Medida assinada pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro agrava tensão com fazendeiros e coloca em risco vida de indígenas. Ataques vão de queima de residências a tiros na noite de Réveillon e desmatamento ilegal de mata atlântica centenária do Parque Nacional do Descobrimento
POR JOANA BRANDÃO*
joanabrandao@hotmail.com
Desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro com sua política declarada de “nem um centímetro a mais de terras indígenas”, as ameaças aos povos indígenas do Bahia e seus territórios se intensificaram. De incêndio em uma casa de reza à invasão de aldeias por homens armados, as tensões se tornaram constantes nas aldeias do sul e extremo sul do estado.
“Assim que veio a eleição em 2018, a gente notou um aumento da violência. Em 2019, isso se intensificou com alguns ataques. Aqui na aldeia a gente teve pelo menos três ataques”, afirma a liderança Xawã Pataxó da aldeia Cahy, do povo Pataxó, região de Cumuruxatiba, município de Prado no extremo sul da Bahia. Xawã, assim como outras cinco lideranças da região, estão no Programa Nacional de Proteção de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), devido ao risco de morte por ameaças de fazendeiros.
Os ataques geralmente mantém uma característica comum: homens armados entram na terra indígena, queimam casas e expulsam os moradores. No ano de 2019, as aldeias Mucugê, Pequi, Cahy e Dois Irmãos, todas na região de Prado na costa do descobrimento, sofreram ataques semelhantes. Na aldeia Barra Velha, na região de Caraíva, um incêndio queimou a casa de reza que ficava no centro da comunidade logo após o ritual de lua cheia. Os moradores acreditam que o incêndio foi criminoso.
Na aldeia Dois Irmãos, também em Cumuruxatiba, um ataque foi realizado na noite de Réveillon, conforme relato da cacica Arian Pataxó. “A gente tava no terreiro conversando depois da queima de fogos, foi aí que a gente viu o carro na porteira. Depois que o carro saiu, fomos lá ver, e eles tinham cortado a porteira de um lado e de outro e sumiram com a porteira. Foi quando eles chegaram na residência do fazendeiro ao lado e começaram a atirar para cima, dando risada e gritando”. Ela relata que no dia seguinte notaram que os homens haviam entrado também pelo fundo da aldeia e aberto uma estrada com a máquina até a beira da praia.
A terra atacada é um lote de assentamento do INCRA ocupado pelos indígenas no ano de 2016, e está sob litígio na justiça. Em audiência realizada em 11 de março de 2020, na cidade de Teixeira de Freitas, relatos de testemunhas apontaram que havia negociação de venda e arrendamento da terra, o que é proibido por lei em lotes de assentamento. “A gente sabe que as pessoas dos grandes empreendimentos estão com olhos das terras indígenas que é beira de praia, mas aí eu estou lá, nesta luta, com fé em Deus eu vou conseguir”, afirma a cacica Arian.
Medida de Moro aumenta tensão e deixa lideranças em estado de alerta - Na região dos municípios de Ilhéus, Una, Buerarema e São João da Vitória, as lideranças do povo Tupinambá de Olivença realizaram cartas de denúncia devido ao risco iminente de expulsão dos indígenas de suas terras e ameaças de morte a lideranças. A tensão na região aumentou após o ministro da Justiça, Sérgio Moro, assinar, em 30 de dezembro de 2019, ofício devolvendo relatório de demarcação de 17 terras indígenas de todo Brasil, entre elas a dos Tupinambá da Bahia.
“A medida assinada por Moro deixou as lideranças e comunidades em estado de alerta, porque agora os fazendeiros estão se mobilizando para nos tirar de nossos territórios. Mas nós vamos resistir”, afirma a advogada indígena Potyra Tê Tupinambá.
O ofício retorna para Fundação Nacional do Índio (FUNAI) os relatórios de demarcação com recomendação para serem avaliados de acordo com o marco temporal, se fundamentando em parecer do então presidente Michel Temer em 2017. O ofício de Sérgio Moro desconsidera ainda a decisão do Supremo Tribunal da Justiça de 2016 que, por unanimidade, decidiu pela demarcação do Território Indígena Tupinambá de Olivença.
Além disso, a tese do “marco temporal de ocupação” é considerada juridicamente questionável por indigenistas. Representando uma interpretação restritiva do artigo 231, a tese entende que só teriam direito às terras os indígenas que a ocupavam quando da promulgação da Constituição em 05 de outubro de 1988. Porém, a Constituição afirma que os indígenas possuem “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, não fazendo referência à data da ocupação. A ideia contradiz ainda o próprio artigo 231 que garante aos indígenas o direito à “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, o que abrange suas especificidades com relação ao território, como circulação sazonal e fluxos migratórios.
“Sérgio Moro fez o contrário do que deveria fazer: não caberia a ele devolver o processo, mas sim publicar a portaria declaratória do nosso território. Nossa terra é tradicionalmente ocupada e o governo está agindo para manter os invasores dentro dela”, afirma carta assinada em 28 de janeiro pela liderança dos Tupinambá da Serra do Padeiro, Rosivaldo Ferreira da Silva – Cacique Babau, e Rosemiro Ferreira da Silva, pajé da comunidade.
Em outra carta, de 11 de fevereiro, os indígenas Tupinambá denunciam que, no dia 02 de fevereiro, um grupo de fazendeiros organizou uma reunião na maçonaria de Ilhéus para “restauração da lei e da ordem no campo e, após mais de 10 anos submetidos a uma farsa Tupinambá”. A carta direcionada ao governador da Bahia, Rui Costa, e a órgãos do governo, informa que em 03 de fevereiro um fazendeiro entrou na terra indígena em um carro com homens armados e afirmou a agricultores não-indígenas a decisão de matar o cacique Babau reforçada na reunião do dia anterior. Relata ainda que, em 05 de fevereiro, o indígena José Aelson Jesus da Silva, irmão do cacique Babau, sofreu atentado por um motoqueiro que seguiu seu carro e tentou atropelá-lo na BR-101.
Mata Atlântica centenária sofre com madeireiros ilegais - No Parque Nacional do Monte Pascoal, município de Porto Seguro, a extração ilegal de madeira tem causado preocupação das lideranças indígenas e sociedade civil local. Apesar da Terra Indígena de Barra Velha ter sido homologada em 1991, o território indígena, que é também área de conservação do Parque, tem sofrido nos últimos meses com o aumento significativo da ação de madeireiros ilegais.
A situação se agravou ao ponto de, em 07 de fevereiro, o Conselho de Cacique das aldeias do Monte Pascoal decidir pelo fechamento da guarita de acesso ao Parque, e pelo estabelecimento de vigília noturna para impedir a saída de caminhões com madeira. Entretanto, devido ao custo de manter pessoal e alimentação durante 24 horas no local, a vigília permaneceu até o dia 13 de fevereiro. No dia seguinte, a extração ilegal já haveria voltado a todo vapor, segundo Cooperativa Indígena de Reflorestamento (Cooplanjé).
Em 21 e 22 de fevereiro foi organizada uma vigília na aldeia indígena Pé do Monte para apoiar as lideranças indígenas no combate à extração ilegal. Porém, sem o apoio sistemático de órgãos públicos, os esforços dos indígenas e comunidade ambientalista local seguem sendo apenas paliativos diante de madeireiros ilegais fortalecidos pelo discurso anti-ambientalista e anti-indígena do governo federal.
Força Nacional contra indígenas na sede da FUNAI em Brasília - Diante do agravamento das tensões e ameaças às comunidades indígenas e seus territórios, as lideranças indígenas da Bahia se direcionaram, na segunda semana de março, a Brasília para dialogar com o presidente da FUNAI e governo federal. No entanto, foram recebidos com pela Força Nacional, acionada por portaria de 11 de março do Ministério da Justiça que impediu o acesso dos indígenas à FUNAI.
*Joana Brandão é jornalista, cineasta e educadora. Escreve a coluna “Cronicas do fim do mundo” para a Ciência e Cultura sobre implicações sociais e culturais da pandemia global pelo Covid-19.
** Texto originalmente publicado no site Núcleo dos Irredentos no dia 17 de março de 2020.