Por ainda ser um tabu social, o suicídio é um assunto que costuma ser evitado pelas pessoas em geral, inclusive nos meios jornalísticos. Mas será que esse silêncio a respeito do assunto é de fato a melhor opção? Como isso pode afetar a família e amigos da vítima? Foi com o objetivo de rever essas questões, ainda pouco discutidas no âmbito da comunicação social, que a jornalista Laís Matos decidiu escrever o livro Sobreviventes
POR GIOVANNA HEMERLY*
gihe296@gmail.com
Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), um único suicídio pode afetar, no mínimo, mais cinco ou seis pessoas. Desta forma, familiares e amigos das vítimas entram nas estatísticas de grupos de risco, por apresentarem maiores chances de cometerem suicídio diante do impacto emocional e financeiro surgido após a tragédia. Foi pensando nesta realidade que a jornalista Laís Matos relata no livro Sobreviventes cinco histórias de pessoas que perderam alguém próximo, mas conseguiram enfrentar os sentimentos de dor e culpa, além de lidar com os estigmas e tabus impostos pela sociedade.
De acordo com a jornalista, o objetivo de contar a história de quem passou pelo luto traumático é “mostrar as cicatrizes, como a pessoa conseguiu lidar com isso, como ela conseguiu sobreviver diante do suicídio de alguém próximo”. Desta forma, a escolha do título do livro, resultado do seu Trabalho de Conclusão de Curso na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom / UFBA), foi baseada justamente na utilização do termo “sobrevivente” pela psicologia para designar os familiares, amigos ou conhecidos da vítima que tiveram sua vida afetada de algum modo pela morte do ente querido, mas que ainda assim conseguiram seguir em frente.
Laís Matos pensou que seria difícil conseguir as fontes necessárias para a realização do livro, já que não conhecia muitos casos. Porém, ao apresentar sua proposta para colegas e amigos, ela percebeu como os casos de suicídio estavam tão presentes no seu entorno. “Eu achei que não ia encontrar pessoas próximas a mim. Aí eu fui vendo que a nossa volta sempre vão ter muitas histórias de pessoas que perderam alguém ou pessoas que conheceram pessoas que perderam alguém. E quando você ouve tantas histórias e vê como isso está muito próximo, você acorda para o que está acontecendo a sua volta”, afirma.
Enquanto ouvia os relatos de quem já havia passado pela dor da perda, a jornalista pode perceber na narrativa de cada entrevistado como o luto advindo de um suicídio exige cuidados mais específicos. “Se você perde alguém já é doloroso, você perder alguém que estava sofrendo e que escolheu o suicídio, você sofre ainda mais, porque tem a sensação de culpa”, explica Matos. Esse sentimento teria como um dos fatores o estigma social que recai sobre os sobreviventes, seja por serem responsabilizados como “a causa” que levou o indivíduo ao suicídio ou por serem culpabilizados por não terem “agido a tempo” de evitar a morte.
Posvenção – Laís Matos buscou desenvolver sua obra com referência nos trabalhos do psiquiatra estadunidense especialista em estudos acerca do suicídio, Edwin Shneidman, realizador de diversas pesquisas voltadas para a ‘posvenção’, ou seja, ações que visam proporcionar maior qualidade de vida e bem estar aos sobreviventes, enquanto minimizam o estresse traumático e a sensação de culpa que podem vir a se tornarem fatores de risco quando somado a outros, como a depressão e abusos de substâncias psicoativas.
Dentre as medidas tomadas na posvenção, permitir aos sobreviventes expressar os sentimentos reprimidos e que podem atrapalhar o processo de cicatrização das feridas emocionais surgidas. Essa prática, feita tanto através da própria catarse, como da escuta terapêutica, vem sendo utilizada por diversos segmentos da psicoterapia para promover a libertação emocional, em conjunto com a autorreflexão e ressignificação das emoções.
Em seu livro Psicoterapia e Relações Humanas, o psicólogo estadunidense Carl Rogers propôs a prática não-diretiva, que implica na libertação dos sentimentos de dor e angústia através da escuta terapêutica focada na fala do paciente, respeitando suas experiências e valores, além de oferecer autonomia para ressignificação de sua própria história de vida. Na psicanálise, o próprio Sigmund Freud, utilizou a catarse para aliviar seus pacientes dos sintomas de doenças de origem traumáticas. Uma de suas pacientes apelidada de Anna O. nomeou a técnica como “a cura pela fala”. Na psicologia analítica, Carl Gustav Jung, antigo discípulo de Freud, tinha também a catarse como a primeira etapa do processo de tratamento analítico.
