Pesquisador ressalta a importância do princípio da neutralidade da rede protegido pelo Marco Civil da Internet.
POR REBECA ALMEIDA*
rasrebeca@gmail.com
A forma de consumir internet no Brasil vem mudando nos últimos anos. Isso de acordo com a pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros, desenvolvida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br). O estudo aponta que entre 2014 para 2016 o percentual de consumo dos usuários, que exercem atividades como assistir vídeos on-line, aumentou de 58% para 68%. Já o percentual dos que ouvem músicas on-line passou de 57% para 63%.
Nesse novo perfil de uso da internet, o volume de dados sendo utilizados na rede cresce cada vez mais e voltam à tona os debates de modelos de negócios com relação à forma de gerenciar as cobranças. No final do ano passado a neutralidade da internet foi revogada nos Estados Unidos, o que significa, de forma resumida, que empresas de telecomunicações americanas podem vender pacotes de dados baseados no conteúdo que será acessado.
Atualmente a legislação brasileira proíbe qualquer forma de distinção da cobrança de internet a partir do conteúdo. Empresas de telecomunicações podem cobrar apenas pela conexão, sem distinguir de forma alguma o que está sendo acessado. Esse direito, chamado de Princípio da Neutralidade da Internet, é garantido pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14). Mas a possível mudança na legislação americana, em dezembro do ano passado, traz à tona dúvidas quanto à realidade brasileira. Com base nestes questionamentos a Agência Ciência e Cultura conversou com o professor Sérgio Amadeu da Universidade Federal do ABC (UFABC). Ele é membro do Comitê Científico Deliberativo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber) e até 2013 fez parte do CGI.Br. Grande defensor da internet neutra, Amadeu foi ativista pela aprovação do Marco Civil, em 2014.
Ciência e Cultura: O que seria esse Princípio da Neutralidade da Rede?
Sérgio Amadeu: É o princípio pelo qual a internet funciona desde os primórdios até hoje. Que princípio esse esse: é o que diz que quem controla os cabos, a infraestrutura de telecomunicações, a fibra ótica, não pode interferir no fluxo de informações que passa por esse cabos. Tem que ser neutro em relação ao que os usuários fazem na internet. Mas como a comunicação digital passou a ser a principal comunicação do planeta, esse oligopólio mundial de telecomunicações percebeu que tem um enorme poder por controlar a infraestrutura da Internet, os cabos por onde passam os dados. Por isso eles querem “filtrar” esse tráfego de dados, para obrigar as empresas e as pessoas a terem que pagar mais pelo seu uso. Atualmente eles só podem cobrar pela diferença de velocidade. Por exemplo, quem tem 1 Megapixel por segundo (Mp/s) de acesso paga menos que aqueles que tem 10 Mp/s. Mas seja quem tem 1 Mp ou quem tem 10 Mp pode acessar vídeo streaming, pode acessar música, pode acessar a web. Não tem nenhuma restrição ou não deveria ter nenhuma restrição de acesso. O que a quebra da neutralidade pode trazer é que essas operadoras vão tentar transformar a internet em algo semelhante à uma rede de TV à cabo, onde se tem pacotes de acesso.
Ciência e Cultura: Como esses pacotes de acesso vão funcionar na Internet?
Sérgio Amadeu: Para acessar determinadas aplicações em vídeo você terá que pagar mais, para acessar música tem que pagar um outro tanto. Para acessar determinados sites que não tem acordo com aquela operadora você terá uma lentidão maior, então se você quiser mais velocidade terá que pagar mais… Eles querem fazer um modelo de negócio que é cobrar não só por velocidade diferenciada, mas limitar a nossa navegação na web, restringir nossa liberdade e para recuperar esse acesso a gente vai ter que pagar muito mais caro. Por isso é um absurdo a quebra de neutralidade da rede. Temos um problema: é óbvio que de um Congresso Nacional como o nosso pode surgir um projeto de lei para mudar o Marco Civil da Internet. Mas é preciso ficar muito claro: no Brasil nós temos uma lei que defende a neutralidade da rede, coisa que os EUA não têm. E obviamente nós estamos alertas, os pesquisadores, os ativistas. Todos que precisam da internet tem que ficar alertas. O clima que as operadoras de telecom querem criar de “caiu a neutralidade nos EUA então vai cair também no Brasil e na Europa” não é verdade. No Brasil nós estamos com uma proteção muito maior e não tem nenhuma obrigação que diga que porque os americanos vão pagar mais e que a internet deles vai ser pior que a nossa vai ser também. Não existe nenhuma relação direta sobre isso.
Ciência e Cultura: Poderia nos falar um pouco sobre o Marco Civil da Internet (MCI) e a importância dele no Brasil e no mundo?
Sérgio Amadeu: O Marco Civil da Internet é uma lei que foi aprovada no Brasil e é referência mundial para a regulação da internet. Esse marco é considerado a lei mais avançada sobre a internet em todo o mundo.
Ciência e Cultura: Sobre o que trata o MCI?
Sérgio Amadeu: Ele tem três questões fundamentais. O primeiro é a defesa da liberdade e privacidade do cidadão no uso da internet no Brasil, o segundo é o princípio da Neutralidade da Rede e o terceiro é, na verdade, uma série de regras que dão estabilidade jurídica para os provedores de acesso, de aplicação e para o próprio comércio eletrônico no Brasil. Então [o marco] é uma lei civil, não uma lei penal / criminal. Ele busca estabelecer a cidadania na internet, quais são os direitos das cidadãs e cidadãos no uso da internet aqui no Brasil. Então atualmente o Brasil tem uma lei muito evidente, muito clara na defesa da neutralidade da rede, coisa que os norte americanos não tem. Por isso que na troca do governo Obama para Donald Trump, o Trump conseguiu nomear um novo presidente da FCC, que é a Comissão Federal de Comunicação nos EUA, o equivalente à Anatel, e com essa troca ele passou a ter um voto à mais para quebrar a neutralidade da rede.
Ciência e Cultura: Como começou-se a discutir a necessidade dessa lei no Brasil?
Sérgio Amadeu: Ela se iniciou com um debate colaborativo na rede, com a participação da sociedade na formulação da própria lei, a partir de uma proposta inicial da Fundação Getúlio Vargas e o governo. Na época do então presidente Lula se iniciou o processo e terminou na consulta online no governo Dilma. Foi a partir, portanto, de uma formulação colaborativa entre especialistas e membros da sociedade civil organizada. Contando com mais de duas mil contribuições e duas rodadas de sistematização, se chegou ao projeto de lei que foi enviado ao Congresso. Quando o projeto chegou no Congresso Nacional, o lobby de vários grupos que queriam uma internet mais controlada retardaram a aprovação do Marco Civil. Mas uma pressão muito grande da sociedade o Marco foi aprovado no início de 2014 e foi regulamentado logo em seguida.
Ciência e Cultura: A revogação da neutralidade da rede nos EUA traz alguma consequência direta aqui no Brasil, além dessa pressão exercida pelas companhias de telecom?
Sérgio Amadeu: Não, nenhuma. Só a pressão. Porque o fato de lá as operadoras impedirem os americanos ou cobrarem mais pelo acesso a determinadas aplicações da internet não significa que aqui nós precisamos ter o mesmo modelo de cobrança.
Ciência e Cultura: Com relação a servidores que ficam hospedados nos EUA, o usuário brasileiro vai sofrer com alguma mudança?
Sérgio Amadeu: Não. Por exemplo, vamos supor que tem um garoto aqui no Brasil que acessa um game que está hospedado nos EUA. Ele não vai ter que pagar mais pela conexão de internet. Por outro lado é possível que a empresa do jogo que ele joga talvez aumente o preço da mensalidade porque ela vai pagar mais para as operadoras lá. Mas o jogador aqui não Brasil não terá que pagar mais nada pela internet. A conexão dele não será alterada.
Ciência e Cultura: Mas se a neutralidade da rede fosse realmente revogada aqui no Brasil quais seriam as consequências mais imediatas?
Sérgio Amadeu: Se fosse quebrada aqui provavelmente o custo da internet, os planos que a gente usa teriam um acréscimo. Nós, por exemplo, além de pagar a mensalidade para o Netflix, teríamos que pagar uma conexão maior para poder acessar o Netflix. Não bastaria pagar uma velocidade maior. Além da velocidade a gente teria que provavelmente pagar um plano específico que permitisse acessar o netflix. Para acessar o Youtube, seria outro plano. Para acessar o Whatsapp teríamos que pagar um outro plano diferenciado também. Então o custo da internet iria subir para todos os usuários no Brasil se a neutralidade fosse quebrada.
Ciência e Cultura: Quais argumentos as operadoras de telecom podem usar para defender uma possível quebra de neutralidade?
Sérgio Amadeu: Eles dizem, de uma maneira falaciosa, que isso seria benéfico para os mais pobres. O que é muito curioso. Uma pesquisa, realizada pelo Comitê Gestor da Internet, no meio urbano e rural, com uma amostra muito grande de indivíduos, demonstra que os usuários de internet brasileiros que ganham até um salário mínimo usam mais vídeos do que email, por exemplo. [recursos multimídia como vídeos, imagens e áudios consomem mais dados que outras formas de consumo da internet]. O Eduardo Cunha, que era o principal lobista das teles contra o Marco Civil da Internet, dizia “se a gente tiver neutralidade da rede os mais pobres serão prejudicados”. Eu demonstrei com essa pesquisa que é o contrário: se for cobrado mais por multimídia os mais pobres serão prejudicados, pois ganham menos e terão que pagar muito mais. Então, a quebra de neutralidade é feita exclusivamente para atender um grupo diminuto de operadoras de telecom, um oligopólio mundial, que quer, aproveitando essa hiperconectividade de todos e com a vinda da Internet das coisas querem ampliar muito mais os lucros do que eles já tem.
Ciência e Cultura: Pode falar um pouco mais sobre a Internet das coisas e a relação disso com a neutralidade?
Sérgio Amadeu: A Internet das Coisas está começando a ter inúmeras aplicações para casas, carros, ambientes urbanos. Basicamente é isso: vários sensores e dispositivos conectados à rede em objetos do dia-a-dia. Isso vai aumentar ainda mais o tráfego da internet. E o que eles estão querendo fazer é aproveitar toda essa hiperconectividade, quebrar a neutralidade para poder ganhar muito mais dinheiro.
Ciência e Cultura: Como a sociedade deve se portar diante disso tudo?
Sérgio Amadeu: A sociedade obviamente tem que lembrar que essas empresas [de telecom] tem concessão pública. Então elas tem obrigação de atender o interesse social. A internet hoje é um serviço de utilidade universal, de utilidade pública. Extremamente necessário para todos nós. A internet foi considerada um direito humano fundamental. Então nós não podemos admitir que um grupo diminuto de corporações queira impor custos elevados a toda a sociedade para poder aumentar o lucro dos acionistas. As pessoas têm que falar sobre isso na rede. Os jornais tem que explicar para todo mundo o que é a neutralidade e a importância de defendê-la. Isso vai tirando espaço de algum deputado qualquer querer fazer um projeto de lei para cancelar esse artigo do Marco Civil ou anular esse artigo que garante a neutralidade da rede.
Ciência e Cultura: Dizem que existem algumas brechas no Marco Civil. Essas brechas estão relacionadas com o princípio da neutralidade?
Sérgio Amadeu: Não, ele tem brechas em outras áreas. Por causa da pressão conservadora para não aprovar o Marco Civil ele tem brechas na questão da privacidade. Na questão de a polícia ter acesso aos dados das pessoas. Isso tem algumas brechas, mas depende da interpretação do judiciário.
Ciência e Cultura: Mas e a questão dos pacotes de dados para a rede móvel?
Sérgio Amadeu: No meu modo de ver é completamente ilegal a cobrança por pacotes de dados em celular. Isso é um problema de defesa do consumidor porque quebra a neutralidade da rede. Não é aceitável. Pacote de dados não tem cabimento no celular. Isso é um absurdo e querem levar isso para as residências das pessoas.
* Estudante de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA