebeu duras críticas do Brasil e de organizações como a Médico Sem Fronteiras por confundir remédios genéricos com falsificados, reforçando assim, a campanha da União Europeia e das farmacêuticas pela manutenção das patentes.

A OMS então, anunciou apoio ao Brasil e a Unasul, afirmando que criaria uma “força-tarefa contra remédios falsos” fixando “linhas claras entre eles e os genéricos”.

Ainda assim, as consultas entre Brasil e União Europeia sobre medicamentos genéricos fracassaram, e o Itamaraty vai disputar comercialmente contra Bruxelas por causa da importação desses remédios, recorrendo aos tribunais da Organização Mundial do Comércio (OMC), a fim de evitar novas retenções de cargas de genéricos.

O Brasil alerta que não se tratou de um incidente isolado. No total, mais de uma dezena de apreensões foram registradas na Europa em casos similares no comércio de genéricos entre países emergentes em 2008, afetando países como Peru, Nigéria e Colômbia.

O Itamaraty explicou que, durante meses, tentou uma solução diplomática para o problema, tendo feito outra tentativa em setembro deste ano, na 63ª Assembleia Mundial de Saúde. Diplomatas envolvidos nas negociações confirmaram que os europeus não ofereceram uma solução e que a informação era que o processo interno na UE estava sendo realizado para avaliar a lei existente, algo que não deixou os brasileiros satisfeitos.

Agora, o governo brasileiro deve avaliar os aspectos legais do caso e decidir se passará finalmente para o conflito. Se a opção for essa, a OMC será acionada e serão convocados árbitros para analisar a queixa brasileira. Se eles considerarem que a lei europeia de fato é ilegal, obrigarão Bruxelas a modificá-la. Caso a Bélgica não o faça, poderia ser alvo de uma retaliação comercial do Brasil.

O processo, porém, pode levar meses. A proliferação dessas barreiras significaria um prejuízo importante, já que o país importa muitos remédios e princípios ativos de outros países emergentes e precisaria encontrar uma nova rota para permitir que o acesso até os portos nacionais fosse garantido, para assim, fabricar e vender os medicamentos genéricos.

Ao que se percebe inicialmente, é que o ACTA objetiva não apenas “proteger a população de medicamentos falsos” mas, garantir os lucros das grandes empresas farmacêuticas já que, segundo a Decision Resources, uma das mais importantes empresas de pesquisa e consultoria de questões farmacêuticas e de assistência à saúde, devido à crescente disponibilidade genérica de agentes anti-hipertensivos, o mercado destes fármacos sofrerá queda de U$26 bilhões em 2009 para U$23 bilhões em 2019, nos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Espanha, Reino Unido e Japão. Ou seja, países envolvidos no ACTA.

As descobertas do Pharmacor 2010 no tópico intitulado Hypertension (Hipertensão) revela que o principal fármaco do mercado, o Diovan/Tareg da Novartis, sofrerá o maior declínio, pois as vendas cairão mais de U$1 bilhão até 2013, seguindo a introdução de versões genéricas do fármaco. Até 2019, as classes de fármacos normalmente usadas como terapias de primeira, segunda e terceira linhas estarão sujeitas à concorrência dos genéricos.

Além disso, milhões de pessoas pobres dependem dos medicamentos genéricos para tratar doenças como malária e HIV. Se o acordo for adiante, muitas pessoas não terão mais acesso a remédios de baixo custo, colocando milhões de vidas em risco.

De acordo com o ministro da Saúde, com a estratégia de valorizar os princípios ativos produzidos no Brasil, conseguem-se a redução do preço, ampliação do acesso e fortalecimento da indústria brasileira de princípios ativos, que foi destruída durante o governo Collor e durante o período de política neoliberal. Com isso, economiza-se R$ 160 milhões, ao mesmo tempo em que fortalece a capacidade nacional de produzir o princípio ativo nos laboratórios e ampliando acesso da população aos medicamentos, tudo isso usando o poder de compra do Estado.

Segundo Francisco Pacheco, a aquisição dos genéricos para os doentes crônicos representa uma importante estratégia de adesão ao tratamento por parte da população que não consegue acesso via SUS. “Esta parcela da população seria fortemente afetada com a possível retirada dos genéricos do mercado”, alerta. Pacheco ressalta ainda que, embora não conheça os termos do ACTA na íntegra, é um absurdo o país retroceder neste assunto. “Considero a Política de Medicamentos do Brasil, na qual se inclui a estratégia dos genéricos, como uma política em consolidação e já bastante avançada. Não vejo como o País iria retroagir uma estratégia sua exitosa em função de um cenário internacional que é distinto de nossa realidade (sobreposição de genéricos e falsificados)”, afirma.

Entretanto, como está difícil a negociação e a explicação dos termos do ACTA, o Brasil já deliberou uma nova política para coibir a veiculação de medicamentos falsificados – desde janeiro de 2011, as caixas de remédios são etiquetadas com um selo de segurança, fato que gerou, evidentemente, forte reação da indústria farmacêutica que afirma que a medida é equivocada e deverá aumentar em 2,58% o preço médio dos medicamentos para o consumidor. Já o presidente da Anvisa, Dirceu Raposo, afirmou que não serão permitidos aumentos nos preços por causa dos selos.

A indústria e as farmácias terão um ano para se adaptar às medidas e até 15 de janeiro de 2012 todo medicamento deverá ter o selo de segurança, que será autenticado ao se aproximar à etiqueta de segurança no visor de um leitor ótico. O objetivo da medida é impedir a venda e a utilização de medicamentos falsificados, roubados, sem registro ou contrabandeados.

Como cada selo terá uma numeração individual, chamada de Identificador Único de Medicamento (IUM), e também fará parte das notas fiscais eletrônicas, a indústria pediu que a medida fosse revogada pois considera a tecnologia do selo ultrapassada, sugerindo o sistema bidimensional mais moderno, já em testes. Segundo eles, o fato de haver só um fornecedor do selo no país significa monopólio.

Diante deste impasse, cabe a cada um de nós, população, averiguar o que está sendo feito com as legislações dos países, em acordo secretos ou não, já que a saúde é uma das mais fortes moedas de troca e negociação em todo o mundo.

Sem ela [a saúde] não podemos trabalhar, estudar e nem desenvolver um país. Portanto, é hora de ficarmos atentos ao que nos cerca, utilizando cada vez mais as pesquisas em livros e Internet, agregando conhecimento e opinião crítica sobre o que os “poderosos” tentam (e por vezes conseguem) empurrar decisões unilaterais e que beneficiam apenas uma pequena parcela da população.

*Jornalista pós-graduanda em Jornalismo Científico e Tecnológico pela Ufba

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