Silêncio no jornalismo - Apesar da necessidade de tocar no assunto, falar em suicídio ainda não é algo fácil, pois envolve uma série de tabus culturais e religiosos que persistem na sociedade contemporânea. E a falta de informação sobre o assunto, além de produzir mitos e preconceitos, geram também a dificuldade em saber como abordar o suicídio da melhor maneira. Essa dificuldade reflete-se inclusive no próprio jornalismo.
Laís Matos conta que o tabu no jornalismo tem origem em meados do século XVIII, com o chamado efeito Werther, fenômeno ocorrido na região da Alemanha, em que o suicídio de diversos jovens europeus foi atribuído ao livro O Sofrimento do Jovem Werther, de Goethe, na qual o protagonista comete suicídio após sofrer de desilusão amorosa. Por consequência desse episódio, profissionais do meio de comunicação convencionaram evitar falar de suicídio por entenderem que o assunto é bastante delicado e pode afetar muitas pessoas.
Durante suas pesquisas para realização do livro, a jornalista entendeu que, de fato, a notícia pode estimular a ocorrência de novos casos, mas isso depende de diversos fatores, entre eles, a forma como foi feita a construção da reportagem. “Quando a gente começa a ler as referências sobre suicídio, a gente percebe que realmente existe um tipo de ‘contágio’. Quando Marilyn Monroe se matou, houve um crescimento no índice de suicídios em Nova York, mas isso por causa da imagem que foi construída sobre ela”, conta Laís Matos.
Mas vale ressaltar que casos de suicídio abarcam tópicos pertinentes ao interesse público. O sociólogo Émile Durkheim, uma das referências do livro Sobreviventes, em seus estudos, apontava que o suicídio é um fenômeno individual que reflete uma realidade social, pois apesar dos fatores pessoais e psicológicos envolvidos, sempre haverá um fator social como determinante. Partindo deste princípio, deixar de abordar o suicídio nos meios jornalísticos não representa a melhor solução para redução das ocorrências, já que estes casos também envolvem problemáticas sociais como questões de saúde pública, além de levantarem indagações sobre a necessidade de mais ações e políticas públicas na prevenção do suicídio.
De acordo com a OMS, cerca de 800 mil pessoas, por ano, cometem suicídio no mundo. No Brasil, de cada 100 mil pessoas, seis tiram a própria vida, o que coloca o país em oitavo lugar no ranking mundial. Diante deste contexto, Laís Matos ressalta que o jornalismo é capaz de trazer contribuições para a desmistificação e combate à desinformação que podem suscitar na ocorrência de mais casos. “O silêncio que se opera sobre o assunto que é o verdadeiro vilão. Então não falar sobre suicídio só aumenta o tabu que existe sobre o suicídio”, reforça.
Desta forma, a jornalista entende que o foco das discussões sobre o suicídio no jornalismo não devem se prender ao “falar ou não falar” e sim como abordar o assunto de forma ética, sem estimular novos casos e respeitando os direitos de privacidade da vítima e de seus familiares.
Cuidados na abordagem – Para auxiliar os profissionais de comunicação, a OMS criou um manual explicando como a imprensa pode utilizar o poder de levar informação para prevenir o suicídio, sem acarretar consequências negativas. Dentre os principais pontos abordados estão a precaução no uso de dados para não criar percepções alarmantes ou sensacionalistas, evitando inclusive de usar termos que remetem a “epidemia”. Não detalhar o método do suicídio ou publicar fotografias e cartas da vítima, assim como não tentar culpar alguém pelo ocorrido. Jamais romantizar o suicídio ou colocá-lo como se fosse uma forma de fugir dos problemas pessoais e não glorificar a vítima.
Além desses pontos levantados pelo manual, Laís Matos também acrescenta que deve-se evitar de produzir as reportagens que abordam o suicídio às pressas, sendo melhor realizar matérias especiais que não foquem apenas em narrar o que aconteceu, mas sim no suicídio como uma questão de saúde pública. “É muito difícil para a notícia factual abordar aquele assunto ‘fresco’. Então você transformar esse tipo de acontecimento em notícia, eu acho que não é uma coisa do jornalismo cotidiano, a menos que faça um texto maior falando sobre as técnicas de prevenção e como combater o suicídio, ou seja, tentar fazer um texto maior que vai além do fato de que alguém tirou a própria vida”, explica.
A jornalista também ressalta a importância de destacar os métodos de prevenção nas reportagens. “Se você falar mais, mas falar com consciência, falar como se previne, como se percebe que uma pessoa está depressiva, como entender os sinais, você começa a perceber que a sua volta tem pessoas que podem estar precisando de ajuda e você saber sobre isso pode ajudar de alguma maneira”, reforça.
Referências
Organização Mundial da Saúde. Prevenção do Suicídio: Manual para Professores e Educadores. Genebra, 2000.
*Estudante do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA