Com um olhar inusitado, dois pesquisadores exploraram as tendências da masculinidade heteronormativa contemporânea a partir de uma série reconhecida por inspirar discussões feministas
POR ANA GENEROSO*
generoso.a.carolina@gmail.com
Na Hungria, Orbán. No Estados Unidos, Trump. No Brasil, Bolsonaro. Num mar agitado por ondas conservadoras, o nacionalismo exacerbado chama atenção para a discussão da distopia na sociedade e na mídia. Desde 2012, com a adaptação para o cinema de The Hunger Games, de Suzanne Collins, a cultura-pop alimentou um interesse pelas narrativas de sociedades futuristas desoladas por governos totalitários e opressivos.
Na academia, a distopia divide o espaço com o estudo da masculinidade contemporânea. Através do romance de Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale, os pesquisadores Felipe Borges e Isabelle Chagas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) discutem a retrotopia de Bauman e o desejoso aceno à masculinidade do “homem alfa” no artigo: “A men’s place: a nostalgia da masculinidade em The Handmaid’s Tale”. O artigo foi apresentado na quinta-feira, 8, durante a mesa “Audiovisualidades, sexualidades e o tempo”, promovida pelo VIII Encontro de Historicidades dos Processos Comunicacionais.
Contrário ao senso comum, distopia não é antônimo de utopia. “Distopia é a utopia que deu errado. Ou melhor, a utopia que deu certo para alguns, mas não todos”, afirma Borges. Uma excelente descrição para o regime teocrático da República de Gilead, nação fictícia que é palco do romance.
Num mundo assolado pela infertilidade, a procriação se dá por meio de um estupro “ritualístico” das mulheres férteis por parte da elite masculina. Na série, a paternidade é antes de tudo uma realização do projeto de ser homem. O ideal da “ordem masculina” é projetado no desejo de ter filhos homens para perpetuar a estrutura de poder vigente.
O mundo de Atwood dialoga com o que os pesquisadores chamam de “onda nostálgica da masculinidade” e nos apresenta, não um futuro futurista, mas um futuro passadista. Segundo a autora: “Quando pensamos no passado são as coisas bonitas que escolhemos sempre. Queremos acreditar que tudo era assim”. Gilead lida com a temeridade e imprevisibilidade do futuro se refugiando no conhecido: o passado. Ou melhor, nos papéis e valores do passado.
Através da imposição física e ideológica, em Gilead, a masculinidade se expressa no retorno ao “homem alfa” e ao papel de provedor do lar e agente de violência. A série retrata o retorno à era da incontestabilidade masculina, um discurso desejoso que se manifesta na sociedade, hoje, por meio da masculinidade tóxica.
Os pesquisadores usam o exemplo de Gilead para alertar contra a onda de conservadorismo que, nos últimos anos, retorna ao cenário nacional e mundial. Os discursos nostálgicos, os clamores pela “ordem e prosperidade” de tempos passados, são retóricas que mascaram períodos violentos e autoritários sob a ilusão de segurança daquilo “que se conhece”. A masculinidade que se tenta resgatar ameaça as conquistas nos direitos sociais e no campo dos estudos de gênero. Conceitos como espectro de gênero, masculinidade fluída e construção social da identidade são incompatíveis com o simplismo e a hegemonia exigidos pela masculinidade tóxica.
A Rede Historicidades dos Processos Comunicacionais promove, bianualmente, o encontro de pesquisadores da área de comunicação. Este ano, a segunda edição ocorreu nos dias 7, 8 e 9 de novembro, no auditório da Faculdade de Comunicação da UFBA, campus Ondina. A mesa de Audiovisualidades, sexualidades e o tempo também discutiu outros dois artigos.
Juliana Soares, Thiago Ferreira e Tess Chamusca apresentaram “Youtube e masculinidades em processo: disputas contemporâneas em torno dos sentidos de ser homem”, através da análise dos canais Manual do Homem Moderno, Alphalife e Papo de Homem. A masculinidade foi analisada sob a ótica da construção social do cuidado por no âmbito da aparência, da saúde e do cuidado para com o outro.
Outros três canais de Youtube, Drag-se, Põe na roda e Canal das Bee, foram base para o trabalho de Juliana Gutmann, Edinaldo Mota e Fernanda Maurício. Em “Gêneros em trânsito no Youtube: mutações culturais, performance e os relatos em si” os pesquisadores analisaram o percurso da narrativa LGBT na rede.
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*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA