Newsletter
Ciência e Cultura - Agência de notícias da Bahia
RSS Facebook Twitter Flickr
Atualizado em 6 DE fevereiro DE 2017 ás 11:48

Francisco Andrade

O biólogo, terapeuta ocupacional, mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências, e doutorando em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo, Francisco Andrade, lançará no dia 08 de fevereiro seu livro Biologia e Gênero na Escola: Um diálogo ainda marcado por reducionismo, determinismo e sexismo. Publicação essa que é muito bem vinda e oportuna, pois traz uma discussão bastante pertinente para a atualidade, o ensino de gênero nas escolas. Mais precisamente, no ensino de Genética e Biologia em escolas de Ensino Médio da rede pública. A Agência de Notícias conversou com ele sobre seu livro e sobre outras questões relativas à temática, e que estão fervilhando na política atual e nas rodas de discussão

POR EMILE CONCEIÇÃO*
emile_conceicao@outlook.com

Francisco Andrade/ Foto: Arquivo pessoal

Francisco Andrade/ Foto: Arquivo pessoal

Agência de Notícias: Você é graduado em Ciências Biológicas, e no mestrado resolveu trazer seu conhecimento científico para as discussões de gênero. Porque se deu essa escolha de tema? Continua com essa área de pesquisa no doutorado no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM)?

Francisco Andrade: Meu interesse pelas questões de gênero tem início na minha primeira graduação, Terapia Ocupacional, quando a professora Sofia, minha orientadora de TCC, me convenceu sobre a necessidade de inserir a categoria Gênero na discussão sobre a Gestação de Alto Risco. TCC apresentado em 2001. Em 2002, estudando Ciências Biológicas na UFBA, fiz um curso de extensão sobre Gênero, Sexualidade e Educação, onde conheci a professora Tereza Cristina e a professora Ângela, minha orientadora no mestrado. Com o curso, as questões de gênero presentes em meu TCC de 2001, ficaram mais bem esclarecidas e a paixão dessas duas professoras pela temática mexeu comigo. Mexeu como? Juro que não sei explicar (risos). Para piorar a situação a professora Ângela abriu um edital para seleção de bolsistas de iniciação científica (PIBIC/2004). Aí, eu comecei a trabalhar com ela no projeto de pesquisa Determinismo Biológico e Identidade de Gênero: percepções e representações de estudantes de graduação da UFBA até 2006. Daí veio meu projeto de pesquisa de mestrado e, consequentemente, o livro que será lançado no dia 8 de fevereiro.
Hoje sou professor do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Sergipe. Veja só que guinada, adoro guinadas! Resultado: saí do estudo sobre as implicações de gênero no ensino médio e fui estudar as implicações de gênero no ensino superior, mais especificamente, no ensino de Terapia Ocupacional. Ou seja, continuo estudando a temática no doutorado, agora com o foco na formação técnica e científica de Terapeutas Ocupacionais.

Agência de Notícias: Você é um homem estudando gênero no NEIM. Considera-se um feminista?

Francisco Andrade: Agora você tocou numa questão delicada. O feminismo é plural. Há correntes feministas que entendem como contraditório o fato de um homem se considerar ou ser considerado feminista. Essa é uma questão importante para mim. Afinal, eu sou um homem estudando a temática de gênero e fazendo doutorado em estudos sobre feminismos.
Como educador, eu busco levar a agenda feminista para a sala de aula e lá, a diversidade de gênero e suas interseccionalidades tomam voz assumindo o protagonismo através das alunas e alunos. Talvez essa seja a minha maior contribuição ao movimento feminista. Não tenho qualquer pretensão de falar por elas, hetero, homo, trans… O que elas vivem, só elas podem dizer. A opressão, subjugação, misoginia, as manifestações sexistas reveladas em discursos deterministas que essencializam estereótipos patrocinados por uma ciência patriarcal, a violência, velada ou não, presente no ambiente de trabalho, acadêmico, privado, entre outros. Elas possuem a objetividade forte necessária para falar. Elas possuem corpos que sentem, olhos que enxergam, ouvidos que ouvem, por isso são suas as “línguas” que devem falar, pois elas possuem a linguagem, o discurso mais coerente que pode haver. Assim, o que resta aos homens que se metem nesse assunto de gênero? Ouvi-las, vê-las, senti-las, sempre atenciosamente, sensivelmente, e sem qualquer pretensão de conclusão.
E falar? Nós, homens podemos falar sobre elas? Este é o ponto que pega. Eu entendo que podemos falar sobre elas, mas com o cuidado necessário para que elas falem através de nós. Neste sentido, acredito que o homem que se mete nos estudos de gênero e feminismo deve ter muito cuidado com suas análises e desenvolver uma importante habilidade que requer sensibilidade, a habilidade para compreender o ponto de vista feminista. Neste sentido, me apoio nos estudos de Sandra Harding, uma importante epistemóloga feminista, que salienta que o ponto de vista feminista não deve ser confundido com ponto de vista de indivíduos do sexo feminino e chama atenção para importantes contribuições ao pensamento feminista, realizadas por homens. Ela diz: “É evidente que nem a capacidade nem a disposição de contribuir para o pensamento feminista são traços associados ao sexo”. Deste modo, acredito que sim, um homem pode contribuir para o movimento feminista. Entretanto, a pergunta é “você se considera feminista?” Estou estudando e sensível…

Agência de Notícias: Qual a temática central e o objetivo do livro Biologia e gênero na escola?

Francisco Andrade: A temática central transita entre o determinismo biológico e as questões de gênero no ensino de tópicos de genética em aulas de biologia. O objetivo do livro é expor a análise das representações sociais de professores/as de biologia sobre questões de gênero e determinismo biológico – especialmente no que tange à construção das identidades de gênero – e suas implicações para as práticas educativas usadas no ensino de tópicos de genética no Ensino Médio de escolas da rede pública.

Agência de Notícias: Porque estudar questões de gênero especificamente no ensino da Biologia?

Francisco Andrade: Vou me atrever a especificar ainda mais a pergunta. Porque estudar questões de gênero especificamente no ensino de tópicos de genética? O campo da genética, especialmente os tópicos tratados no Ensino Médio, está marcado por estereótipos sexistas. Isso não é muito difícil de ver. No livro trago diversos exemplos que revelam o uso de argumentos deterministas e o uso de estratégias reducionistas para explicar diferenças entre homens e mulheres nos campos da cognição, psicoafetividade e dos comportamentos sociais e sexuais. Essa é uma constante em importantes revistas de amplo impacto que abordam o universo científico clássico, como a Scientific American, por exemplo. Estas mídias costumam articular conhecimento do campo da genética com pesquisas em neurociência, colaborando para a ideia de que há genes capazes de explicar distintas funções cognitivas, por exemplo, e sua diferenciação sexual, ou seja, a ideia de que há distintas habilidades cognitivas entre homens e mulheres que são determinadas geneticamente.  Mas o problema não termina aí. O caldo entorna quando identificamos nestas mídias metáforas sexistas que inferiorizam as mulheres quando comparadas aos homens em suas características cognitivas, psicoafetivas e comportamentais.
Estes estudos, muitas vezes com erros metodológicos aberrantes, além das parciais interpretações feitas por essas mídias em busca de venda, são espalhados na sociedade em geral e acabam chegando ao através de representações sociais sexistas sob a chancela de conhecimento científico.  E suas marcas acabam sendo bastante intensas no ensino de tópicos de genética, como revela o livro Biologia e Gênero na Escola.

Agência de Notícias: Você acredita que atacar os estereótipos de gênero durante o ensino da sua base, a biológica, ainda na escola, é a melhor forma de combater as desigualdades e preconceitos de gênero? Por quê?

Francisco Andrade: Eu diria que revelar e problematizar os estereótipos de gênero durante o ensino de biologia é uma boa estratégia para enfrentar as desigualdades e preconceitos de gênero. Estes estereótipos são revelados nas representações sociais expostas em sala de aula. Ou seja, estão presentes nos discursos do senso comum das alunas e alunos, das professoras e professores. Entretanto, tais discursos sofrem forte influência da mídia científica que permeia o universo das adolescentes e dos adolescentes que fazem o Ensino Médio, assim como das professoras e professores. Consequentemente, são levados para as aulas de biologia para compor as discussões. O problema é que a ciência, que não é tão neutra como parece, chancela muitos dos estereótipos de gênero através de metáforas que inferiorizam as meninas e mulheres por sua condição cromossômica sexual (XX). O processo de inferiorização de gênero ocorre de modo sutil e velado, em explicações que se utilizam de um modelo reducionista atrelado a uma perspectiva determinista para associar as diferentes características fisiológicas e anatômicas do corpo humano feminino e masculino às diferentes características comportamentais, cognitivas e psicoafetivas, socialmente tomadas como diferentes entre homens e mulheres.
As metáforas, frequentes nos discursos científicos, justificadas como estratégias didáticas voltadas para facilitar a compreensão pelo sujeito “comum”, são cruéis quando se trata das questões de gênero. Podemos citar aqui o caso das metáforas envolvendo o espermatozoide e o óvulo que atribuem ao espermatozoide o papel de protagonista na função reprodutiva por ser capaz de explorar o ambiente externo, rápido, resistente, forte e agressivamente voraz no processo de enfrentamento de todas as adversidades que o corpo feminino lhe impõe ao seu objetivo de “invasão” do óvulo e, consequentemente, gerar a vida, além de “determinar” o sexo de um novo ser que virá. Ao óvulo restaria o papel de coadjuvante, restrito ao ambiente interno, passivo, imóvel e que tenta se proteger com auxilio do corpo feminino, da inevitável “invasão” do espermatozoide. Esta metáfora revela de modo sutil uma condição de inferioridade imposta ao sexo feminino, entretanto, ela é vista como algo interessante e até engraçado pelos alunos e alunas e entendida pelos professores e professoras como uma boa estratégia pedagógica para o processo de aprendizado.
Neste sentido, entendo que a sala de aula é um espaço para a desconstrução destas metáforas e problematização dos estereótipos nelas presentes. Para mim, essa é uma interessante estratégia para o enfrentamento das desigualdades e preconceitos de gênero.

Agência de Notícias: Em sua opinião, o que se aprende em aulas de biologia pode contribuir para o pensamento determinista de gênero ainda muito comum e danoso na atualidade? Por quê?

Francisco Andrade: Entendo que sim, principalmente ao considerar o modo como é realizado o ensino de biologia, especificamente os componentes curriculares de anatomia, fisiologia, genética, citologia e evolução dos seres vivos. Por isso apoio uma formação de professores com uma capacitação adequada em estudos de gênero. O uso das “lentes de gênero” na prática educativa possibilita um processo “libertador”, tanto para as professoras e professores, quanto para as alunas e alunos.

Agência de Notícias: A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) defende que a educação sexual e de gênero nas escolas pode ajudar a prevenir as violências contra as mulheres. Qual a sua opinião sobre isso?

Francisco Andrade: A educação, quando atenta ao contexto social escolar e comunitário, é o maior agente de prevenção contra qualquer tipo de violência.

Agência de Notícias: Qual a sua opinião sobre a “ideologia de gênero” e o seu ensino nas escolas, visto que os esforços do Ministério da Educação (MEC) em incluí-la no Plano Nacional de Educação (PNE) nos últimos anos têm gerado muita polêmica?

