Apesar dos percalços, mulheres baianas fazem presença na pesquisa científica em temas como saúde, humanidades e matemática, enfrentando paradigmas e dificuldades.
Bia Nascimento e Nathalí Brasileiro
Ainda que seja um cenário em constante evolução, a participação da mulher no meio científico ainda não é tão reconhecida quanto a do seu gênero oposto. Isso é claro quando se observa que o Prêmio Nobel — premiação internacional mais prestigiada no globo —, só teve 48 mulheres dentre os 870 premiados em toda sua história. De acordo com o relatório “Uma equação desequilibrada: participação crescente de Mulheres em STEM na ALC (América Latina e Caribe)”, publicado no ano de 2021 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), existem alguns fatores determinantes para a exclusão da mulher no meio científico, como a falta de incentivo desde a educação básica, bem como a pobreza e desigualdade entre famílias e centros educacionais. Felizmente, ainda que não seja maioria em cargos de liderança ou premiações de reconhecimento, as mulheres se fazem presentes em todo tipo de pesquisa científica desenvolvida no Brasil e no mundo.
De acordo com a editora holandesa especializada em gênero, Elsevier, o Brasil é um dos países que mais têm crescido em presença feminina dentro das pesquisas científicas. Os índices do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também são positivos: as mulheres são 43,7% do total de pesquisadores registrados pelo instituto, enquanto a projeção é que essas sejam a maioria até o fim dessa década. Por outro lado, de todos os 100 membros titulares da Academia de Ciências da Bahia, apenas 35 são pesquisadoras mulheres. O que fazem as pesquisadoras da Bahia – que mesmo fora de holofotes -, são protagonistas de avanços científicos estado e país afora?
NA PESQUISA EM SAÚDE ELAS QUE SÃO MAIORIA
Nos últimos anos, impulsionada pela pandemia de COVID-19 e pela corrida incansável por vacinas, o mundo testemunhou uma revolução nas pesquisas no campo da ciências da saúde, que mudou a forma como as pessoas enxergavam a ciência. Contudo, apesar das manchetes de destaque na época, é importante salientar que uma das primeiras descobertas sobre o vírus aqui no Brasil, em março de 2020, foi conduzida por uma mulher: Dra. Jaqueline Goes de Jesus, pesquisadora baiana e doutora pela UFBA, que coordenou a equipe que sequenciou o genoma do novo coronavírus em apenas 48 horas.
De acordo com dados divulgados em 2021 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as mulheres dominam a área de ciências da saúde, representando mais de 60% dos pesquisadores. Entre elas está a pesquisadora Climene Laura de Camargo, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e Docente Titular da Escola de Enfermagem da UFBA, que se tornou uma referência dentro da universidade.
Gabriela Santiago, estudante de arquitetura, relata sua experiência com a Professora Climene, a quem conheceu durante Atividades Acadêmicas Complementares (ACCs) ministradas pela docente. “Como enfermeira de formação, [ela] compreende que o bem-estar vai além da saúde e abrange o que é necessário para alcançar qualidade de vida”, disse. Segundo a estudante, nas atividades acadêmicas, a professora aborda questões importantes relacionadas a gênero e raça, que muitas vezes são negligenciadas na universidade, apesar de serem a realidade da maioria da população. “Quando ela foca na saúde, por exemplo, enfatiza que uma parte da população que será atendida são mulheres e pessoas negras, e é crucial compreender a realidade dessas pessoas e como o racismo e o machismo as afetam. Eu vejo isso como uma tentativa da professora Climene de não apenas trazer a questão racial à tona, mas também de humanizar as pessoas na faculdade”, acrescenta.
Climene Laura está envolvida em atividades de pesquisa, ensino e extensão relacionadas a neonatologia, saúde da população negra, tecnologias sociais e desenvolvimento sustentável, com um foco especial na promoção da saúde em comunidades quilombolas, como o Quilombo de Praia Grande, onde ela atua há mais de 40 anos. Em entrevista à AGN, a professora afirma que apesar dos avanços significativos na integração das mulheres na academia, ainda há um longo caminho a percorrer. “As mulheres em geral, e especialmente as mulheres negras, superaram inúmeros obstáculos. No entanto, ainda não recebemos o reconhecimento merecido, nem alcançamos posições de liderança. Basta olhar para quem são os Reitores e Pró-Reitores das universidades brasileiras e os cientistas de renome apontados pela CAPES e CNPQ”, enfatiza.
Ela conta que o apreço pelos temas que pesquisa atualmente surgiu ainda durante a graduação em enfermagem, quando foi percebendo sua vocação para atuar na promoção de saúde de crianças e adolescentes e populações em vulnerabilidade social. “Esse é o fio condutor das áreas do conhecimento em que me dedico. Dessa forma, as atividades nas quais atuo estão sempre voltadas para a identificação de potencialidades e enfrentamento de agravos, com vistas à promoção da saúde”, completa.
