A supervalorização da teoria em detrimento dos ensinamentos práticos, gerando a invisibilidade e comprometendo os investimentos para o curso de Educação Física tem sido alguns dos problemas apontados por professores e estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O curso, ligado à Faculdade de Educação (Faced), possui um Centro de Educação Física e Esporte da UFBA (CEFE-UFBA), cujas instalações estão inadequadas para a realização de atividades esportivas, tendo em vista que a estrutura é decorrente de um projeto elaborado na década de 1970 e não finalizado. Um dos professores do curso de Educação Física, Fernando Reis do Espírito Santo, acredita que a saída para a melhoria do curso pode ser resolvida com a reformulação curricular, a inserção da comunidade nas atividades curriculares, o vínculo com o poder público para a criação de políticas em favor do esporte e, por fim, a avaliação de desempenho dos egressos do curso. A entrevista, realizada pela repórter Marina Aragão da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura, pode ser conferida abaixo na íntegra.
POR MARINA ARAGÃO*
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Ciência e Cultura – Muitas vezes o esporte e as práticas corporais são vistos apenas como entretenimento. Essa visão ainda perdura até mesmo dentro da universidade? De que maneira?
Fernando Reis – No ambiente interno, não. Esse mito das práticas corporais e do esporte já foi derrubado. Hoje já entendemos o esporte como fenômeno sociocultural. Esse debate vem sendo feito desde a década de 90 e ocasiono um processo de desconstrução extremamente complicado, de choque e conflitos. Tentou e tenta-se fazer com que, não só o corpo docente, mas os próprios alunos do curso passem a ver de forma diferente todas as práticas corporais e esportivas. Contudo, minha crítica é a de que não se consegue tornar esse discurso produzido aqui, o de ver a prática corporal, a atividade física e as práticas esportivas como aspectos importantes, algo que deve estar na cultura das pessoas. Não conseguimos fazer com que os próprios alunos e professores incorporem isso e façam esse discurso atravessar os muros da universidade.
Ciência e Cultura – Há iniciativas que procuram mudar essa realidade?
Fernando Reis – Existem algumas iniciativas através dos projetos de extensão, mas são projetos soltos, nada sistematizado. Além disso, a universidade não dialoga diretamente com o poder público na tentativa de construir uma política pública. Não há um debate, um diálogo sistemático. Mas, independente disso, a esperança está nos alunos que passam por aqui. Eles convivem quatro anos com esse debate, com toda a produção feita aqui, e precisam levar isso para os espaços de exercício profissional onde vão ocupar. Mas é frustrante que as nossas expectativas estejam além do que eles estão fazendo e podem fazer. Mas há a esperança que, principalmente em um momento como as Olimpíadas, esses alunos egressos sejam capazes de interferir e falar disso de uma maneira diferenciada.
Ciência e Cultura – A vinculação do curso de Educação Física à Faculdade de Educação é um problema? Quais as implicações dessa vinculação para o curso?
Fernando Reis – São duas respostas porque são dois momentos. O primeiro curso de Educação Física da Bahia surgiu em 1973, na Universidade Católica do Salvador, formado por professores que foram ao Rio de Janeiro e fizeram curso na escola do Exército. Portanto, voltaram com a mentalidade de uma Educação Física militarista e esportivista. Já na década de 80, apareceram os primeiros formados que começaram a contrapor esse pensamento. Em 90, essas pessoas entram na Universidade Federal da Bahia. O curso apresentava uma proposta curricular avançada do ponto de vista do documento escrito, mas o currículo em ação, a prática era atrasada, Então, naquele momento, defendia-se e achava-se que seria muito importante o curso de Educação Física estar vinculado à Faculdade de Educação, porque professores de outros departamentos acabavam interferindo e não deixavam essa mentalidade ficar tão estreita.
Hoje, o corpo docente existente nesse curso já caminha sozinho. Por isso existe a possibilidade de repensar esse vínculo. Lá atrás foi importante ter ficado na Faculdade de Educação, do ponto de vista do avanço. Mas agora está na hora de repensar e tomar outro caminho. Estamos lutando para criar um Instituto de Educação Física e ficar independente.
Ciência e Cultura – A grande maioria dos estudantes alega uma valorização da teoria em detrimento dos ensinos práticos dentro do curso. Quais os problemas dessa metodologia?
Fernando Reis – Passamos por um processo de reformulação curricular. E currículo é briga de espaço e poder, uma correlação de forças. Naquele momento, havia um determinado grupo que tinha uma força maior nessa correlação e que, portanto, puxou o curso para essa concepção. A qual recebeu apoio porque estava na Faculdade de Educação. Se estivesse no Instituto de Saúde seguramente não teria uma ressonância tão grande. O currículo tem avanços, mas por, outro lado, ainda engatinha na forma de pensar uma educação física mais própria, voltada para o esporte, para as práticas corporais. Hoje, o curso está mais teórico do que prático. Os alunos teriam que estagiar em esporte e não sabiam dar aula de esporte. Eles vão para a rua, para aprender nas academias, nos clubes, em outros lugares, e se queixam de que aqui acabam não tendo esse respaldo.
Antigamente existiam as disciplinas específicas de esporte. Na mudança do currículo isso acabou. Fala-se de teoria do esporte, política pública de esporte, fazendo uma série de leituras, porém os estudantes deixam de conhecer os fundamentos técnicos desse esporte. Alguns professores perderam a mão nesse sentido e os alunos estão sofrendo as consequências. Formou-se uma geração com menos capacidade técnica.
Ciência e Cultura – Então os alunos formados nesta faculdade não estão capacitados para o mercado profissional?
