O uso de células-tronco para pesquisas e terapia celular é ainda pouco regulamentado no Brasil. Isso dificulta o progresso das pesquisas nacionais, impedindo que algumas delas sejam aplicadas no país. Enquanto outros países do mundo já têm legislação madura sobre o tema e estão desenvolvendo tratamento de doenças, o Brasil se limita às pesquisas experimentais
POR MARCELA VILAR*
marcelavilarms@gmail.com
As células-tronco são a promessa para o tratamento de muitas doenças que a ciência ainda não descobriu a cura. Por conta da sua grande capacidade de diferenciação, isto é, a capacidade de transforma-se em qualquer outra célula do corpo, as células-tronco podem tratar enfermidades das mais diversas origens. Entretanto, a regulamentação brasileira quanto ao uso dessas células dificulta o avanço de algumas pesquisas.
“Atualmente o Brasil não possui nenhuma lei específica para pesquisas. O que existe é a Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, que determina que os projetos de pesquisa devam ser aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa para serem iniciados”, explica Camila Vasconcellos, mestre em Bioética e Biodireito e professora da Faculdade de Medicina da UFBA. As pesquisas, após serem aprovadas pelo Comitê de Ética local, precisam também ser aprovadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
O médico especializado em Patologia Humana, Bruno Solano, relata: “Aguardamos a regulamentação da terapia celular no Brasil, o que está muito atrasado em comparação com outros países, prejudicando o andamento desta área no nosso país”. Mestre em Biotecnologia, ele hoje coordena o Centro de Terapia Celular do Hospital São Rafael, inaugurado em 2012, em Salvador.
O que existe no país é a Lei de Biossegurança (LEI Nº 11.105), aprovada em 2005 pelo Congresso Nacional. É uma lei ampla, com 42 artigos, que determina os mecanismos de manipulação tanto dos organismos geneticamente modificados (OGM) quanto das células-tronco embrionárias. Em seu art. 5º, foi estabelecido que é possível usar as células embrionárias para pesquisas, porém, com uma série de restrições: os embriões devem ser produzidos in vitro, isto é, em laboratório, devem ser embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos e deve haver o consentimento dos genitores.
O médico e coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da UFBA, Eduardo Netto, classifica a regulação como “razoavelmente permissiva” e afirma que está de acordo com as normas de conduta dos outros países. “A legislação brasileira é recente e ainda está em franca evolução, mas acompanha de forma moderada os padrões éticos mundiais”, revela o médico. Netto ainda acrescenta que houve avanço na regulamentação, uma vez que foram criados uma série de institutos para fiscalizar as condutas científicas na manipulação genética.
Legislação internacional – Na Europa, assim como no Brasil, não é permitido que as células embrionárias sejam usadas para fins somente de pesquisa. Porém, as leis de alguns dos países europeus são mais flexíveis e já foram estabelecidas há mais tempo. Na Dinamarca, por exemplo, desde 1997 existe a Lei de Fertilização Artificial, permitindo que os embriões excedentários sejam usados em pesquisas para aperfeiçoar técnicas de reprodução artificial e para investigação em benefício do próprio embrião.
Na Espanha, a regulamentação sobre o tema foi criada em 1988, com a criação das leis de Reprodução Assistida e de Doação. O país permite realizar investigações em embriões inviáveis (aqueles que tenham alguma doença genética que impeça o desenvolvimento) em até 14 dias, período em que se completa a nidação – momento que o embrião se “prende” à parede uterina. Além disso, é permitido a clonagem terapêutica, desde que feita com embriões excedentários.
Confira abaixo como se aplica a legislação em alguns países.
Pesquisas brasileiras - Um estudo realizado pela médica Genevieve Coelho, especialista em Reprodução Humana e atual diretora da clínica IVI Salvador, a partir do uso de células-tronco, promete rejuvenescer os ovários das mulheres que têm dificuldade de engravidar. Iniciada em 2015, na Espanha, a técnica ainda não foi aprovada para experimentação no Brasil por conta da burocracia e inflexibilidade das leis brasileiras sobre o assunto. “A pesquisa não chegou ao Brasil por causa da regulamentação das agências de vigilância sanitária, por isso, está sendo realizada na Europa onde a regulamentação é mais flexível”, esclarece a pesquisadora.
Outro desafio enfrentado pela ginecologista é a legislação brasileira em relação à doação de óvulos, que são imprescindíveis nas pesquisas e são também uma alternativa para mulheres que já não podem ter filhos. “No Brasil, não é permitido que uma mulher doe óvulos voluntariamente, sendo que é permitida a doação do sêmen. Acho incoerente proibir uma ação voluntária da mulher e permitir a do homem”, relata a médica. A doação de óvulos só pode ser feita de maneira voluntária, anônima e até os 35 anos, de acordo com os pré-requisitos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Ética – Eduardo Netto afirma que os comitês são imprescindíveis para a realização de uma pesquisa com células-tronco, sendo mais do que um espaço de debate científico. “Os Comitês de Ética em Pesquisa em seres humanos (CEP) são institutos que, além de protegerem o participante da pesquisa, fazem o balanço entre os riscos e benefícios previstos da pesquisa, esclarecendo ao investigador as normas de conduta aceitas da sociedade”, esclarece.
No Brasil, não é permitida a comercialização de células-tronco, tanto por ser proibido vender ou alugar qualquer material biológico humano, tanto pelas terapias serem ainda experimentais. “O uso de células-tronco em pacientes deve ser restrito a estudos clínicos, sem custo para o paciente. No entanto, observa-se mundo afora uma proliferação de clínicas que oferecem as mais diversas terapias com células-tronco e cobram verdadeiras fortunas por tratamento”, relata Bruno Solano.
Alternativa – Por conta das restrições legislativas para se trabalhar com as células-tronco embrionárias, os pesquisadores do Centro de Terapia Celular (CTC) encontraram uma possibilidade. “As pesquisas conseguiram avançar através das células iPSC (células-tronco pluripotentes induzidas), que vêm se consolidando como uma alternativa à altura das células-tronco embrionárias, sem a necessidade da manipulação de embriões humanos”, afirma Solano. O CTC é autorizado pela ANVISA para produzir as células-tronco para o uso em estudos clínicos.
A células iPSC, apesar de serem produzidas artificialmente em laboratório, possuem a mesma capacidade de indiferenciação das células-tronco embrionárias. Inicialmente, é uma célula diferenciada, como qualquer outra célula somática do nosso corpo. Porém, após a indução de certos genes em laboratório, consegue indiferenciar-se, podendo ser usada como uma célula-tronco embrionária.
Veja também a entrevista com o coordenador do Centro de Biotecnologia e Terapia Celular do Hospital São Rafael, Bruno Solano.
*Estudante do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura