Seu Discurso sobre o Método se tornou uma via de mão única nas mãos dos cientistas modernos. Estes o interpretaram exclusivamente em benefício das ciências exatas e naturais
*Wagner Ferreira
wagner.ferreira@ufba.br
No Discurso sobre o Método, tratado matemático e filosófico escrito por René Descartes, publicado na França em 1637, o filósofo frâncês buscou, inicialmente, combater a justificativa católica da Escolástica – grupo de disciplinas que predominou na Europa da Idade Média entre os Séculos IX e XVI. O objetivo de Descartes em separar a ciência daquela época da religião acabou colocando à margem as ciências sociais em relação às exatas. A Sua teoria propôs “iluminar” as mentes obscuras da época, o que deu início a uma corrente de pensamento denominada Iluminismo. O período marcou o fim da Idade Média e o começo da Moderna.
Muitos historiadores fizeram um certo juízo de valor da Idade Média, pelo fato de ela ter sido um período “negro” da história da humanidade. Dessa forma, chegaram à conclusão que o mundo foi marcado por três grandes períodos, dos quais, apenas duas épocas presenciaram acontecimentos de progresso e evolução da raça humana no plano intelectual e cultural: a época dos gregos e a das invenções modernas.
Assim, a Idade Média foi compreendida como um período de retrocesso do pensamento, de atraso intelectual, científico e cultural. Um momento da história em que o domínio da fé obscureceu as “luzes” da razão e emperrou o progresso. “Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute, só as matemáticas demonstram o que afirmam.”, trecho do Discurso do Método. Descartes marcou o começo de uma nova era na história ao oferecer outra explicação para o castigo divino promovido pela Igreja Católica e de quebra combateu o intenso charlatanismo daquele período.
Mas seu Discurso se tornou uma via de mão única nas mãos dos cientistas modernos, que o direcionaram exclusivamente para a validação das suas metodologias. Tal propósito serviu para que cientistas da Física, Matemática e da Biologia promovessem as ciências matemáticas e naturais à categoria de única ciência verificadora de tudo.
A apropriação do discurso de Descartes em benefício exclusivo das ciências duras toma força em meados do Século XX, com o advento de grandes descobertas da Física e da Química moderna, mesmo sem que o filósofo francês minorasse a importância da literatura, artes e filosofia, pelo contrário, as citou em seu Discurso.
Até os dias atuais, a grande maioria das escolas do mundo ensina um sistema de verificação exaustiva, o qual valida tudo que possa ser aplicado, ou seja, capaz de funcionar em um modelo de falhas e acertos dentro do esperado pelo cientista, condenado pelo sociólogo compatriota de Descartes, Edgar Morin: “o jogo da verdade e do erro que a ciência se debruça, esse sim é superior num universo ideológico, religioso, político, onde há o risco desse jogo ser bloqueado ou falseado”. Diz Morin no livro Ciência com Consciência. Para Morin, o físico não é mais inteligente do que o sociólogo, que ainda não consegue fazer da sociologia uma ciência. A observação de Morin é relevante na medida em que, na sociologia, a regra do jogo é muito mais difícil de ser estabelecida. “A verificação experimental é quase impossível, a subjetividade está sempre comprometida”, observa em sua obra.
René Descartes foi o divisor de águas entre uma ciência até então empírica, baseada em dogmas e outra excessivamente verificadora. A publicação do célebre Discurso sobre o Método revolucionou o conceito metodológico religioso existente na Europa até o Século XVI. O Saldo de tal façanha pode ser atribuído por alguns de forma eufêmica, em uma má compreensão do que quis dizer Descartes, mesmo se tratando de um texto tão lúcido, que separava claramente o papel de cada ramo do conhecimento humano. Já para os mais críticos, houve o interesse por parte de uma classe de cientistas dispostos a promover um modelo de ciência conveniente à emergência das ciências matemáticas e biológicas do Século XX.
Passados mais de cem anos, o “testado cientificamente” ainda é responsável pelo crivo do que acreditamos ser seguro e verdadeiro. Já as ciências sociais, por utilizarem na maioria de suas pesquisas métodos qualitativos, ainda são vistas no meio científico tradicional como tão empíricas e dogmáticas quanto a alquimia ou a religião da Idade Média.
*Jornalista pós-graduando em Jornalismo Científico e Tecnológico pela Ufba