MULHERES QUE PESQUISAM CIÊNCIAS HUMANAS, SOLIDÃO MATERNA E CONQUISTAS
A Universidade Federal da Bahia (UFBA) já se mostra palco de pesquisadoras dedicadas a diversos tipos de ciências. Elas estão à frente de pesquisas desde as ciências humanas, sociais, às de comunicação. A Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) realizou uma amostragem de 500 mulheres dentro dos eixos comunicacionais, na qual 67% relatam possuir dificuldade em equilibrar a vida pessoal e profissional devido à construção familiar brasileira (mas não só do Brasil), que atribui à mulher o papel de administradora principal da casa e núcleo familiar. De acordo com a pesquisa Datafolha de maio de 2023, mais da metade das mães brasileiras (55%) é mãe solo, enquanto a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) registra recorde de abandono paterno desde a pandemia de Covid-19 em 2020.
Se muitas vezes o ambiente universitário não é acolhedor, isso é ainda mais visível para quem é mãe. São diversos os desafios dessas que buscam permanecer nesse espaço. É o caso de Joelma Stella, mãe e pesquisadora dentro da área de humanas e comunicação. Mesmo em meio ao desejo de deixar a universidade com os desafios que surgiram ao ter um filho, Joelma graduou-se no Bacharelado Interdisciplinar de Artes, concluiu um curso de mestrado em Cultura e Desenvolvimento pelo Pós Cultura e ingressou no curso de Produção Cultural na Faculdade de Comunicação da UFBA.
“Tive vários episódios de ter minha presença e da minha criança questionadas por professores e professoras. Houveram situações de humilhação, por precisar faltar ou chegar mais tarde em aulas por conta da maternidade. Muitos colegas se recusaram a fazer atividades comigo porque eu levava meu filho para as aulas e elas achavam que ele ia atrapalhar o andamento das coisas. É muito solitário ser mãe na universidade”.
A prática de pesquisa é parte essencial das ciências humanas em virtude da sua contribuição ao entendimento do funcionamento da sociedade, cultura, comunicação e regulamentação dela. Em uma área que envolve tamanha complexidade de ideologias, a diversidade -inclusive a de gênero-, é parte ideal disso. É a garantia da variedade de métodos e perspectivas de um mesmo assunto ou objeto de estudo. Em suas pesquisas, Joelma desenvolve projetos desde o estudo de patrimônio, cultura e memória, até direitos humanos, ambientais e a associação de ferramentas audiovisuais.
ELAS NOS CÁLCULOS E SISTEMAS NUMÉRICOS
No cenário majoritariamente masculino das ciências exatas, a trajetória de Suani Pinho, Doutora em Física pela USP, membro titular da Academia de Ciências da Bahia e professora do Instituto de Física da UFBA, é considerada um exemplo inspirador de perseverança e dedicação à carreira acadêmica.
“Nasci em uma família de professores universitários, e meu pai, que também era professor da UFBA, sempre me apoiou em minha escolha de seguir uma carreira acadêmica”, relembra Suani.
Desde cedo, a pesquisadora nutriu um grande interesse pela física estatística, desenvolvendo um genuíno fascínio pela “modelagem matemática com implementação computacional e uso de técnicas analíticas em sistemas complexos”, como ela descreve. Esse interesse a levou a explorar campos multidisciplinares, trabalhando também com biologia e matemática, com um enfoque especial em sistemas vivos. Nos últimos anos, suas pesquisas se destacaram ao abordar a modelagem matemática da COVID-19, concentrando-se nos dados e na dinâmica na Bahia. Essa abordagem desempenhou um papel crucial na avaliação do impacto das medidas de distanciamento social na ocupação de leitos clínicos e de UTI, oferecendo insights valiosos sobre a progressão da pandemia.
Reconhecendo que, apesar dos avanços, as dificuldades que as mulheres enfrentam nas ciências exatas ainda são consideráveis, Suani recorda seus anos de graduação, quando apenas quatro das cinquenta pessoas em sua turma eram mulheres. Dessas quatro, apenas ela e uma colega prosseguiram na universidade; esta última optou por dedicar-se à matemática. “Hoje, mesmo na área de exatas, temos uma melhora na graduação, mas ainda somos 30%. O número de docentes é semelhante, mas o que assusta mesmo é ver estudos indicando que, a cada nível da carreira acadêmica, esse número diminui. Ou seja, quanto mais vamos avançando, o número de mulheres chegando ao ‘topo’ fica menor. Esses dados nos mostram que ainda temos muito trabalho pela frente”, enfatiza.
Suani conta que nem sempre foi ativa nessa luta por mais espaço, mas que tudo mudou quando teve a oportunidade de compartilhar suas experiências e percepções durante uma palestra no Canadá sobre diversidade de gênero. “Aconteceu por acaso. Me pediram para indicar alguém e falei sobre a professora Márcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas ela não pôde participar, então eu fui. Aquilo me despertou para o tema e para o grau de problemas que existia – e ainda existe – no meio acadêmico”, afirma.
A pesquisadora frisa que a promoção da igualdade de gênero deve começar desde os ensinos fundamental e médio, em um trabalho conjunto com as famílias, para a desconstrução de estereótipos enraizados que têm origem na infância e na adolescência. “Isso é algo que tá no inconsciente coletivo, uma cultura deformada que vai dos brinquedos até divisão de tarefas em casa. Quando é preciso consertar ou construir algo novo, é sempre com os meninos e todo o trabalho doméstico fica para as meninas. Isso é desmotivante para elas”.
Ela ressalta ainda que, no meio acadêmico, essa mudança está sendo “forçada” pelas ações afirmativas, que possibilitaram um aumento na participação de mulheres em comitês e a inclusão do período de licença-maternidade no currículo Lattes. “Movimentos estão sendo feitos, em vários sentidos, inclusive fora meio acadêmico, mas os grandes resultados serão vistos a longo prazo. Por isso que, todos os dias, precisamos ‘quebrar’ esse preconceito com as ações afirmativas. E isso não é só sobre a questão de gênero, a gente sabe disso”.
“Hoje, apesar de tudo, o sentimento que tenho é de esperança. A geração dos anos 60 e 70 lutou muito pela emancipação feminina. A nossa geração, que ingressou na universidade nos anos 80, continuou nessa luta e é importante que essas próximas gerações continuem na luta. Vejo nelas essa vontade”, completa Suani.
INICIAÇÃO CIENTÍFICA NO ENSINO BÁSICO: OS PRIMEIROS PASSOS DE UM FUTURO CIENTISTA
É difícil imaginar meninas e mulheres ingressando nas ciências se elas não sabem que aquilo pode lhes interessar desde cedo. Brincar com os kits de jogos de experimentos químicos ou entrar no curso de robótica do colégio são atividades que prevalecem primordialmente seus colegas do gênero oposto. Desde as primeiras atividades infantis- que mais que brincadeiras, também são formas de adentramento no universo científico-, as crianças, inofensivamente, têm contato desde cedo. De acordo com um grupo de professores na dissertação “Investigar com crianças: subsídios para a formação e trabalho docente”, a aplicação da investigação científica como estratégia de ensino é parte essencial da construção de um estudante autônomo e curioso.
Não é de conhecimento comum, mas é possível fazer parte de uma iniciação científica desde o ensino médio. O primeiro registro da inserção de alunos do ensino básico em pesquisas científicas foi em 1989, com o Programa Vocação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O projeto surgiu como proposta de inserção dos estudantes em pesquisa e experimentação em ciências de tecnologia e saúde. Hoje, desde o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica para o Ensino Médio (PIBIC-EM) e Fundações de Amparo à Pesquisa (FAP’s) dentro dos estados participantes, os alunos têm a possibilidade de se preparar como futuros pesquisadores e pesquisadoras.
A verdade é que o cenário da participação feminina do Brasil é otimista. Para Rafaelle Souza, doutora em Ensino, Filosofia e História das Ciências e professora do Instituto Federal da Bahia (IFBA) em Salvador, é possível fazer com que meninas se interessem pela ciência desde cedo ao expô-las a figuras representativas. “Tenho orientado projetos que exponham as meninas a exemplos de mulheres cientistas bem-sucedidas, mostrando que elas também podem seguir esse caminho”, conta. A professora realiza pesquisas sobre física quântica e educação científica, além de gerenciar o perfil de divulgação científica Física Contextualizada no Instagram.
Em março de 2023, a aluna Dalila Dourado havia acabado de ser transferida de instituição de ensino e estava na segunda semana de aula da professora Rafaelle. “Ela começou a falar bastante sobre tudo isso [inovação e pesquisa] em sala de aula e eu pensei: aqui é o meu lugar”, conta. Algum tempo depois, Dalila desenvolveu, sob supervisão de Rafaelle, o projeto de extensão “Techpark: tecnologias assistivas para Parkinson”, com ferramentas inovativas para a prevenção e tratamento da Doença de Parkinson. Por meio da conscientização e divulgação dessas tecnologias nas redes sociais e Unidades Básicas de Saúde da cidade, a jovem também foi selecionada para apresentar seu projeto na Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec) de 2023.
A estudante está otimista com o futuro de seu projeto e carreira, já que pretende dar continuidade a ele e se tornar médica. “Eu estou ansiosa para ver como o meu projeto vai prosseguir para os próximos anos, porque nesse ano ele se tornou gigante, com uma longa extensão, e eu acredito que só vai crescer mais e mais”, garante positivamente Dalila.