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Atualizado em 26 DE novembro DE 2018 ás 23:30

Entre gênero, raça e classe

O mês do novembro negro da UFBA deste ano trouxe a temática Yabás: da ancestralidade à resistência” e convidou a escritora Carla Akotirene para falar sobre interseccionalidade e a importância deste conceito para a compreensão da discriminação sofrida pela mulher negra ainda nos tempos atuais

POR GIOVANNA HEMERLY*
gihe296@gmail.com

No Brasil, Yabá é um termo que significa “mãe rainha”. A palavra, utilizada comumente pelas religiões de matrizes africanas para referir-se às orixás, está associada ao arquétipo do feminino como símbolo de força, independência, sustento e empoderamento. É uma referência à mãe guerreira, que luta contra as injustiças, tanto contra si e contra seus filhos, não permitindo qualquer tipo de expressão de violência ou opressão.

Essas características de resistência, autoconfiança e imponência feminina das Yabás inspiram suas filhas na luta diária pela defesa dos seus direitos como mulher negra. Mas esta luta não se restringe apenas a questões sociais de gênero, pois “as diversas questões sociais cruzam-se entre si”. É o que diz a assistente social e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo (NEIM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Carla Akotirene, palestrante convidada pela Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da UFBA para contar sobre seu livro “O que é interseccionalidade?”, da coleção Feminismos Plurais, lançado pela editora Letramento.

Invisibilidade de uma causa social - Em 1976, cinco mulheres negras abriram um processo contra uma das maiores empresas de fabricação de carros nos Estados Unidos, a General Motors (GM). A acusação era de que a empresa praticava discriminação racial e de gênero na contratação de seus funcionários. O tribunal, por sua vez, considerou a acusação inconsistente, pois, ao avaliar o caso, notou que a GM não poderia ser enquadrada no crime de discriminação racial porque haviam homens negros trabalhando na linha de montagem da fábrica. Também não poderia ser enquadrada por discriminação de gênero, pois também existiam mulheres trabalhando nos escritórios da empresa, em sua maioria como secretárias.

Segundo Carla Akotirene, toda vivência da mulher negra, desde o período da diáspora até os dias atuais, perpassam uma experiência interseccional / Imagem: Giovanna Hemerly

Contudo, durante o processo, o juiz não levou em consideração que todas as pessoas negras trabalhando na fábrica eram homens e todas as mulheres eram brancas. Desta forma, Emma DeGraffenreid, uma das mulheres que estavam processando a empresa, apontou a necessidade de avaliar a situação de discriminação racial e de gênero, não de forma isolada, mas como uma intersecção. O pedido foi negado por ser considerado um privilégio que daria vantagens para mulheres que estivessem na mesma situação de Emma.

Este caso, relatado por Carla Akotirene durante evento, é um dos exemplos de como existem situações em que o indivíduo, por estar inserido em mais de uma categoria social minoritária, pode vivenciar suas experiências com a discriminação de forma distinta de outras pessoas inseridas no mesmo grupo. Portanto, os estudos acerca da interseccionalidade surge como urgência para uma compreensão mais efetiva de como atuam as expressões de violência e opressão contra identidades minoritárias.

A exemplo das lutas feministas no século XX, as mulheres negras passaram a perceber que suas lutas, além de apresentarem incompatibilidade com as reivindicações do feminismo protagonizado por mulheres brancas, eram também menosprezadas, tanto no próprio movimento feminista, quanto pelo movimento antirracista, centrado na época nas causas do homem negro.

Em seu livro, Akotirene traz ideias e conceitos de Angela Davis, Sueli Carneiro, Patrícia Hill Collins e Lélia Gonzalez / Imagem: Grupo Editorial Letramento

As reflexões sobre essa situação complexa da luta social da mulher negra levaram ativistas e pesquisadoras, estudiosas das questões de gênero, a perceberem que a discriminação contra a mulher negra não poderia ser encarada apenas na categoria social de gênero, de forma isolada, pois esbarra e torna-se intrínseca a outras questões sociais, como as raciais, sexuais e de classe.

Mas afinal, o que é interseccionalidade? - Akotirene explicou que, apesar da ideia de interseccionalidade não ser uma novidade no campo dos estudos raciais, seu conceito passou a ter destaque nos ambientes acadêmicos a partir do início da década de 1990, com as pesquisas da professora de Direito e especialista em teoria crítica de raça Kimberlé Crenshaw, que inseriu a teoria interseccional nos estudos de gênero.

A intenção de Crenshaw, era compreender como a justiça e o Direito lidavam com questões em que houvesse mais de uma categoria social envolvida, como no caso das mulheres negras que processaram a General Motors por discriminação racial e de gênero, e o que poderia ser feito para que processos como esses fossem compreendidos e aceitos perante os tribunais. Foi durante estes estudos que a pesquisadora utilizou pela primeira vez o termo interseccionalidade para explicar à relação hierárquica existente entre os próprios segmentos minoritários.

Kimberlé Williams Crenshaw / Imagem: Columbia Law School

De acordo com Crenshaw, a intersecção ocorre quando as experiências de indivíduos que se encaixam em mais de um grupo discriminado apresentam limitações maiores do que outros indivíduos também discriminados, mas que acabam assumindo condição de privilégio quando comparado. Um exemplo seria o caso das mulheres brancas, que apesar de estarem incluídas em uma categoria de discriminação, ainda assim podem apresentar situação de privilégio quando comparada a situação das mulheres negras moradoras das zonas periféricas. “Na década de 1970, Audre Lorde já dizia que enquanto as mulheres brancas têm medo que seus filhos cresçam e virem aliados do patriarcado, as mulheres negras têm medo que alguém passe com a viatura da polícia, jogue seu filho lá dentro e dê fim nele”, disse Carla Akotirene durante o evento.

Akotirene também explicou que para entender a problemática social envolvendo o segmento minoritário, é necessário analisar todas as categorias nas quais o indivíduo está inserido, já que as opressões sofridas não acontecem de forma isolada e individual, e sim em intersecções.“Se eu utilizo a categoria gênero dissociada de qualquer outra marcação, seja de classe, território ou geração, eu estou falando de um público que não alcança a experiência da mulher negra”, afirmou a escritora.

Estruturas de poder e epistemicídio - Com o maior aprofundamento após as contribuições de Kimberlé Crenshaw nos estudos sobre interseccionalidade, pesquisadoras e ativistas passaram a desenvolver estudos sobre as várias formas de discriminação. Dentre estas formas, está o que ocorre de forma estrutural na sociedade, sendo menos explícita que a discriminação ativa. Neste caso, encaixam-se as instituições, sejam elas políticas, judiciais, de saúde ou até mesmo educacionais.

Segundo Carla Akotirene, as instituições de ensino são permeadas pelo racismo institucional que resulta em uma violência simbólica nesses espaços. Um exemplo colocado pela escritora é a negação dos saberes afrobrasileiros e africanos nos espaços acadêmicos, que classificam o conhecimento ocidentalizado produzido por intelectuais não-negros como superior. Desta forma, ao invés de ser um local aberto para a diversidade e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, a universidade torna-se mais um ambiente de opressão e violência.

A escritora ressaltou que esta situação configura-se o que a doutora em Educação e coordenadora executiva do Geledés Instituto da Mulher Negra, Sueli Carneiro, chama de “epistemicídio”, que é o assassinato simbólico dos saberes não dominantes, seja “pela negação da racionalidade do outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é imposta”, remetendo, desse modo, ao processo de colonização ocorrido séculos atrás.

Na análise de Akotirene, para os grupos sociais subjugados, permanecerem nesses espaços é enfrentar diariamente uma estrutura que pretende excluir, de forma não explícita, quem não se encaixa no padrão de produção científica, instituído pelo homem branco ocidental heteronormativo. Diante desta situação, os sentimentos de medo, insegurança e baixa autoestima gerados acabam por dificultar novas produções científicas que partam justamente dos grupos sociais marginalizados. “O processo de colonização retirou primeiramente a nossa humanidade, e tirando essa humanidade, tirou de nós essa autoestima de dizer ‘eu sei ler, sei escrever, então eu posso publicar’”, afirmou Carla.

O evento lotou o auditório da Faculdade de Comunicação da UFBA / Imagem: Giovanna Hemerly

Descolonização do pensamento - Segundo a autora, a oportunidade de ter um livro seu lançado na Feminismos Plurais, coleção coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro, é uma forma de reconhecer não só ao conhecimento científico produzido por uma acadêmica inserida nas categorias sociais de mulher e negra, mas também nordestina.“Quando Djamilla Ribeiro convida Carla Akotirene, ela está reconhecendo que na Bahia, este lugar colocado como lugar da dança, do deboche, da preguiça; existe uma intelectual, sem qualquer tipo de preguiça, pesquisando sobre interseccionalidade. Ela está honrando todas nós, mulheres negras e nordestinas, como se fosse uma restituição de humanidade, autoridade linguística, lugar de fala e empoderamento”, desabafou a escritora.

Akotirene alertou também para a necessidade de valorizar o conhecimento da mulher negra, não apenas nos ambientes acadêmicos, mas também nos lugares que não carregam o status científico, pois desconsiderar esse saber, seria contribuir com a imagem construída de forma preconceituosa da mulher negra como um Ser não intelectualizado. Ela também lembra que, apesar do preconceito que se tem com a intelectualidade desse grupo social, é a ‘mãe preta’ que fica com a responsabilidade de transmissão do conhecimento, já que a ela é destinada a tarefa de cuidar das crianças.“Essa mãe preta, que é trabalhada na década de 1930 por Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala), na verdade é a grande intelectual da sociedade brasileira. Porque foi a mãe preta que transmitiu os valores africanos para os seus e para os filhos das brancas”.

Sendo assim, a escritora a ressalta a necessidade de se espelhar na representação de resistência e empoderamento que as ‘rainhas mães’ possuem. “As yabás são totalmente insubmissas, elas não têm medo de ser ridicularizadas, mas nós temos esse medo de ser ridicularizados por toda a produção que a gente fez até aqui”, disse Carla.

*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA

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