A epidemia da doença causada pelo novo coronavírus, o SARS-CoV-2, ainda tem a maior parte de seus casos concentrada na China, mas assusta todo planeta pela velocidade com que se dissemina. Mas isso não é inédito. Novos coronavírus emergem, de tempos em tempos, em diferentes áreas, a exemplo do SARS-CoV e do MERS-CoV. O combate eficaz e a redução de seus danos ou vítimas dependem de respostas rápidas das autoridades de saúde pública, por meio de redes de colaboração locais e internacionais para o reconhecer casos, caracterizar o patógeno, suas formas de contaminação e transmissão. É justamente esse esforço que está sendo feito mundialmente, trazendo esperança de que o surto possa ser detido
Por Luciana Costa, Juliana Cortines, Yasmin Mustafá (Instituto de Microbiologia Paulo de Góes / UFRJ); Eduardo Volotão (Fiocruz)
O ano de 2019 estava prestes a terminar, mas suas duas semanas finais trouxeram fatos surpreendentes: casos de pneumonia provocados por agente desconhecido foram reportados às autoridades de saúde de Wuhan, província de Hubei, na China. Os sinais e sintomas observados nesses pacientes levaram à suspeita de possível infecção por coronavírus. Foi o necessário para que as autoridades de saúde chinesas entrassem em alerta imediato.
Dada a pronta resposta das autoridades de saúde e pesquisadores chineses no reconhecimento dos casos, a probabilidade de se interromper este surto continua sendo alta.A preocupação não foi sem razão. Em 2002, o mundo conheceu, pela primeira vez, o potencial de gravidade de infecções por coronavírus em humanos. Naquele ano, uma epidemia de SARS-CoV – ou coronavírus associado à Síndrome Respiratória Aguda Grave – se alastrou a partir da China para outros 26 países. Morreram cerca de 13% das pessoas com menos de 60 anos de idade infectadas. Entre os acima dessa faixa etária, a taxa de mortalidade alcançou 43%. Em 2012, outro coronavírus associado a infecções respiratórias fatais em humanos foi identificado na Arábia Saudita: os casos da Síndrome Respiratória do Oriente Médio – Mers-CoV – aconteceram e ainda acontecem quase que exclusivamente naquele país, e chama a atenção a taxa de mortalidade da doença, próxima aos 40%.
Como enfrentar uma ameaça dessa dimensão? Quais as estratégias e ferramentas para tal? A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o SARS-COV-2 – denominação da doença causada pelo novo coronavírus – Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional. Na prática, isso sinaliza o apoio da OMS e de todos os países do mundo às ações coordenadas das autoridades de saúde na identificação dos casos, controle do espalhamento do vírus, e na melhor compreensão da infecção. Dada a pronta resposta das autoridades de saúde e pesquisadores chineses no reconhecimento dos casos, a probabilidade de se interromper este surto continua sendo alta.
Dos sintomas à identificação do vírus - E como a China reconheceu tão prontamente esses casos do novo coronavírus? A semelhança de sintomas e sinais com os de SARS-CoV e de Mers-CoV foi a deixa. Em 2002, sem essa experiência prévia, os casos de SARS foram, inicialmente, registrados como pneumonia atípica. A doença inclui sintomas tais como febre, mal-estar, diarreia, calafrios, dificuldade ao respirar e dores musculares, de cabeça e de garganta. Nenhum dos sinais ou sintomas isoladamente ou em conjunto são suficientes para o diagnóstico da SARS, uma vez que outras infecções respiratórias também os apresentam – até mesmo uma gripe comum. Além disso, tosse (inicialmente seca) e falta de ar aparecem e/ou também foram observados nas primeira e segunda semanas de infecção. Os casos graves, à época, evoluíram rapidamente, progredindo para desconforto respiratório agudo que requer tratamento intensivo.
Diante do quadro similar ao de 2002, a amostra de um paciente hospitalizado em Wuhan foi rapidamente coletada e enviada aos laboratórios de vigilância de SARS na China. Em duas semanas, foram descartadas as presenças de SARS-CoV, MERS-CoV, influenza, influenza aviária, adenovirus e outros patógenos comuns causadores de doença respiratória. Os testes laboratoriais específicos (amplificação e sequenciamento do genoma viral completo) detectaram a presença de um coronavírus até então desconhecido, com cerca de 70% de seu genoma semelhante ao do SARS-CoV. O vírus foi provisoriamente denominado 2019-nCoV e depois oficialmente chamado de SARS-CoV-2.
Infecções por coranavírus em humanos já eram conhecidas antes mesmo de 2002, mas, em sua maioria, apresentavam sinais e sintomas de infecções respiratórias brandas, com alta taxa de transmissão direta de pessoa a pessoa e causadas por coronavírus adaptado aos humanos – o que mudou em relação ao SARS-CoV, ao Mers-CoV, e, agora, ao SARS-COV-2.
SARS, dos gatos-almiscarados aos humanos - Os coronavírus são divididos em três grupos ou gêneros: Alphacoronavirus e Betacoronavirus contêm os vírus com potencial de infectar mamíferos. Já os Gamacoronavirus agrupam vírus com potencial de unicamente infectar aves. As análises moleculares do SARS-CoV indicaram que ele é classificado como Betacoronavirus assim como os coronavírus encontrados em morcegos. Os estudos demonstraram que a epidemia de SARS ocorreu a partir da transmissão zoonótica do SARS-CoV.
Na epidemia de 2002, suspeita-se que as transmissões ocorreram a partir do contato de humanos com animais infectados nos mercados de venda de carne. Foi demonstrada uma ligação genética entre o SARS-CoV causador das infecções em humanos e o coronavírus encontrados nos gatos-almiscarados, também chamados civeta, cuja carne era consumida em diversos locais, principalmente na China. Os morcegos teriam transmitido o vírus a esses gatos.
Após a transmissão inicial aos humanos, os contágios posteriores ocorreram por contato muito próximo no ambiente residencial, mas, principalmente, hospitalar, por ausência de precauções adequadas contra a disseminação de patógenos. Uma vez conhecida a forma de transmissão do SARS-CoV e implementadas práticas de controle eficazes, a epidemia terminou.
SARS-COV-2, dos pangolins aos humanos - Em relação ao SARS-COV-2, a investigação dos casos iniciais de pneumonia mostrou que os indivíduos em Wuhan haviam frequentado regularmente os mercados de frutos do mar e venda de animais na região, apontando à possível origem zoonótica da doença. A análise do genoma demonstrou que esse vírus está relacionado aos coronavírus que circulam em morcegos. Entretanto, por ser uma epidemia de grande escala e completamente nova entre humanos, a busca por informações leva a descobertas de novas peças do quebra-cabeças quase que diariamente.
Outra hipótese do animal hospedeiro do SARS-COV-2 surgiu recentemente: o sequenciamento do genoma de CoV presente no organismo de pangolins (animal similar aos tatus) apresenta 99% de similaridade com o SARS-COV-2. A dinâmica de adaptação do vírus em humanos teria seguido a sequência morcego-pangolim-humanos. Esta ainda não é uma origem definitiva, já que outros animais precisam ser pesquisados. Os casos atuais reforçam a importância da continuidade dos estudos para identificar possíveis reservatórios desses vírus e suas formas de transmissão.
Duas características diferenciam o SARS-CoV-2 do SARS-CoV e do MERS-CoV: aparentemente o SARS-CoV-2 é transmitido mais facilmente de pessoa a pessoa por contato próximo, mas também há possibilidade de contágio a partir de indivíduos sem sinais e sintomas da doença, ou seja, no período de incubação do vírus.
Como tentar conter a epidemia?Apesar de as formas de transmissão ainda serem alvo pesquisas, as autoridades de saúde recomendam medidas para tentar controlar a epidemia globalmente. Algumas das ações institucionais são:
Em aeroportos, monitorar a temperatura dos passageiros de voos provenientes das áreas que concentram o vírus.Aumentar a vigilância em unidades de saúde e ter rigor nas medidas básicas de precaução, principalmente lavar as mãos frequentemente e o uso de equipamentos de proteção individual.Reforço de recursos materiais e pessoal treinado para lidar com o novo patógeno.
As ações individuais para evitar novas contaminações nas áreas afetadas incluem:Não fazer contato desprotegido com pessoas visivelmente doentes (com sinais de resfriado ou gripe) e com animais de fazenda ou selvagens.Lavar frequentemente as mãos com sabão e água corrente e utilizar álcool gel, especialmente após tossir ou espirrar, no cuidado de pessoas doentes, antes e durante o preparo de alimentos, após contato com animais e depois de utilizar o banheiro.Evitar o uso de banheiros públicos.Tapar a boca e nariz com lenço de papel ou com a parte interna do antebraço flexionado ao espirrar ou tossir.Só consumir carnes e ovos muito bem cozidos.A dimensão da epidemiaNa China, até 27 de fevereiro de 2020, data de fechamento deste artigo, apesar dos cerca de 78 mil casos da doença confirmados e 2.718 mortes, o número de novos casos diminui a cada dia. No entanto, já há registro de casos nos cinco continentes.
No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em 26 de fevereiro. Trata-se de um brasileiro que contraiu o SARS-CoV-2 em uma viagem de trabalho à Itália. Somente quando retornou ao Brasil, ele apresentou os sinais e sintomas da doença. É importante destacar que o paciente apresenta somente sintomas brandos e está em isolamento domiciliar. Portanto, até o momento não temos casos de transmissão no Brasil e não há motivo para pânico. Acreditamos que o Ministério da Saúde e os diversos serviços de saúde do Brasil estão preparados para lidar com esta nova doença.
Não existe tratamento específico para a doença, mas iniciar medicação logo que os sinais e sintomas surgem facilita a recuperação. Tem-se usado uma combinação de remédios já licenciados para tratar outras doenças virais, como anti-Influenza (vírus da gripe) combinados com alguns medicamentos do coquetel anti-HIV. A estratégia tem demonstrando boa resposta em casos mais graves, no entanto, serão necessários mais estudos para comprovar sua real eficácia.
A importância da vigilância em saúde - Globalmente, novos coronavírus emergem periodicamente em diferentes áreas. A pronta resposta das redes de colaboração locais e internacionais para o reconhecimento dos casos e caracterização do patógeno, sua via de contaminação e transmissão, mostram a importância da manutenção da vigilância das doenças infecciosas.
O surgimento de zoonoses é algo multifatorial e inclui, principalmente, fatores humanos, como aumento de migração populacional, tráfico de animais silvestres, desmatamento e superpopulação mundial. Todas essas situações são difíceis de se controlar. Entretanto, medidas mundiais de ação de agências de saúde globais (OMS, por exemplo) associadas a ações locais de autoridades de saúde e ao trabalho incansável de cientistas podem auxiliar na redução de danos das epidemias.
* Artigo extraído do site Ciência Hoje