Fernando Reis – O pessoal que foi formado pelo currículo anterior, sim. Por esse currículo, eu tenho minhas dúvidas. Vamos formar uma primeira turma agora nesse novo currículo, por isso já estou com uma pesquisa pronta para buscar essas pessoas e saber como elas estão. Dos anteriores, existem pesquisas de mestrado, de doutorado que analisam não só o curso, como os egressos. Está claro que eles (os alunos) tinham esse conhecimento, 70% do curso era técnico. Nesse sentido, formamos bons professores. Eles trabalham aí fora muito bem e vivem em evidência.
Ciência e Cultura – A superficialidade da grade curricular do curso, tendo em vista a defasagem dos ensinamentos práticos, recai sobre a falta de investimentos do CEFE? De que maneira?
Fernando Reis – Sem sombra de dúvidas. Porque a estrutura é fundamental, ela é um estímulo. Quando se tem uma quadra coberta, bastante material, um campo em condições, salas com recursos didáticos facilita muito. Então, esses recursos fazem falta e isso prejudica a formação. Se chover duas semanas em Salvador, ficamos duas semanas sem aula, porque todas as quadras são descobertas, com marcações horríveis e o piso muito ruim. Temos três salas, uma que é usada para a ginástica, outra com ar-condicionado e luz e outra que não tem luz nem ar-condicionado. Essas condições materiais, físicas, estruturais interferem diretamente na formação dos alunos. O último investimento feito no CEFE já faz bastante tempo. O diretor da Faculdade de Educação tem feito um esforço muito grande e dado apoio. Mas agora o Centro de Esportes está diretamente ligado à Reitoria, saiu do alcance da faculdade e tornou-se um pouco mais complicado, porque não se tem a quem pedir diretamente.
Ciência e Cultura – Na sua perspectiva, por que o curso de Educação Física não tem visibilidade e expansão dentro da universidade?
Fernando Reis – A Educação Física não tem um reconhecimento social. A invisibilidade do curso não é só da UFBA. É de uma cultura social. Primeiro, porque ela não cumpre o seu papel, não se cria a cultura do exercício físico, nem do esporte. As pessoas fazem doze anos de Educação Física na escola e saem de lá sem saber fazer um exercício, alongamento, aquecimento e praticar esporte. O professor se acomoda e contribui para o não reconhecimento social dessa disciplina. Historicamente, ela mesma não construiu essa visibilidade e esse reconhecimento social.
Ciência e Cultura – Foi citada a dificuldade em inserir a comunidade nessa perspectiva, existem políticas específicas para tentar atingir isso?
Fernando Reis – Sim. Existem trabalhos de alguns professores diretamente com a comunidade do Calabar. Eu tenho um projeto de uma escolinha de futebol de mais de dez anos com meninos do Calabar e do Alto das Pombas. Já tiveram projetos de basquete, handebol, voleibol com esses meninos da comunidade.
Na verdade, são iniciativas, mas sempre isoladas. Não há uma política do curso para estabelecer um diálogo com a comunidade e trazê-la para dentro da universidade. A universidade é pública e as pessoas deveriam estar aqui. No CEFE deveria haver um projeto maciço para que aquele espaço estivesse completamente ocupado de segunda a segunda. Seguramente faríamos uma inserção maior nas comunidades, a universidade cumpriria o papel dela que é de se aproximar de quem a sustenta e para os alunos seria extremamente importante para o exercício da prática docente.
Ciência e Cultura – Estamos vivendo um momento importante do esporte com a realização das Olimpíadas no Brasil. Dessa forma, qual seria o papel e a contribuição da universidade no sentido de fortalecer a prática e o reconhecimento do esporte?
Fernando Reis – Ela é menor nesse sentido. Mas sou a favor de que a universidade tivesse, por exemplo, um centro de excelência e que atletas de alto rendimento pudessem ser acompanhados em laboratórios da própria instituição. O ideal seria que tivéssemos um laboratório de fisiologia do exercício, de anatomia, um laboratório no qual se pudesse fazer um acompanhamento permanente de atletas de alto rendimento, pois isso serviria também como uma ação pedagógica para os alunos do curso, os quais teriam contato com alunos da comunidade, alunos da escola e com atletas de rendimento.
Da Olimpíada, a gente só tem que aproveitar a oportunidade para tentar esclarecer as problemáticas esportivas. Ela serve como alerta para que os alunos se apropriem da cultura esportiva. É um instrumento para iluminar a defasagem do conhecimento técnico dos esportes por parte de alguns alunos.
Ciência e Cultura – Na sua visão, quais iniciativas devem ser tomadas para a melhoria do curso?
Fernando Reis – Primeiro, a avaliação da turma que vai sair desse currículo, porque, independente dos resultados, esse curso precisa de uma reformulação curricular. O segundo aspecto é a estrutura física, pois ainda que se mexa no currículo, se não modificar a estrutura pouco vai acontecer. Um terceiro item urgente é a conexão imediata com a comunidade, com escolas, clubes, academias, para se ter um diálogo permanente com essas pessoas. O quarto aspecto é o de encaminhar ao poder público projetos e propostas de políticas públicas de esporte e lazer para a cidade de Salvador. O último aspecto é o da qualificação dos professores, o que para mim está resolvido. Estes são os pontos cruciais para se poder dizer que a Educação Física existe dentro da UFBA e cumpre o seu papel. Ela cai no esquecimento porque não se cria a cultura do esporte. Não há legado da Educação Física, principalmente na escola, por isso, não existe reconhecimento social. Em 150 anos, a Educação Física não cumpriu metade do papel que deveria cumprir.
*Estudante do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação e estagiária da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura