Agência de Notícias analisou 9 cidades da Bahia que sofreram com tragédias ambientais entre 2021 e 2024
Annandra Lís, Larissa Lima e Nauan Sacramento
As mudanças climáticas já são uma realidade global e atualmente o termo emergência climática se tornou mais adequado para definir a situação do planeta. Segundo o Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), criado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), “A mudança climática é real e as atividades humanas, em grande parte a liberação de gases poluentes da queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás), são a principal causa”. O relatório assume ainda que após a Revolução Industrial o aumento da produção desses gases, elevou as temperaturas globais e acelerou o processo das mudanças climáticas.
Em 2019, o planeta viveu o grande marco da emergência climática com a conclusão de uma década de excepcional calor, quando a temperatura média global alcançou 1,1°C acima do período pré-industrial e as emissões de gases do efeito estufa atingiram um novo máximo de 59,1 gigatoneladas de dióxido de carbono equivalente (GtCO2e), segundo o IPCC. A realidade de emergência global nos coloca em contato constante com tragédias climáticas ao redor do globo. Diariamente fazemos parte ou lemos nos noticiários casos de fortes chuvas, enchentes, deslizamentos e desabamentos de terra, ondas de calor extremo e secas.
Na história recente da Bahia, vivenciamos mais fortemente o impacto da emergência climática entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, quando 47 cidades decretaram situação de emergência devido aos efeitos das fortes chuvas que atingiram o estado. De lá pra cá, mais casos de tragédias foram vividos e noticiados pela população baiana, em menor escala. A Agência de Notícias (AGN) apurou nove cidades que vivenciam tragédias climáticas recorrentes desde 2021 até a última tragédia ocorrida em janeiro de 2024. São elas: Anagé, Cotegipe, Dário Meira, Ubaíra, Wanderley, Ilhéus, Medeiros Neto, Iguaí e Itaju do Colônia, que aparecem nos diários oficiais quase anualmente com decretos de estado de emergência.
Estado de Emergência
De acordo com o Decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010, o estado de calamidade e o estado de emergência preveem “uma situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos”. Enquanto no estado de calamidade, prefeituras e governo estadual estão “substancialmente” atingidos, dificultando a resposta ao desastre, no estado de emergência a capacidade de resposta do poder público local é “parcial”.
Segundo a Agência Brasil e o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), estados e municípios afetados por desastres naturais devem decretar situação de emergência ou estado de calamidade pública após a emissão de um parecer técnico dos órgãos de proteção e defesa civil do município ou do estado antes de solicitar recursos federais para ações de defesa civil através do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD).
Com a aprovação do estado de emergência, publicado no Diário Oficial, o governo federal libera recursos de forma facilitada, bem como a liberação para compras sem licitação e para ultrapassar metas fiscais para custeio das ações de combate à crise.
Em consulta ao Querido Diário, ferramenta de busca criada com o intuito de facilitar o acesso aos Diários Oficiais das cidades brasileiras, a AGN apurou que entre 2021 e 2024, as 9 cidades analisadas frequentemente alternam entre estado de emergência por fortes chuvas e estado de emergência por seca. Ficando aptas, a partir desses decretos, a receberem verbas do governo federal para ações de reparação aos desastres. Ubaíra dispôs de R$308.704,44 para execução de ações de Defesa Civil dentre kits de limpeza, contrato com empresas de combustíveis e cestas alimentícias. Para a cidade de Wanderley foram transferidos R$354.000,00 para execução de ações de Defesa Civil e locação às vítimas que perderam suas moradias nas tragédias, além do envio de R$55.225,00 para cestas e kits alimentícios. A cidade de Ilhéus, uma das mais afetadas pelas chuvas, recebeu um auxílio no valor de R$92.469,21 para execução de ações de Defesa Civil.
Em 29 de Janeiro de 2024, a Superintendência de Proteção e Defesa Civil do estado da Bahia instalou uma operação de emergência para socorrer municípios baianos afetados pelas fortes chuvas, acionando equipes de diversas áreas para atuar in loco. “Já estão sendo feitos os reparos em estradas e a entrega de alimentos, água potável, medicamentos e ambulâncias. A Defesa Civil do Estado está atuando em Mutuípe, Medeiros Neto, Ilhéus, Muquém do São Francisco, Wanderley e Cotegipe, onde já entregou 33 toneladas de alimentos, 5.500 litros de água, 650 colchões, 650 lençois, mil kits de higiene pessoal e 200 kits de limpeza” declarou o órgão por meio de nota.
A AGN averiguou a existência da Defesa Civil Municipal ou órgão equivalente nas cidades afetadas através de busca nos diários oficiais, site e redes sociais das respectivas prefeituras e em matérias jornalísticas. Entre as nove cidades analisadas, oito possuíam Defesa Civil operante, portanto, estão aptas a emitir parecer técnico para solicitação de estado de emergência junto ao governo federal. A reportagem não encontrou vestígios sobre a existência do órgão em Iguaí e não conseguiu contato com a prefeitura até o fechamento desta reportagem.
O que dizem os pesquisadores
Roberto Guimarães, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em riscos e prevenção de desastres, ressalta que uma das grandes dificuldades em antecipar a recorrência de tragédias ambientais tem relação com as mudanças climáticas como derretimento de geleiras e desmatamentos. Explica que o procedimento para previsão se baseia em pesquisas de mapeamento para áreas de riscos, monitoramento de eventos naturais e simulações testes para capacitar a população. Com essas alterações climáticas o planeta muda, o volume de água aumenta e a pesquisa acaba se perdendo por não ser capaz de computar a água extra.
O professor aponta que é “uma questão de um estudo macro, que pode ser feito no [âmbito] nacional ou estadual, no contexto de instalação de radares e ampliação da rede de Estações Automáticas de medição de chuva, tudo isso acoplado ao programa nacional do INEMA [Instituto Do Meio Ambiente E Recursos Hídricos]”, responsável pelo monitoramento do Índice de Precipitação.
Segundo o especialista, cada construção de encostas e barragens é finalizada com planos de prevenção, aprovado pela defesa civil do município, por responsabilidade do proprietário, seja ele público ou privado. Em caso de riscos, o responsável deve procurar a defesa civil municipal e, se necessário, é feito o encaminhamento para as superintendências estaduais e então a nacional.
Guimarães acrescenta que “a educação ambiental é útil para tudo”, a exemplo das ilhas de calor, quando uma região urbana tem temperaturas mais altas do que as de regiões rurais em seu entorno. O pesquisador afirma que a forma mais fácil de lidar com as ilhas de calor é pela implantação de ilhas de alívio, ilhas de arborização que poderiam ser cuidadas pelos próprios moradores da região.
“Minha sugestão, pela parte da imprensa privada, é que seja criada uma sessão de alterações climáticas”. Para o pesquisador, a editoria de alterações climáticas, inicialmente, pode ser veiculada mensalmente, desde que evolua para uma publicação diária, a fim de conscientizar a população e trazer esse tema urgente para o debate público.
Efeitos da emergência climática
O impacto desses eventos são sentidos na pele pelos moradores das cidades atingidas, que frequentemente precisam recomeçar suas vidas após perderem seus bens, entes queridos e vivenciarem situações traumáticas nas tragédias climáticas. Laiana Lisboa, criada na cidade de Ubaíra, conta que saiu da sua terra para estudar, em 2018, mas estava de volta durante a tragédia de 2021, por conta da pandemia de Covid-19, e vivenciou momentos de grande tensão vendo sua cidade ser tomada pela enchente.
“Foi muito assustador. Minha casa era no primeiro andar, a água não tinha chegado, só que embaixo era uma oficina, a oficina estava tomada de água. Eu olhava para um lado e tinha muita água passando, [o som da enchente] estava muito alto. Só se via os telhados das casas, ouvia as casas desabando. Só passando freezer, coisas de mercado, várias coisas sendo arrastadas. Alguns carros foram carregados e tivemos medo de algum deles bater na estrutura da minha casa, porque fica mais comprometida quando está muito tempo na água, então foi bem assustador.” relata.
A enchente em Ubaíra começou em pleno Natal, na tarde do dia 25, e no dia 27 a água começou a baixar. A partir desse dia os moradores ilhados, como Laiana e sua família, puderam sair de suas casas e mensurar o tamanho dos estragos. “Ficamos ilhados por quase dois dias. O helicóptero resgatou algumas pessoas que a gente viu depois, por foto, porque ficamos sem internet, sem energia. A gente só viu, na verdade, o helicóptero sobrevoando, só que não tínhamos nem noção, dentro de casa, de todos os estragos que tinham sido causados, quão a água estava alta, só depois que vi as fotos eu fiquei pensando que a gente deveria ter subido no telhado de casa e pedindo para o helicóptero tirar a gente de lá.”
Em 2021 e 2022 a prefeitura de Ubaíra decretou estado de emergência, ficando apta para receber recursos emergenciais. Com muitas pessoas sem casa, a prefeitura disponibilizou um auxílio aluguel, cestas básicas e alguns aparelhos domésticos. Para os comerciantes, foi disponibilizado um empréstimo com condições especiais, como uma oportunidade de recomeçar. Laiana nos conta que os impactos materiais em sua família após a enchente quase a impediram de voltar a estudar em Salvador. “Meu pai perdeu a loja dele, a água chegou até o teto e inclusive foi bem difícil para eu voltar para Salvador porque foi a época que a UFBA voltou também, depois da pandemia, e ele não tinha dinheiro para me ajudar porque tinha perdido a loja toda. A minha casa não chegou a ser atingida, porque era primeiro andar, mas minha mãe guardava a moto na garagem do vizinho, que ficou totalmente submersa, então também teve gastos para fazer a moto funcionar novamente.”
Ubaíra também decretou estado de emergência em 2024, após sofrer com fortes chuvas, desta vez, com alagamentos de menor proporção. Laiana, que vivenciou as enchentes de 2021 e teve família e amigos impactados pelas enchentes de 2024, nos conta que aprendeu a não subestimar a natureza. “Apesar de nunca ter acontecido antes, as pessoas meio que subestimaram achando que não chegaria àquele nível de calamidade, de destruição. Eu teria saído de casa quando a água ainda estava baixa”, confessa.
Apesar de terem muitos documentos oficiais com a destinação de verbas para situações de emergência, como mostramos na reportagem, segundo a nota técnica nº1 da Associação Iyaleta, “Governança de Desastres, Trade-off e Adaptação Norte e Nordeste do Brasil”, os municípios do Nordeste têm o menor número de Planos Municipais de Redução de Riscos. Segundo o documento, a região tem menos de 30% de disposições para prevenção de enchentes ou inundações graduais, enxurradas ou inundações bruscas. Além disso, a nota revelou que cerca de 6% do total de municípios brasileiros apresentavam a existência de planos de implantação de obras e serviços para reduzir o risco de desastres. E no Nordeste, esse número é ainda menor, com 5,78% dos municípios preparados com planos de redução de danos aos desastres ambientais.
Todos os paineis e pesquisas sobre o clima já comprovaram que o planeta está em situação de emergência climática, as consequências disso já preocupam o globo e, apesar dos governos estadual e federal destinarem grande número de fundos para cidades em situações de emergência, os moradores continuam sofrendo com a repetição de tragédias na Bahia. Cada choro das famílias que precisam se reerguer pós-enchentes, deslizamentos e outras tragédias, abre margem para a pergunta: Será que o dinheiro gasto na atuação pós desastres ambientais, que reconstrói e desafoga cidades inteiras, não seria mais consolador se usado na prevenção de desastres?
*Em caso de desastres ambientais, a população deve acionar a Defesa Civil, através do número 199, que está disponível em todo o território nacional.
**Esta reportagem foi produzida com o uso do ‘Querido Diário’, ferramenta de inovação cívica criada para abrir e integrar os diários oficiais.