Dores intensas, falta de médicos e o preconceito da população são alguns dos problemas sofridos pelas pessoas que têm a enfermidade genética
Por Henrique Mendes
henrique.mendes2009@gmail.com
Dores nas articulações e nos ossos, anemia crônica e inchaços no corpo são os sintomas de uma doença genética que atinge uma em cada 650 pessoas na Bahia. Em todo o país, a enfermidade acomete, aproximadamente, 3500 crianças nascidas vivas. Falta de especialização médica e de campanhas que orientem a população e combatam o preconceito dificultam ainda mais a vida daqueles que convivem com o problema descoberto há apenas 100 anos: a Doença Falciforme.
A Bahia é o estado em que nasce o maior número de pessoas com a doença no país. Em segundo lugar está o Rio de Janeiro, onde a cada 1200 nascidos vivos, um tem o problema genético. Minas Gerais ocupa o terceiro lugar, com um doente para cada 1400 pessoas que nascem. Não é de se estranhar que os números sejam proporcionais aos Estados que possuem um número maior de afrodescendentes. Apesar de estar dispersa na população de forma heterogênea, a doença de origem africana atinge, em maior quantidade, pessoas negras.
Origem: doença combatendo doença
A malária, doença endêmica na África, causou a morte de milhões de pessoas no continente. Como autoproteção, os glóbulos vermelhos da população local sofreram mutação e assumiram formas de foice. Antes flexíveis e de fácil circulação pelo organismo, os glóbulos que possuem hemoglobinas que dão cor ao sangue e transportam oxigênio para todos os tecidos e órgãos tornaram-se mais rígidos, dificultando a passagem pelos vasos sanguíneos e deixando de oxigenar o organismo de forma satisfatória.
Essa mutação genética, inóspita para o parasita da malária, fez com que as pessoas sobrevivessem mais, tornando a doença falciforme mais frequente na população afrodescendente. Se houvesse malária em qualquer outro continente do mundo a mesma situação seria registrada, pois o traço falciforme não é uma característica genética do negro. A doença acabou se espalhando por todos os continentes por causa do maior crime registrado na história: a escravização de pessoas negras, em grande maioria da África, em todo o mundo.
Doença Falciforme e Traço Falciforme
Uma pessoa só terá a Doença Falciforme se herdar esse problema do pai e da mãe. Se herdar apenas de um deles, o indivíduo terá traço falciforme, ou seja, ele não apresentará os sintomas da doença, mas poderá transmitir esta herança para seus filhos. Duas pessoas que possuem este traço devem ficar atentas: caso tenham um bebê, a criança terá 25% de chance de ter a doença.
As pessoas que possuem o traço falciforme, apesar de não desenvolverem a doença, não estão livres de todos os seus sintomas. Atividade física em excesso e mudanças bruscas de temperatura, por exemplo, podem levar à falcização da hemácia.
Além disso, as pessoas que possuem o traço falciforme têm maior risco de infecção urinária, sangramento na urina (hematúria), enxaqueca e maior risco de câncer renal. Elas também correm o maior risco de morrerem subitamente durante a realização de atividades físicas prolongadas. Sendo assim, precisam ficar atentas a esses sintomas e visitar os médicos com maior regularidade.
Dados do Programa Nacional de Triagem Neonatal mostram que na Bahia a incidência do Traço Falciforme é de um nascido vivo para cada 17 pessoas. No Rio de Janeiro é de um em cada 21 bebês que nascem. Em Minas Gerais, a proporção é de um nascido vivo para cada 23 indivíduos. Com base nesses dados calcula-se que nasçam no país, por ano, 200.000 pessoas com o Traço.
Sintomas – “Quando ela sente dor em casa eu dou remédio, mas quando dá dois dias e não passa, eu levo pro hospital. Ela fica cinco, seis dias tomando soro, e depois voltamos pra casa. Mesmo tomando medicamento, essa dor demora de passar”, contou a dona-de-casa Albertina da Silva, da cidade de Jaguaquara-Ba, mãe de uma criança de cinco anos que tem a doença.
As crises de dor são, de fato, os indícios mais frequentes do problema. Elas ocorrem pela ausência de oxigênio em alguns tecidos, causado pela falcização das hemácias. A intensidade pode ser leve, sendo tratada com ingestão de água e analgésicos, ou ser bastante severa, exigindo hospitalização.
Outros sintomas característicos da doença são: icterícia (cor amarela nos olhos), inchaço e vermelhidão nas mãos e nos pés de crianças pequenas, infecções, úlceras nos tornozelos, palidez, cansaço e dor no baço. Além disso, alguns adolescentes, e até mesmo crianças, podem apresentar o priapismo, ereção involuntária, prolongada e dolorosa do pênis, não tendo nenhuma relação com desejo sexual.
Diagnóstico e Tratamento – A doença falciforme é diagnosticada, principalmente, no teste do pezinho, nome popular da triagem neonatal. O exame é fornecido gratuitamente pelo governo brasileiro e o bebê deve ser submetido a ele entre o 3º e o 7º dia de vida. Jovens, adultos e crianças com mais de quatro meses de idade, que não passaram pelo procedimento, podem realizar o exame de sangue chamado eletroforese de hemoglobina para que façam o diagnóstico.
A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) é a instituição brasileira responsável pelo diagnóstico (através do teste do pezinho) e pelo tratamento da doença. Na Bahia, o local atende quase 200 mil pessoas por ano, na capital e no interior. A Apae, até 2010, registrou uma média de quase 3000 atendimentos às pessoas com doença falciforme. Os pacientes diagnosticados com o problema são acompanhados por assistentes sociais, hematologistas infantis (especialistas em doenças do sangue), pediatras, nutricionistas, psicólogos, odontólogos infantis e geneticistas (acompanham a orientação genética das famílias).
O tratamento da criança compreende, ainda, vacinas, antibiótico e vitaminas. Algumas vacinas que antes não eram disponíveis pelo SUS, como pneumonia, hepatite A, gripe e catapora, já são acessíveis. Até os cinco anos de vida, as crianças tomam antibióticos de maneira profilática, pois neste período elas estão propensas a contrair infecções que podem agravar o quadro de saúde. O ácido fólico, vitamina do grupo B, também é usado em crianças com anemia falciforme, pois ajuda na produção das hemácias.
Falta de médicos e preconceito
De acordo com os profissionais da Apae, em Salvador, a população baiana ainda desconhece a doença. “As famílias chegam aqui com muitas dúvidas e, às vezes, até amedrontadas”, afirmou a geneticista do local, Adriana Amorim. De acordo com ela, existe desinformação inclusive entre os profissionais de saúde. “Há relatos de que pacientes receberam erradamente o diagnóstico de leucemia”, alertou. De acordo com a pediatra e hematologista do Hospital das Clínicas, Isa Lyra, muitos médicos especializados são subaproveitados em outras áreas da medicina.
Para a assistente social da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, Maria Cândida Queiroz, é justamente por isso que a existência e a correta produção e veiculação de campanhas comunicacionais, educacionais e publicitárias sobre a anemia falciforme são necessárias. “As campanhas e cartilhas devem ser capazes de atingir pacientes, profissionais de saúde e toda a sociedade”, afirmou.
As pessoas com a doença falciforme sofrem, ainda, um estigma velado de preconceitos ligados à afrodescendência. A pobreza, associada à questão histórica dos descendentes de escravos, que foram mal inseridos na sociedade, são fatores que propiciam esse tipo de comportamento.
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