Metodologia utilizada permite que qualquer pessoa contribua com o trabalho, com o envio do nome de pesquisadoras mais um pequeno perfil ou histórico de sua produção
Por Lídice Oliveira
oliveira.lidice@gmail.com
Se pronunciada em Salvador, a palavra “dendê” remete naturalmente à culinária local e aos quitutes das “baianas de acarajé”, um mundo ainda essencialmente feminino. Mas, e se falarmos em “Ciência com Dendê”? Aí, o gênero muda. A exposição que leva esse nome sugestivo, aberta à visitação pública na capital baiana desde 2009, apresenta 10 painéis em homenagem (merecida) a grandes cientistas do estado.
Entre eles, contudo, nenhuma mulher. O Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade – Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) aproveitou essa deixa e respondeu com pesquisa. Já iniciou um mapeamento, visando identificar as pesquisadoras baianas que atuam ou aturam na produção de conhecimento, convencido de que pode dar uma boa contribuição na luta contra a invisibilidade das mulheres no campo da ciência e tecnologia.
O Nugsex é vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da Uneb e dedica-se ao ensino, pesquisa e extensão nas áreas de gênero e sexualidade. O trabalho, sob a coordenação da antropóloga Suely Messeder, começou com pesquisas na internet direcionadas aos arquivos e sites de instituições e fundações, além de visitas exploratórias às universidades locais. Também participam dos estudos os pesquisadores Marcos Martins, Érico Nascimento e Raphaella Oliveira, equipe formada por um grupo multidisciplinar de 24 investigadores.
A própria metodologia utilizada na pesquisa tende a abrir ainda mais esse leque, afinal, qualquer pessoa pode contribuir com o trabalho, enviando ao Nugsex a indicação do nome de pesquisadoras, com um pequeno perfil ou histórico de sua produção. Com essa estratégia, o pool de pesquisadores quer facilitar o processo de investigação, contornando a dispersão das informações e a inexistência de arquivos organizados quando se fala de cientistas baianas.
Banco de dados e catálogo – A pesquisa pretende mapear a atuação feminina em todas as grandes áreas do conhecimento, como as ciências exatas e da terra, ciências biológicas, engenharias, ciências da saúde, ciências agrárias, ciências sociais aplicadas, ciências humanas, linguística, letras e artes. Em processo de formação, o material (biografia e fotos) deverá gerar um banco de dados para a própria Uneb, a publicação de um catálogo e, pelo menos, 10 banners para prestar a homenagem às mulheres que a Exposição “Ciência com Dendê” não contemplou.
Suely Messeder admite que o mapeamento ocorre tardiamente, já que o movimento de difusão das ações das mulheres nos espaços públicos teve início ainda na década de 70, puxado pelas teorias femininas que floresceram à época. “Infelizmente, na Bahia isso não aconteceu de forma contundente”, reconhece, ao endossar o descontentamento com a exposição abrigada no próprio Museu de Ciência e Tecnologia da Uneb. “Vamos fazer a arqueologia das doutoras baianas e daremos prioridade, nesse início, às ciências duras”, avisa Suely, cujo Nugsex funciona no mesmo museu, e, por ironia, quase em frente ao espaço da exposição.
Mas existem outras estudiosas debruçadas sobre o tema ciência, gênero e educação, e também interessadas em construir essa memória da produção feminina nas mais diversas áreas do saber. E que entendem essa invisibilidade, nos dias de hoje, como um fenômeno menos atrelado a uma atitude deliberada e consciente de excluir as mulheres, e, sim, decorrente de um viés típico das comunidades científicas, que remonta às origens da ciência moderna, no século XVII.
Assimetria e laboratório - “A ciência moderna foi concebida como uma atividade essencialmente masculina e do ponto de vista epistemológico é profundamente androcêntrica”, afirma a bióloga Angela Freire Lima e Souza, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher (Neim), vinculado à Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Assim, enquanto os homens estão associados à razão, as mulheres continuam vinculadas à emoção, e essa dicotomia fatalmente repercute na atuação das mulheres no campo científico”, explica.
Essa assimetria de gêneros é visível, diz a pesquisadora, tanto em termos quantitativos quanto estruturais, detectável na posição que as mulheres, de modo geral, ocupam nos centros de pesquisa e universidades. Apaixonada pelo tema, Angela já realizou diversos estudos na área e, no momento, prepara um inventário de mulheres da área de ciências naturais na Bahia, com ênfase nas produções científicas e no impacto de seus trabalhos no desenvolvimento da ciência e tecnologia do estado. O recorte do estudo é a produção da Ufba, no período entre 1945 a 2005.
Embora ainda não esteja na fase da análise qualitativa da sua pesquisa, Angela já observa alguns aspectos, como a manutenção da supremacia feminina nos cursos de enfermagem e nutrição. Na medicina, a situação mudou e hoje se verifica, muitas vezes, um ingresso de mulheres em número até superior aos homens na graduação. Porém, na hora das especializações, percebe-se a manutenção de redutos quase exclusivamente masculinos em áreas como, por exemplo, a cirurgia. Já na pediatria, sobram mulheres.
“É no momento da especialização que a assimetria se confirma”, diz Angela, que atribui essa tendência às escolhas feitas pelas próprias mulheres, com base no que aprendem socialmente e no próprio núcleo familiar. “Elas ainda ouvem que são boas cuidadoras, mas que não são tão boas em matemática como os homens, e balizam suas escolhas profissionais pelo que aprendem ao longo da vida e durante a sua formação escolar”, afirma a pesquisadora.
Quando a questão vai para o laboratório, fica fácil entender o esforço extra que as cientistas e pesquisadoras precisam fazer para apresentar resultados. E nem sempre conquistar o reconhecimento. A comunidade científica possui casos notórios, que ilustram bem essa luta feminina. Um dos mais emblemáticos envolve a biofísica inglesa e especialista em difração de raios X, Rosalind Franklin (1920-1958), cujo trabalho (uma imagem da molécula de alta qualidade) levou à descoberta da estrutura em dupla hélice do DNA, em 1953.
Apesar disso, o reconhecimento público coube ao trio de cientistas James Watson, Maurice Wilkins e Francis Crick, agraciados com o Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1962. Ela ficou de fora, pelo fato de o prêmio não ter caráter póstumo, e até recentemente o seu nome sequer costumava aparecer na história das descobertas do DNA. Ela passou a ser conhecida como “A dama sombria”, por conta de um apelido pejorativo que recebeu de Watson, mesmo depois de sua morte, devido a um câncer, causado, supostamente, pela exposição excessiva à radiação nos laboratórios de pesquisa. A sua história inspirou a biografia “The Dark Lady of DNA”, de Brenda Maddox, ainda sem tradução no Brasil.
A cientista francesa Françoise Barre-Sinoussi, prêmio Nobel de Medicina e uma das descobridoras do vírus HIV, também admitiu problemas no trânsito pelo mundo científico, em entrevista à Revista Época, em março de 2009, ao lembrar que, no início dos anos 80, só uma parcela pequena de mulheres conseguia alcançar os mais altos postos nas instituições de pesquisa. “Quando apresentavam trabalhos em congressos científicos, as mulheres percebiam a desconfiança dos homens em relação aos dados demonstrados por elas”, afirmou à revista “A coisa mudou, mas não em todos os lugares do mundo”, ressaltou Françoise.
Em outro estudo, já concluído, no qual investiga as implicações de gênero na formação e no exercício profissional de mulheres biólogas que atuam como pesquisadoras, Angela constatou que as próprias mulheres não “percebem” resquícios de discriminação no seu dia-a-dia, embora a pesquisa tenha verificado que elas são mais numerosas na área de ciências biológicas, mas que poucas ocupam ou ocuparam posição de destaque como cientistas nas suas respectivas instituições.
A superação das dificuldades das mulheres no mundo da ciência, assim como a correção das distorções históricas no seu campo de trabalho, dependeria de uma mudança estrutural profunda na sociedade, que “alterasse a divisão de responsabilidades” de homens e mulheres, defende. Ou seja, ainda hoje, não importa a posição profissional e social ocupada pela mulher: o papel de cuidar da família, controlar os assuntos da casa e dos filhos continua quase inteiramente sob a sua responsabilidade. E é nesse aspecto que a mulher leva desvantagem (ou vê-se obrigada a fazer malabarismos) em relação ao homem, para exercer com qualidade e apresentar resultados quando decide abraçar as atividades científicas. E nem precisa lembrar o quanto o método científico exige em termos de horas de trabalho e dedicação.
“O tempo que a mulher dispensa a essas atividades é, em geral, comparativamente menor em relação ao homem, pois se ela tem filho e a criança está com febre, é a mãe que para tudo o que está fazendo para cuidar, enquanto o marido sai para o trabalho; se ela, por acaso, tem um gabinete em casa para estudar, e o filho bate na porta por alguma necessidade, ela interrompe e vai atendê-lo”, exemplifica Angela. A seu ver, a equidade entre homens e mulheres nesse campo só poderá existir quando os modos de produção da ciência se ajustar às questões de gênero e os homens passarem a entender que a criação dos filhos e os assuntos da família são responsabilidades a serem efetivamente compartilhadas, e não uma obrigação feminina e exclusiva.
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