O crime de racismo na internet e fora dela foi tema de conversa com o coordenador do Programa Direito e Relações Raciais (PDRR/UFBA), Samuel Vida.
Por Rebeca Almeida*
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Imagem: Pixabay
A internet é um meio social onde diferentes indivíduos podem expressar opiniões e discutir pensamentos, no entanto, um fenômeno crescente são os discursos racistas propagados na rede. Segundo dados da SaferNet, uma plataforma online para denúncia e gestão de crimes cibernéticos, racismo é o segundo crime mais denunciado, atrás apenas da pornografia infantil. O Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em denúncias por racismo online, atrás dos Estados Unidos e Irlanda. (Leia nossa matéria sobre racismo na internet).
Para compreender melhor o problema do racismo na rede pela perspectiva do Direito, a Agência Ciência e Cultura conversou com o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Samuel Vida. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), Vida também é coordenador do Programa Direito e Relações Raciais (PDRR/UFBA). Confira.
Ciência e Cultura: O que é considerado um caso de racismo e o que é um caso de injúria racial?
Samuel Vida: Essa é uma distinção criada pela técnica jurídica que tem como função já de dispersão do potencial de reação às denúncias de racismo. Tecnicamente, a diferença é a seguinte: segundo a tradição jurídica em vigor, a injúria é uma ofensa individual à honra subjetiva de um sujeito. Ou seja, se eu te chamo de “Nega Maluca” eu estou praticando injúria. Se eu digo “as negras são malucas”, eu estou praticando racismo. Deixa de ser uma ofensa individual e passa a ser uma ofensa a toda coletividade, depreciação genérica da condição racial.
No nosso entendimento, ambas as práticas são racismo, variações do racismo. Mas, tecnicamente, volto a dizer, é uma estratégia evasiva, dispersiva. Se adotou essa dupla estrutura de criminalização que na prática faz com que quem responde por injúria possa contar com tratamento mais brando. Não é inafiançável, não é imprescritível, até pouco tempo atrás era um crime de ação penal privado, que implicava que a vítima tinha que contratar um advogado e entrar com uma ação… então são “bloqueios”, “barreiras”, que são criadas para dificultar o manejo desse direito em favor da vítima. Isso esvazia o potencial porque do ponto de vista técnico e jurídico isso não é racismo, é injúria. É outro delito, outra prática.
Ciência e Cultura: Quais as especificidades do racismo praticado na internet do praticado offline?
Samuel Vida: A única especificidade é a sensação de anonimato ou de inacessibilidade que parece marcar a subjetividade de quem pratica esses atos pela internet. Pela possibilidade de usar perfis fakes e imaginar que não vai ser descoberto.Também parece que o meio remoto libera com mais ênfase aquilo que muitas pessoas pensam, acham, acreditam, mas, que no contato mais direto, costuma ter mais constrangimento de externalizar. Talvez essa seja a única distinção. Do ponto de vista mais substantivo, aquelas manifestações, agressões, injúrias ou atos atentatórios praticados pelas redes sociais, pela internet, são a expressão do sentimento médio que marca a intolerância racial e a disponibilidade para exercer uma atitude discriminatória do brasileiro. As questões raciais são um foco de permanente tensão no Brasil e o que a internet possibilita talvez seja a transgressão daquilo que alguns chamam de racismo cordial, que se reveste nas formas mais indiretas, evasivas e sutis de manifestar a discriminação. Parece que nas redes sociais esses meios são, digamos assim, abandonados e se utiliza um expediente mais direto, mais agressivo, mais cru. Que volto a dizer, reflete algo real, apenas manifestado de forma diferenciada.
Ciência e Cultura: Então, eu poderia dizer que o racismo na internet é uma consequência de um problema que existe na sociedade como um todo?
Samuel Vida: Seguramente o racismo é o elemento que estrutura a sociedade brasileira, em todos os domínios. Nas suas formas mais indiretas, no plano institucional, quando se têm toda uma mobilização de estruturas, de procedimentos, de normas, de valores que são intrinsecamente excludente para os negros e suas trajetórias até o cotidiano e suas relações de convivialidade. Eu diria que inclusive no terreno mais insuspeito para o senso comum, que é o terreno da afetividade e da sexualidade. Então, o racismo na internet é só uma expressão, por uma modalidade um pouco diferente, daquilo que está no cotidiano das relações sociais no Brasil.
Ciência e Cultura: Como é que o Direito trata a injúria racial através da internet?
Samuel Vida: Primeiro o Direito ainda lida mal com o racismo porque ele pretende capturar apenas e tão somente aquelas manifestações mais explícitas, o que muitas vezes deixa de fora grande somas de expressões e práticas racistas. No caso específico da internet, como as agressões são mais diretas, o Direito tecnicamente está habilitado a responder. Há uma mobilização para a responsabilização penal pela legislação em vigor, que considera racismo crime inafiançável, imprescritível, sujeito à pena de reclusão ou quando se refere a injúria racial. Então, em tese, há condições de punibilidade, o problema vai acontecer na esfera judicial porque normalmente os magistrados brasileiros ou desclassificam essas denúncias ou aplicam um expediente processual penal chamado de suspensão condicional do processo, pelo qual, o réu primário, para determinadas práticas delituosas sujeitas até um determinado limite de punição, podem se beneficiar de uma interrupção do processo. Como os criminosos racistas em geral são as pessoas chamadas de “pessoas de bem”, que não têm precedentes criminais, quase sempre têm direito a esse tipo de benefício que acaba gerando, do ponto de vista efetivo, a impunidade.
Ciência e Cultura: Mas tem algum posicionamento em relação à mudanças para julgar esses tipos de casos no Direito?
Samuel Vida: Há uma discussão sobre isso buscando dar maior efetividade, mas há também muita controvérsia, pois o Direito não pode ser pensado como um instrumento de combate ao racismo apenas na esfera penal. Essa é a esfera menos propícia a reverter qualquer tipo de discriminação, ainda mais quando ela se reveste de natureza estrutural como o racismo. Portanto é preciso trazer para o direito a prospectiva de dar conta do racismo em outros domínios: nas relações civis, no Direito Constitucional, no Direito Administrativo, no Direito Educacional… Então, embora existam outras questões que pretendem aperfeiçoar, me parece que são discussões sujeitas à um risco muito grande de duas ilusões: uma de corrigir o racismo pelo Direito Penal, a outra de ter a ilusão de que a magistratura, que também é racista, vai aplicar qualquer lei, por mais “precisa” que ela seja. Porque na interpretação há sempre subterfúgios que podem ser evocados para descaracterizar [como crime]. O mesmo acontece com o feminicídio ou outros comportamentos preconceituosos e discriminatórios de natureza estrutural.
Ciência e Cultura: E quais seriam as possíveis soluções?
Samuel Vida: Eu penso que, ainda que devamos manter essas condutas criminalizadas, não devemos apostar na estratégia de que é pelo direito penal que nós vamos desconstruir o racismo ou o machismo ou a homofobia. Essas medidas penais são meramente simbólicas para se construir, inclusive, uma reação de condenação moral e ética à essas práticas. Mas elas só são efetivamente enfrentadas na esfera de outros territórios. Até porque, imagine se todos os machistas fosse colados na cadeia? Se todos os racistas fossem colocados na cadeia? Se todos os homofóbicos fossem colocados na cadeia? Não tem a mínima possibilidade, nós despovoaríamos a sociedade brasileira. São metas inatingíveis pelo direito penal. Então, elas devem existir para casos exemplares, para casos mais agudos e sobretudo para disputa simbólica, disputa de valores, disputa ética no interior da sociedade.
* Estudante de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA