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Atualizado em 30 DE setembro DE 2011 ás 13:01

Célida Salume Mendonça

Pesquisadora da Escola de Teatro da Ufba fala sobre sua tese de doutorado: “Fome de quê? Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador”. A pesquisa, concluida em 2009, foi realizada em escolas públicas de Salvador e revela a importância das artes na educação de crianças

Por Adriana Rodrigues*
adrianadinha@hotmail.com

Ciência e Cultura – Conte-nos um pouco de sua história e que a levou optar pelo teatro.

Célida Mendonça – Sou catarinense, nasci na cidade de Rio do Sul. Meu pai é baiano, desenhista publicitário e artista plástico autodidata. Comecei a fazer teatro ainda adolescente, no mesmo período em que concluía o magistério. Na mesma época, fui surpreendida ao encontrar no jornal o anúncio de um novo curso, Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas, hoje Curso de bacharelado e licenciatura em Teatro no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde inicie no curso em Florianópolis.

Não tinha condições de me manter na capital, mas ao passar no vestibular, recebi o apoio da família e aos poucos as soluções foram aparecendo. Durante o curso, trabalhei como monitora em alguns projetos de ensino de teatro na comunidade, ao mesmo tempo em que participava de um Grupo de Teatro local. Terminado o curso, voltei para a minha cidade onde a opção pelo ensino de teatro foi se solidificando na prática em fundações, escolas e universidades. As mudanças que observava nos alunos de teatro me instigaram a cursar especialização em Psicopedagogia. Voltando a Florianópolis lecionei por alguns anos no curso em que havia me formado e continuei a trabalhar com crianças e adolescentes no Departamento Artístico Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Escola Sarapiquá. No aspecto pedagógico, a escola se fundamentava na abordagem construtivista e nos métodos dos educadores Celestin Freinet e Paulo Freire e vinha sofrendo influências de pensadores como César Coll, Phillipe Perrenoud, Delia Lerner e Tomaz Tadeu da Silva, valorizando a pesquisa e oferecendo formação continuada aos profissionais da escola. Além disso, o curso em Psicologia Existencialista (Núcleo Castor de Estudos e Atividades em Existencialismo – Nuca) contribuiu significativamente para o amadurecimento de questões ontológicas, antropológicas e psicológicas pertinentes ao processo educacional.

Ciência e Cultura – Como surgiu a idéia do seu tema de pesquisa?

Célida Mendonça – Minha motivação para pesquisar os processos de criação cênica realizados no ensino fundamental, surgiu a partir das práticas teatrais desenvolvidas nas escolas em que lecionei, bem como minha experiência como professora e orientadora de estágio nas disciplinas de Teatro na Educação na Udesc. Tanto na escola como na universidade, pude observar as relações que se estabelecem no percurso criador cênico envolvendo singularidades no aspecto social, no aspecto simbólico-imaginário, nas relações entre jogos preparatórios, jogos teatrais, técnicas e processos de criação e no enriquecimento progressivo do potencial criador de cada aluno. Estas questões motivaram meus estudos e a escola pública foi escolhida como campo de pesquisa em função dos impasses enfrentados pelos alunos de graduação em suas experiências de estágio. O tema “Fome de quê?” Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador surge logo nos primeiros encontros com as crianças que freqüentavam a 4ª série em um dos campos de pesquisa para o doutorado. A fome enquanto metáfora foi identificada na relação desses alunos com o espaço e com a materialidade que lhes era oferecida para desencadear o processo criativo: imagens, músicas, tecidos, instrumentos, registro fílmico e a transformação da sala de aula.

“Através do teatro ocorre uma diminuição da supervalorização dos erros e um enriquecimento da conscientização da ação, fortalecendo na criança a autoconfiança, a comunicação, a objetividade, a absorção e o desenvolvimento da capacidade de concentração”


Através do olhar de cada um deles era possível observar que a aula de teatro tinha um sabor, no sentido de “ter o gosto de” ou “o sabor de”, e um significado diferenciado. Inicialmente por conta da abordagem pedagógica tradicional (a metodologia do quadro e giz, aula expositiva e reprodução) ainda muito presente nas escolas, um ensino excessivamente abstrato e desvinculado de reflexões, descontextualizado, e que desconsidera o corpo no processo e aprendizagem, enfim, distante da realidade e da sociedade em que vivemos; e em segundo lugar, por possibilitar uma nova relação com o espaço e com os colegas. Cada elemento oferecido para o grupo era devorado com voracidade não apenas por tratar-se de uma aula de teatro, mas por tornar o ensino atraente e significativo. É importante lembrar que a possibilidade de atividades inovadoras que tornem as aulas dinâmicas, prazerosas, interessantes e produtivas, resultando em verdadeira aprendizagem, não se restringe apenas ao ensino de artes.

Ciência e Cultura – Como surgiu a ideia de fazer um trabalho criativo indo além do molde acadêmico usando, por exemplo, a metáfora da refeição dividida em entrada, prato principal e sobremesa para dividir as etapas de sua pesquisa?

Célida Mendonça – A imagem aqui escolhida de uma “refeição” associada às várias etapas do processo criativo; originou-se de minha experiência na disciplina Processos de Encenação (2006) oferecida pelo doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (Ufba). O curso ministrado pela professora Dra. Sonia Rangel disponibilizava uma variedade de autores no formato de “cardápio” para serem saboreados pelos alunos. As discussões suscitadas influenciaram o formato deste trabalho permitindo que aflorasse “a ludicidade em rizoma indispensável de criação”. A disciplina estabelecia relações com os projetos de pesquisa individuais, propondo uma reflexão sobre os processos de encenação como processos criativos, oferecendo subsídios para identificar e desenvolver os campos de conhecimento que cada projeto instaurava; o que contribuía, a meu ver, para um diálogo entre filosofia, poesia e arte.  Além disso, pelo pouco tempo em que aqui resido pude observar o papel da comida nessa cultura, aliado é claro, às lembranças de infância no quintal de meu bisavô quando vinha à Bahia de férias. Ao iniciar minha experiência na escola, as imagens da fome e da refeição se fizeram presentes de forma análoga, sendo apropriadas como uma moldura, possibilitando o diálogo com uma emoção estética impossível de ser capturada em outra situação que não fosse aquela da experiência vivida.

Ciência e Cultura – Qual foi sua percepção do teatro na escola pública, a partir da sua experiência prática durante o doutoramento?

Célida Mendonça – Antes de falar do teatro nas escolas, não há como ignorar o ensino nesses espaços. O que mais me entristece é constatar a falta de diálogo entre o administrativo e o pedagógico em várias instituições. Fui surpreendida ao verificar que muitas escolas não dispõem nem ao menos de uma área externa coberta, além das salas de aula. No que diz respeito ao ensino de teatro nas escolas, ele vem ganhando espaço com os concursos públicos que fazem valer a obrigatoriedade do ensino de arte, como o que já acontece a nível municipal, mas ainda é pouco. Muitas escolas oferecem o teatro apenas a nível extracurricular através de projetos ou oficinas.

É comum a linguagem não ser compreendida como área de conhecimento, mas como um recurso didático ou como instrumento pedagógico para o ensino de conteúdos extra teatrais, ligados a diferentes disciplinas do currículo, ou ainda, a serviço de apresentações encomendadas pela direção da escola. O teatro tem seus próprios conteúdos, assim como outras disciplinas, e enfrenta problemas como a falta de espaço, tempo reduzido e número excessivo de alunos por turma. Felizmente as pesquisas realizadas em congressos de Arte e Educação e de Teatro, vem propondo soluções e alternativas para driblar as dificuldades encontradas. Como professores de teatro nosso desafio permanente é construir novos espaços, transpor esses limites estabelecidos através da carência estrutural da escola pública, do ambiente, muitas vezes, triste e carregado, da falta de hospitalidade e afetividade. A sala de aula ainda pode converter-se em um espaço vivo, exercendo atração e interesse nos alunos, reencantando a educação.

Ciência e Cultura – Falando do teatro como forma de recuperação da autoestima, que influencia mudanças de comportamento das crianças com as quais trabalhou, como foi a convivência com estas crianças e quais resultados obteve?

O teatro possibilita ao aluno conhecer melhor suas experiências, estimulando-o a se expressar amparado por um conhecimento, por uma linguagem. Ele promove a conscientização, uma noção de coletividade, de proximidade, uma visão mais crítica e sensível da realidade, o que altera em consequência a maneira de pensar e de agir. O jogo teatral, utilizado com frequência como metodologia de ensino, contribui com uma representação física e consciente, limitada por regras e acordo grupal, acompanhada de espontaneidade, tensão e entusiasmo. É do exercício da percepção, da imaginação e da socialização que surge a criança mais sensível e segura, mais aberta à produção do conhecimento e ao processo criador. Os fatores de ordem afetiva e de personalidade, uma das possíveis causas do fracasso escolar, podem ser amenizados quando a criança compartilha o mundo com seus colegas. Através do teatro ocorre uma diminuição da supervalorização dos erros e um enriquecimento da conscientização da ação, fortalecendo na criança a autoconfiança, a comunicação, a objetividade, a absorção e o desenvolvimento da capacidade de concentração. A própria natureza artística do fazer teatral, comporta em si mesma, um valor educacional mais amplo, relacionado as suas próprias qualidades estéticas.

Podemos arriscar afirmar que, a mudança de comportamento passa a acontecer também quando os alunos identificam no professor alguém que se preocupa com eles, alguém em quem confiar. Nas palavras de Madalena Freire, “não existe educação sem conhecimento, sem amor, sem esses ‘temperos’ que condimentam o sentido da vida, da educação”. As demonstrações de afeto e leves sorrisos começaram a ser mais frequentes no grupo quando o desejo e a segurança se estabeleceram, o que não significa afirmar que as dificuldades deixaram de se fazer presentes. Viabilizar aos alunos uma experiência criativa é dar oportunidade de ver, de observar e ser observado, de se conhecer, exercitando-os para uma vida social e sociológica. Muitos nem sabiam o nome dos colegas de turma, muitos nunca haviam trabalhado em grupo antes. São detalhes tão pequenos, mas extremamente significativos quando falamos de educação.

Ciência e Cultura – Quais foram as mudanças na sua percepção e comportamento após a vivência prática de sua pesquisa?

Célida Mendonça – Não posso negar certo desânimo em relação à educação quando após essa experiência pude estar cara a cara com o abismo que existe entre as leis e direitos em nosso país e o que efetivamente encontramos nas escolas. Infelizmente o sistema educacional vigente não desperta o apetite em nossas crianças e adolescentes. É preciso sair das quatro paredes, discutir conteúdos vivos, visões de mundo, ensinar a ver, tocar, sentir, criticar, “apalpar as intimidades do mundo”, como diria Manoel de Barros. A mudança de comportamento vem no sentido de reafirmar ainda mais que apenas as ações modificam. Continuo insistindo com meus alunos que “apesar de”, precisamos alimentar o desejo em nossa atuação como profissionais, precisamos continuar pesquisando, repensando nossas práticas, nossas certezas e enfrentando o desafiador cotidiano escolar. A escola pública seria o lugar ideal de democratização do ensino da arte e do acesso à formação estética e cultural, mediada igualmente pelo uso da tecnologia, mas a condição faminta ainda é o resultado de uma desigualdade social e do descaso, mas não da conformidade em relação à qualidade da educação pública.

Ciência e CulturaO poder público tomou conhecimento dos resultados de sua pesquisa? Se sim, houve receptividade, o que aconteceu? Se não, por que não houve materialização de um projeto baseado em sua pesquisa?

Célida Mendonça – Apesar do trabalho de pesquisa estar disponibilizado na página da biblioteca digital da Ufba, acredito que o poder público não tenha tomado conhecimento. Seria importante que as políticas que incentivam o ensino de Arte favorecessem uma prática pedagógica que atenda à necessidade de aprendizagem dos alunos do sistema público de ensino, dentro do seu contexto social e cultural. O poder público se mantém muito distante dessas realidades, acredito que nem ao menos questione a existência ou não do ensino de Arte em muitas escolas, aqui e no interior do estado, bem como a qualidade com que esses processos vêm sendo desenvolvidos, quando ocorrem. Além disso, encontramos profissionais sem formação adequada ocupando a função de docentes. Quando o assunto é educação o que estamos acostumados a ver são: professores desmotivados e faltando com frequência, greves, evasão escolar, superlotação em sala de aula, salas de aula interditadas, inexistência de áreas de lazer, falta de equipamentos, equipamentos sem uso, entre outros. Muitos programas de ensino não oferecem as condições mínimas de funcionamento nas escolas, a questão se reduz a metas cumpridas, estatísticas, números. Assim, antes de se falar do ensino de teatro, é preciso falar simplesmente de ensino.

*Publicitária e pós-graduanda em Jornalismo Científico e Tecnológico pela Ufba

Saiba mais

“Fome de quê? Processos de Criação Teatral na Rede Pública de Ensino de Salvador”

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