Francisco Andrade: Em primeiro lugar, é preciso discutir o que seria o que certos setores conservadores chamam de “ideologia de gênero”. Para esses setores, seria uma forma de interpretar os papéis de homens e mulheres e suas relações no casamento e na família, de modo que os valores tradicionais seriam ameaçados por relacionamentos “versáteis”, com dissociação entre o sexo biológico, natural, por escolhas livres de orientação sexual; tais valores afetariam de modo radical o próprio conceito de família, com repercussões na esfera política, no ensino e na própria linguagem. Segundo ainda esses setores conservadores, os adeptos da tal ideologia de gênero querem ensinar as crianças que elas podem escolher qualquer opção sexual que quiserem.
Esta articulação social se volta, portanto, contra a discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas, utilizando uma rede de ações e estratégias político-ideológico que revelam de modo claro o viés de classe, raça, etnia, identidade de gênero, orientação sexual, entre outros, visando deturpar a agenda feminista, jogando a sociedade contra as feministas. Para mim o objetivo da desses setores é confundir a sociedade através de uma leitura completamente equivocada do conceito de gênero para a imposição de valores patriarcais e consequente ação de opressão e submissão da mulher. Além de promover a permanência de concepções equivocadas sobre a homossexualidade e outras expressões da sexualidade humana, favorecendo inclusive a homolesbotransfobia. A presença da temática de gênero nas escolas promove um potencial empoderamento das meninas estudantes, além da sensibilização dos meninos, além de contribuir claramente para a eliminação de todo o tipo de preconceito quanto à diversidade sexual e de gênero. E isso não é de interesse do patriarcado, pois vai de encontro à ideologia androcêntrica.

Agência de Notícias: O Congresso e as Câmaras vêm se opondo vorazmente à implantação do ensino de gênero nas escolas. Inclusive o Papa já se manifestou contrariamente ao tema “ideologia de gênero” e seu ensino. Porém, docentes e a sociedade também têm se manifestado a favor da inclusão. Como você vê essa situação? Acha que a há esperança de algum dia a temática ser debatida de forma natural nas escolas?

Francisco Andrade: Essa discussão pega fogo nas rodas de conversa. É possível observar que a estratégia de questionamento da “ideologia de gênero” vem dando resultados positivos para os setores conservadores da sociedade. Isso fica claro quando conseguimos uma abertura para explicar o que é gênero e quais as bandeiras do movimento feminista para pessoas com perspectivas ideológicas não conservadoras, ou até aos conservadores assumidos. Quando as questões de gênero ficam claras para muitas dessas pessoas elas manifestam a sensação de que foram enganadas e entendem a importância da discussão sobre as questões de gênero na escola. Nada como um bom esclarecimento conceitual, político e filosófico. Vamos pensar… Quantos pais desejam que suas filhas sofram violência de gênero ou venham a ser prejudicadas em suas carreiras profissionais por serem mulheres? Quando eles entendem que a escola pode contribuir para evitar isso, eles apoiaram.
A luta é árdua e injusta com os docentes. “Eles” possuem a grande mídia nas mãos e o poder das igrejas. Mas acredito que esse tal movimento contra a “ideologia de gênero” não vai para frente porque foi alimentado pelo tenso e polarizado contexto político atual, mas não terá fôlego para seguir adiante.
Sim, tenho esperança. Tenho uma filha, quero vê-la cada dia mais empoderada quero, para ela, e para todas as outras meninas, uma escola que discuta questões de gênero e que contribua para empoderamento dessas futuras mulheres. Isso me motiva para continuar na luta e focado em meus estudos, isso reforça minha esperança.

Agência de Notícias: E mesmo que o tema venha a ser incorporado ao currículo escolar, você acha que os professores estão preparados para ensinar sobre o assunto ou será necessária uma atualização?

Francisco Andrade: Essa é a grande questão. Acho que respondi em parte essa questão quando falei da importância das “lentes de gênero” na educação.
Mas vou reforçar… Sou um entusiasta da educação e para mim, as questões de gênero devem estar presentes em todas as etapas da formação educacional do indivíduo. Isso certamente contribuirá para equidade de gênero e diminuição da violência contra a mulher. Entretanto, para que isso seja possível, os estudos de gênero – aqui eu falo da literatura de gênero e do vasto escopo teórico sobre o tema – devem compor o currículo de todas as licenciaturas e dos cursos de pedagogia, não só transversalmente, como também em disciplinas específicas.

*Estudante do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *