Especialistas em estudos sobre os povos nativos brasileiros afirmam a necessidade de valorizar os saberes indígenas que podem também contribuir com pesquisas acadêmicas de diversas áreas do conhecimento científico, como por exemplo, nos estudos acerca dos corpos celestes e fenômenos que ocorrem no céu.
POR GIOVANNA HEMERLY*
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A observação do céu é uma prática milenar realizada por diversos povos de culturas distintas. Dentre esses povos, os indígenas brasileiros contam suas sabedorias sobre os astros através de histórias classificadas como contos ou mitologias. Contudo, pesquisadores que conviveram e aprenderam a cultura e sabedorias desses povos explicam que o que muitos veem como mera mitologia, na verdade, é uma forma encontrada para a transmissão dos conhecimentos empíricos que indicam a correlação entre os eventos celestes com eventos naturais do planeta Terra. O assunto foi discutido no segundo dia do evento promovido pelo Coletivo Afroindigessência I Encontro Da Aldeia para a Universidade, realizado no Pavilhão de Aulas (PAF V) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Assim na terra, como no céu - O curandeiro e líder da comunidade indígena Thá-fene, Waky Kariri-Xocó/ Funi-ô, falou sobre a importância dos céus para sua tribo. Bem diferente da astronomia convencional, que é baseada em cálculos e métodos teóricos, os Kariri-Xocó/ Funi-ô buscam analisar de forma prática os movimentos celestes e interpretar o que cada movimento pode estar representando. Segundo o líder indígena, é a partir dos fenômenos celestes que seu povo compreende os fenômenos na Terra. Por isso, desde de cedo, os anciãos da tribo ensinavam a importância de estar atentos ao movimento celeste. “Nós somos um povo que gosta de trilhar livremente pelas estrelas. Nós não contamos as estrelas, apenas trilhamos entre elas. O universo, o cosmo celeste, o universo solar, tudo tem uma ação, tem um movimento. E tudo que muda, nós procuramos acompanhar, ter atenção”.
O doutor em Astronomia de Posição e Mecânica Celeste pela Université Pierre et Marie Curie e especialista em etnoastronomia, Germano Bruno Afonso, explicou que a partir da observação do céu, os povos nativos brasileiros passaram a perceber que dependendo da posição dos astros, determinados eventos naturais aconteciam, como as pororocas que sempre ocorriam em períodos de lua nova ou lua cheia, ou a agitação dos animais nas matas em tempos de lua cheia. Desta forma, diversas tribos passaram a entender existência de uma ligação importante entre o céu e a terra, possibilitando a previsão dos fenômenos.
Diversas tribos acreditam que, por conta dessa relação de eventos, considerada originária de um propósito místico, tudo que encontra-se na Terra possui um correspondente no céu. Um exemplo dado pelo professor é a associação feita entre os animais terrestres e as constelações. “Na visão de mundo dos indígenas, na qual não se separa matéria do espírito, a terra é apenas um reflexo do céu. Então se tem uma formiga na terra, tem também uma no céu, isso vale inclusive para as constelações”, explicou Afonso.
Conhecimento ancestral na universidade - Contudo, o pesquisador contou que a incompreensão sobre a cultura dos povos nativos brasileiros por diversos cientistas, especialmente das áreas exatas, e o preconceito com a religiosidade bastante presente nessas culturas faz com que as narrativas indígenas sejam vistas apenas como fantasias, ignorando o conhecimento empírico “escondido” nas histórias que são passadas por gerações. “Eu, como sou professor de ciências exatas, procuro a ciência que tem nas histórias de índio contada para as crianças. Pois a mitologia indígena é a maneira encontrada de passar de pai para filho o conhecimento milenar”, reiterou Afonso.
O animismo, crença de que todas as coisas possuem alma, segundo o estudioso, é um dos principais aspectos do xamanismo indígena que despertam sentimentos de preconceito da academia científica com relação ao que é dito pelas tribos sobre astronomia. No entanto, é justamente este aspecto que, além de incentivar nos povos nativos os cuidados com a natureza, também proporciona um olhar diferenciado sobre os fenômenos naturais, no qual acontecimentos que passariam despercebidos por um cientista não indígena são observados. Por isso, ele afirma que as universidades deveriam fazer mais parcerias com as comunidades.
A interação entre a comunidade científica e as comunidades nativas pode ser exemplificada a partir da observação indígenas sobre o comportamento do mundo animal associado às fases da lua. Eles notaram que, durante a lua cheia, a quantidade de mosquitos é maior, o que foi importante, na aplicação de inseticidas no combate ao Aedes aegypti.
O céu indígena - As principais constelações reconhecidas pelos povos nativos encontram-se na Via Láctea, chamada por eles de “Caminho da Anta” ou “Morada dos Deuses”. No entanto, diferentemente das constelações do zodíaco convencional, para a formação das imagens representativas no céu, não é considerada apenas as estrelas, mas todos os demais corpos celestes. Para Germano Bruno, isto facilita a visualização das constelações pelos leigos em astronomia, já que é muito comum a dificuldade em visualizar as figuras do zodíaco convencional.
Dentre as constelações observáveis no Hemisfério Sul, o Cruzeiro do Sul é uma das mais importantes. Chamado de Beija-flor ou Colibri, ele é utilizado tanto como referencial para a localização do Sul geográfico, como para reconhecer as estações do ano. Isso é bastante importante para o calendário de atividades de plantio, colheitas e caça. Outro astro importante é a lua. Germano Bruno explica que, antes mesmo de Isaac Newton, afirmar em seus estudos, os indígenas brasileiros já conheciam a influência dos ciclos da lua sobre as marés.
Referências:
MARIUZZO, Patrícia. O céu como guia de conhecimentos e rituais indígenas. Revista Ciência Cultura. Vol.64 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000400023>. Acesso em: 08 nov. de 2018.
AFONSO, Germano Bruno. O céu dos índios do Brasil. Anais da 66ª reunião anual da SBPC – Rio Branco, AC – julho/2014 <http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000400023>. Acesso em: 08 nov. de 2018.
AFONSO, Germano Bruno. Mitos e Estações no céu Tupi-Guarani. Scientific American Brasil. Disponível em: <https://bit.ly/1zsrDQo>. Acesso em: 08 nov. de 2018.
*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA