Professora da Escola de Enfermagem da Ufba (EEUfba) desde 1985, trabalhou como enfermeira da Secretaria de Saúde da Bahia até 1996, quando se tornou professora na Ufba. Além do ensino da graduação, Cristina Melo está envolvida na atividade de extensão Programa de Educação para o Trabalho na Saúde – PET Saúde da Família, programa financiado pelo Ministério da Saúde, que visa integrar precocemente os jovens estudantes da graduação dentro dos serviços de saúde, no caso, na Estratégia Saúde da Família. Membro do grupo de pesquisa Gerir - Núcleo de Pesquisa e Políticas de Gestão, Trabalho e Recursos Humanos em Enfermagem e Saúde Coletiva, da EEUfba, que agrega alunos de graduação e pós-graduação e enfermeiras dos serviços que se interessam em se familiarizar com a experiência de discussão de temas relacionados à pesquisa. Nesta entrevista ela fala sobre o projeto Avaliação da gestão descentralizada da Vigilância Epidemiológica nos municípios da Bahia, sobre a enfermagem e sobre o futuro do SUS
Por Daniel Silveira*
dansilcruz@gmail.com
Ciência e Cultura – O que é e como surgiu o projeto de avaliação da gestão descentralizada da Vigilância Epidemiológica nos municípios da Bahia?
Cristina Melo - Essa foi uma proposta que surgiu de uma aluna que queria fazer o doutorado. A Vigilância Epidemiológica (VE) é uma área estratégica de segurança nacional, mas no Brasil, ela não é compreendida politicamente como tendo esse papel. Nos EUA, fica muito claro, mas no Brasil, ainda não se dá muita atenção a isso. A não ser quando houve a reforma do aparato do Estado Brasileiro em 1995, que essa foi uma das poucas áreas, junto com as Vigilâncias em geral, que não foi submetida à condição de terceirização e gerida pelo setor privado, por ser uma área de interesse estratégico de segurança de estado. Fizemos o projeto, que na verdade foi um empreendimento coletivo, dessa já doutora, Silvone Santa Bárbara, professora na Uefs, da professora Heloniza Costa e de estudantes que estavam aqui na época, envolvidos com essa iniciativa. Transformamos a ideia inicial da aluna de doutorado em um projeto, fomos financiados e estamos na fase final de coleta de dados. Ele foi um projeto de duração de três anos que se encerra em outubro desse ano. Concluímos a coleta de dados, mas ainda não concluímos a analise de todo material coletado.
Ciência e Cultura – Quais os resultados parciais do projeto?
Cristina Melo – Já tivemos um trabalho de conclusão de curso (TCC) que tratou do perfil dos gestores da VE a partir dos dados que a gente coletou pra avaliação. Em todos os municípios que participaram da amostra, tanto do movimento quantitativo, quanto do momento qualitativo da pesquisa, a gente identificou que o gestor ou gerente das ações, da coordenação ou do serviço de VE era quase sempre uma enfermeira. Esse foi o primeiro produto. Geralmente são enfermeiras, jovens com pouco tempo na função, que, necessariamente, não têm experiência de gestão antes de assumir a uma área estratégica de gestão no SUS. Não conseguimos responder por que são enfermeiras, dado que historicamente, as enfermeiras assumem muitas funções gerenciais no SUS, mas quase nunca o fazem por méritos, mas pela disponibilidade dessa profissional nos municípios. A maioria das enfermeiras que está nos municípios trabalha e vive nos municípios, o que nem sempre acontece com os médicos. O segundo produto é a própria tese de Silvone, em que nós fizemos uma avaliação em dois momentos. Fomos avaliar a capacidade de gestão, portanto não fomos avaliar os resultados finalísticos da coordenação das ações da coordenação de VE.
Ciência e Cultura – Como se deu a metodologia do projeto?
Cristina Melo – Para fazer essa avaliação, a gente procedeu metodologicamente em dois momentos. No primeiro, a gente fez uma avaliação quantitativa a partir de um questionário enviado para os 417 municípios baianos, via online. Uma experiência muito boa, e que depois pudemos avaliar algumas falhas estratégicas para conseguir uma representação maior de municípios que tivessem respondido esse instrumento. Ele foi mandado através da estrutura da Superintendência de VE da Sesab através do e-mail institucional pelo qual a Superintendência de VE se comunica com os municípios. A Superintendência foi muito favorável e facilitou todos os contatos iniciais com os municípios, secretarias municipais e pessoas responsáveis nesses municípios pela vigilância.
O instrumento era razoavelmente grande, com cerca de 40 perguntas ainda que fechadas e que não permitiu que as pessoas pudessem ir respondendo paulatinamente, o instrumento tinha que ser respondido em uma de uma só vez, porque só salvava as respostas assinaladas pelo respondente, quando finalizava. Então essa foi uma das razões que nós atribuímos ao fato de não termos tido a resposta numérica esperada por ser uma via institucional. Esse primeiro momento foi feito através desse instrumento e da análise de dados secundários já disponibilizados pelo sistema de informação do SUS com os indicadores de cobertura vacinal, mortalidade infantil, principalmente aqueles direcionados para a área de vigilância. Selecionamos os municípios que apresentaram a melhor capacidade de gestão, um em cada uma das nove macrorregiões do estado e partimos para o segundo movimento, que foi fazer uma análise qualitativa, buscar informações que preenchessem e aprofundassem alguns aspectos do desempenho quantitativo dos municípios que tiveram melhor desempenho na avaliação quantitativa.
Ciência e Cultura – Qual o resultado mais marcante dessa etapa do estudo?
Cristina Melo – O resultado quantitativo mostrou uma surpresa. Esperávamos que os municípios maiores, presumivelmente melhor estruturados, com quadro técnico maior, ou melhor qualificado, fossem apresentar melhor desempenho. Dos 12 municípios baianos que tem mais de 100 mil habitantes apenas um foi avaliado positivamente na sua macrorregião. Todos os outros oito melhor avaliados não são municípios com nem sequer 50 mil habitantes. O que significa aparentemente, que ser maior, ter mais recursos, melhor estrutura de secretaria, maior quadro, ou possivelmente um quadro técnico melhor qualificado não assegurou melhor desempenho na capacidade de gestão desses municípios. E ao fazer um trabalho de campo de entrevistar Secretário Municipal de Saúde, quase sempre mulheres, coordenadores da vigilância epidemiológica, quase sempre mulheres e enfermeiras, ou os coordenadores dos serviços, também quase sempre mulheres e enfermeiras, nós vimos que, mesmo tendo tido resposta, a melhor possível, que deu pra ser qualificado como melhor capacidade de seu município, as condições qualitativas desses municípios estão longe de considerar que a VE é uma área estratégica do SUS. Eles trabalham em condições insuficientes e fazem ainda assim um grande trabalho.
Ciência e Cultura – A avaliação diz quais são os municípios bons e ruins na assistência à Saúde na Bahia?
Cristina Melo – Não, essa metodologia que nós usamos tenta desmistificar o processo de avaliação como um julgamento que vai dizer se o serviço é bom ou ruim. Diz o que ele tem conseguido fazer e o que ele não consegue e porque ele não consegue. Tenta contextualizar as condições em que são desenvolvidas as atividades para mostrar que toda avaliação é retrato de momento e que ela tá dentro de um contexto. Se formos analisar os contextos dos nove municípios que se desenvolveram melhor no movimento quantitativo da avaliação, a gente pode dizer que eles fazem muito mais do que o contexto permite. Os nomes dos municípios não podem ser identificados por razões éticas, mas posso dizer que Salvador não está incluído.
O modelo de avaliação não tem como pressuposto uma punição, é muito mais de avaliar um processo e de mostrar constrangimentos e avanços. Esse é um modelo que permite mostrar onde o município é mais frágil ou mais forte e esse desenho serve para avaliar essa capacidade de gestão em três dimensões. A gente definiu para ser avaliado, que a capacidade de gestão pode ser revelada através de um triângulo em que nós temos como dimensões, aquilo que chamamos os elementos que compõem a capacidade organizacional daquele lugar que estamos desenvolvendo a atividade, uma capacidade operacional e uma capacidade de sustentabilidade que é a capacidade de manter a definição de projetos e operar os projetos desenhados.
Ciência e Cultura – O que seriam essas dimensões?
Cristina Melo – Na dimensão organizacional temos indicadores que se relacionam com a estrutura do serviço, com a coordenação que é encarregada em todo o município de receptar as ações de VE, é basicamente quadro técnico, o perfil do gerente. A dimensão que chamamos operacional está relacionada com infraestrutura, recursos materiais, condições, capacidade técnica, capacitação de pessoas que estão lá, perfil destas pessoas. E na dimensão da sustentabilidade, tentamos ver qual a relação política num plano de articulação entre a secretaria municipal de saúde e outras instâncias, como a secretaria estadual, o ministério, como se articulam politicamente e tecnicamente para possibilitar que o município desenvolva as atribuições que lhe são imputadas pelo processo da gestão compartilhada do SUS.
Ciência e Cultura – Desde quando a gestão da Vigilância é descentralizada?
Cristina Melo – A partir da implantação do SUS em 1990, é que passa a ter todo um processo de descentralização de responsabilidade para o âmbito municipal. Segundo a lei que criou o Sistema Nacional de Saúde, em 1975, a assistência à saúde era dividida entre o Ministério da Previdência e Assistência Social, que respondia pela assistência médico-hospitalar e o Ministério da Saúde, que respondia pelas questões nomeadas como de saúde pública. Aos municípios a única competência era fazer pronto-atendimento, o que gerou uma modalidade assistencial, “ambulancioterapia”. Os municípios tinham um meio de transporte, que nem sempre era uma ambulância equipada, para o simples transporte de seu munícipe numa situação qualquer, inclusive parto, daquele lugar par um lugar mais próximo do seu município, ou para a capital do estado. Essa era a reponsabilidade dos municípios. Com o SUS, eles passaram a ser o cerne da prestação e serviços de saúde.
Ciência e Cultura – A gestão descentralizada tem funcionado?
Cristina Melo – Na verdade, se formos conceituar o processo de descentralização da Saúde no estado da Bahia, ele está muito mais próximo do que os autores da ciência política, da administração pública chamam de desconcentração, porque do ponto de vista da conceituação, a descentralização implica em tirar do nível central, do âmbito da união, do estado e passa a ser do município a responsabilidade e o poder. O poder significa poder de captar recursos, de dispor de infraestrutura física e material, ter pessoas com qualificação necessária. No entanto, se repassou a responsabilidade, mas não o poder efetivo. Essa é a situação que a gente identifica nos nove casos exemplares de nosso estudo. E também essa é a situação que a gente identifica em estudos anteriores sobre a gestão compartilhada do SUS. Desconcentram-se atribuições e responsabilidades, mas não a capacidade para fazer e assumir essa responsabilidade.
Ciência e Cultura – Como a senhora avalia o processo de descentralização?
Cristina Melo – Nesse processo de 21 anos de implantação do SUS, os municípios receberam todas as responsabilidade e atribuições para serviços, práticas e execução de ações com as quais eles não tinham familiaridade, nem experiência, acumulação técnica, tudo isso num espaço de tempo muito pequeno, já que isso tem acontecido mais fortemente nos últimos 15 anos. A Bahia é considerada pela literatura da saúde como um dos mais atrasados. Para se ter ideia, o município de Salvador, que não foi avaliado como um dos casos positivos na avaliação qualitativa, só assumiu a gestão plena do serviço municipal de saúde em 2006. Além disso, não há articulação e parceria efetiva entre as três esferas de governo da federação brasileira que compõem o SUS e que deve compartilhar responsabilidade pela gestão desse sistema e percebemos que os municípios têm muito mais responsabilidade do que condições objetivas sejam elas operacionais, políticas, de desenvolver com a capacidade plena ações da natureza da VE, que vão desde atividade de educação em saúde à população até o controle efetivo sobre organizações, instituições e até pessoas, para controlar casos de epidemias ou pandemias, como foi o caso recente da gripe H1N1.
Considerando que fizemos nove estudos de caso para aprofundar as condições de avaliação daqueles que foram os melhores avaliados, nos deparamos com condições objetivas absolutamente insuficientes para que esses municípios respondam a altura ao desafio de fazer o que é a saúde coletiva no seu sentido mais pleno, que é fazer com que as populações não adoeçam, evitar que doenças sejam disseminadas ou ainda para evitar, prevenir e promover em relação às doenças crônicas, além das doenças transmissíveis, que também são de notificação compulsória, de controle permanente pelo sistema de saúde. Imagine essa responsabilidade pra os 5.600 municípios brasileiros que tem uma condição extremamente sofrida, inseridos num contexto muito precário e desfavorável. Na verdade, encontramos resultados que são paradoxais. Ao mesmo tempo em que eles não têm quase nada, os resultados indicam que eles fazem mais do que as condições que têm daria chance de fazer.
Ciência e Cultura – Qual importância dessa gestão descentralizada?
Cristina Melo – Ainda hoje existe muita polêmica sobre a municipalização da saúde. Acho que ela tem uma importância tremenda porque o município é o lugar onde as pessoas habitam, conduzem seu cotidiano. Sem dúvida, a decisão de que compete ao município o papel preponderante, protagonista no SUS, é uma necessidade real. Não se pode ter um sistema universal, público, equânime, se não estiver situado onde estão as pessoas. Já aprendemos com a história. O problema é de que maneira, que estratégias, o SUS, os governantes brasileiros em todas as esferas e os profissionais da saúde, tem sido preferentemente utilizadas para fazer essa descentralização. Primeiro que eu acho que, de algum modo, ela se deu rápido demais, se a gente considerar as condições objetivas dos municípios. Se pegarmos em 1990, a maioria dos municípios brasileiros não tinha, sequer, uma pessoa designada para responder sobre assuntos de saúde. Com o SUS, todos os municípios brasileiros têm Secretaria de Saúde, tiveram que criar estrutura política e técnica. Esse é um avanço que nenhum lugar do mundo obteve em tão pouco tempo.
A gente tem que situar que em 1990 a Lei Orgânica da Saúde [Lei 8080/90] cria o SUS, mas sua implantação, em 21 anos, apenas começou. Em 1990, ao mesmo tempo em que fazemos a Lei Orgânica que cria o SUS, nesse país inicia-se o governo Fernando Collor de Melo, que trouxe todas as iniciativas do modelo neoliberal da economia para a serem implementadas nesses pais. Um sistema público e equânime inserido num modelo de politicas neoliberais. Então é contraditório, ao mesmo tempo que tem o SUS, tem uma política que não SUS. E isso significa que o SUS nunca, e eu posso dizer isso, ainda nunca foi assumido como uma política de estado nesse país. As estratégias para desconcentrar são ótimas para desconcentração, não para descentralização. A estratégia se dá em instrumentos normativos, daí temos uma historicidade de normas, Noas, pactos (pacto pela vida, Pacto de Gestão, Pacto em Defesa do SUS), isto significa, que quando eu tenho que normatizar aquilo que tem que ser conquistado através da ação política significa que eu tenho que impor as regras porque não estou obtendo politicamente esse compartilhamento da gestão. E nessa indução normativa há o oferecimento de algumas contrapartidas que, muitas vezes é um pouco mais de dinheiro, ou financiamento, ou repasse de equipamentos, tudo isso mediante a adesão às normas e pactos que estão postos em vigor, todos pertinentes.
Só que as condições objetivas de cada município e de cada estado nunca são consideradas no âmbito da pactuação. Ao invés de termos um pacto, um entendimento político e, portanto, um convencimento político, inclusive do governo municipal, de que tais ações são importantes ou que tais responsabilidades são importantes de serem assumidas pelo município o que nós temos são atribuições normatizadas. Mas os gestores da saúde, nos âmbitos municipal, estadual e federal, não estão preocupados em fazer com que o SUS seja política dominante. Eu acho que quem esse é um problema muito mais do âmbito estadual e federal do que dos próprios municípios. Sem falar de que a municipalização é necessária, base para o sistema único universal cuja estratégia de atenção é se apoiar nas ações básicas, primárias de saúde, que deve ser o sustentáculo para a constituição do sistema e tem que ser feita no âmbito municipal.
Ciência e Cultura – Essa experiência da municipalização é a única que se adapta ao modelo de saúde universal?
Cristina Melo – Não. Existem outros sistemas universais de saúde no mundo que não escolheram esse modelo e que são bem sucedidos, produzem bons resultados, como é o modelo italiano, que não é centrado nas ações primárias de saúde, nem nos serviços básicos. É um modelo centrado na figura do médico, cuja porta de entrada é o consultório de médicos, nem sempre do sistema público, mas que vendem seus serviços ao sistema público. Mas acho que a escolha brasileira é uma escolha correta. No entanto as estratégias para que isso aconteça são estratégias muito mais normativas, indutivas e impositivas, que não tem contribuído para o necessário avanço politico da pactuação, de assumir corresponsabilidade.
Ciência e Cultura – Qual a relação entre as cidades baianas e o estado nas ações de saúde?
Cristina Melo – Eu fiz parte, há oito anos, de uma pesquisa sobre a gestão compartilhada do SUS nos municípios baianos e o resultado foi muito impactante. Achávamos que, se o município tinha como prefeito alguém da cor partidária do governo do estado, ele tinha mais apoio técnico, politico, financeiro. Chegamos à conclusão que não. Era tão interessante que, nos municípios, entrevistando pessoas de diferentes lugares da gestão do SUS, chegamos à conclusão de que o parceiro maior era o Ministério da Saúde e não o governo do Estado, quando aquele município tinha no poder, alguém do mesmo partido politico do governo. Isso é uma tragédia. Significa que há uma centralização de poder, principalmente o político-financeiro, no governo federal. Os municípios eram capazes de enxergar apoio no Governo Federal, mas não enxergavam no Governo Estadual. Isso significa que tudo está concentrado no Governo Federal e que o papel do estado ainda é dúbio. Nesse processo de descentralização, essa é uma área ainda muito pouco discutida.
Sobre a municipalização, se debate muito, já se produziu muita coisa, já temos os elementos para redirecionar a política. Mas essa é crítica, a universidade produz conhecimento, mas os gestores do SUS não se interessam pelos conhecimentos produzidos pela universidade. Isso acontece, inclusive em projetos financiados pelo governo. A gente devolve os resultados, mas isso não significa que as figuras importantes da gestão vão se importar com esses resultados. Temos uma concentração de poder no governo federal. Ele que tem dinheiro, que induz projetos, programas, formas de incentivos e com isso, o que acontece no processo da descentralização da gestão da saúde. O estado está com papel dúbio, tem sempre que controlar alguma coisa, enquanto seu papel deveria ser outro. Os estados brasileiros não saíram da zona de transição. Eles querem muito mais ser os executores principais da saúde do que apoiadores para que os municípios o sejam, porque isso dá poder politico, dá concentração de dinheiro e, no modo de produção econômico capitalista, é onde está o poder. Fico convencida que isso não vai durar muito tempo e ao mesmo tempo, eu acho que a capacidade brasileira de fazer ações de saúde é surpreendente. Eu fiquei muito encantada com o resultado de alguns municípios porque são pessoas jovens, são enfermeiras e enfermeiros muito jovens, fazendo acontecer naqueles municípios coisas que é preciso décadas para fazer acontecer. É muito instigante, acho que o SUS é um universo impressionante, porque ao mesmo tempo em que não está bom, tem milhões de coisas impressionantes acontecendo.
Ciência e Cultura – Quais os principais erros da municipalização?
Cristina Melo – O que falta é acumulação das boas experiências e dos bons resultados. A rotatividade dos profissionais é outra coisa identificada. Eles ficam muito pouco tempo nos cargos, na direção, que é outra ideia equivocada. Essa rotatividade se dá, ou pela precariedade dos vínculos de trabalho cujo critério é quase sempre a indicação política, ou se dá porque não existe ninguém que queira ocupar a coordenação de VE e aí, como quem vive ali é a enfermeira, dá-se a ela, sem que o próprio município se de conta do papel relevante que esse lugar tem na consolidação do SUS e nas transformações do padrão epidemiológico da população.
Ciência e Cultura – Qual o principal impacto à população com a gestão descentralizada?
Cristina Melo – Eu acho que o maior impacto é ter com quem brigar por melhor saúde, porque antes a população não tinha, já que quem era responsável era o ministro da saúde ou o secretario, que estava muito distante. Eu acho que a descentralização da saúde no Brasil pôs para a população que ela vai precisar lutar muito para ter melhores condições de saúde. Não falo isso, nem tanto, pelas instâncias de controle social, como os conselhos de saúde, falo porque obrigou que cada município tivesse uma autoridade sanitária local. Obviamente consciência sanitária e a política brasileira ainda são incipientes, então muitas vezes dirige-se às autoridades para pedir. Essa é o grande impacto, trouxe o sistema de saúde para uma proximidade física do cidadão e com isso traz visibilidade, inclusive para o que não se faz. Por exemplo, o que é predominante na politica de saúde no Brasil é o que o estado não faz, por deliberação política de não fazer e isso fica cada vez mais visível. A descentralização trouxe também, de forma limitada, a presença de instâncias com a participação da sociedade, que podem ser manipuladas, atrasadas, ou os representantes, quando tem as melhores das intenções, estão representando interesses de grupos, mas não tinha nada disso antes. É um plano de embate permanente. Acho que, obviamente, a descentralização fez com que aumentassem as filas, a precariedade, porque ela não vem junto com o recurso suficiente, quadro técnico suficiente.
Ciência e Cultura – Qual o lugar ocupado pelas enfermeiras na gestão descentralizada?
Cristina Melo – Na Bahia, da amostra de municípios que responderam ao instrumento no movimento quantitativo da avaliação, identificamos que mais de 80% eram enfermeiras, mas houve pela UFMG, em 2009, um levantamento do perfil dos técnicos que faziam avaliações e serviços de Vigilância, no Brasil inteiro e encontrou resultado similar. A maior parte dos profissionais de nível superior eram enfermeiras, e de nível médio eram técnicas de enfermagem. Querendo ou não é uma área que está sendo conduzida tendo a frente profissionais enfermeiras. Outro TCC aqui da EEUfba tentou localizar na história a presença das enfermeiras no campo da VE e registrou que sempre esteve lá, desde os primórdios da introdução do campo da vigilância como uma politica dentro da saúde brasileira. O mais interessante que num TCC foi descoberto um dado histórico que mesmo nós da EEUfba, que foi a primeira escola de enfermeiras da Bahia e a terceira do país, desconhecíamos. Em 1925 existia uma subsecretaria de saúde que era dentro da Secretaria de Educação do Estado e essa subsecretaria criou um curso próprio para formar enfermeiras para a saúde pública. Não era um curso no padrão de Florence Nightingale [precursora da enfermagem], portanto não era um curso profissionalizante. Com a formatura da primeira turma aqui na escola, no início dos anos 50, a subsecretaria cancela esse curso. Vemos, então, que estamos presente, mesmo num período pré-profissional. Vemos que a história da vigilância epidemiológica no Brasil tem profunda relação com a história da inserção de enfermeiras na saúde publica.
Ciência e Cultura – A enfermagem tem um papel importante, como já deu para perceber. Mas e a classe médica, como se desenha na gestão?
Cristina Melo – Um dos maiores problemas que o SUS vai enfrentar é se ele continuar achando que a sustentação das ações e serviços vai se dar através da figura do profissional médico. Médicos nunca deixarão de fazer uma prática assistencial centrada no modelo de atenção biomédico, centrado na alta tecnologia. Todas as mudanças hoje processadas na formação dos médicos no país é apenas o começo. Tem que haver um redimensionamento e outras escolhas políticas estratégicas para consolidar o SUS, que o Brasil ainda não quis tocar, a hegemonia médica, o poder da corporação médica tem interferido ao mesmo tempo em que, não tem município que fixe médico nenhum. Todos os médicos querem estar em grandes centros, como aponta uma pesquisa do Conselho Federal de Medicina, numa pesquisa para saber onde estavam os médicos no Brasil. Há cerca de seis anos atrás, 83% dos médicos paulistas estavam na capital. Essa é outra coisa que não depende do serviço de saúde.
Ciência e Cultura – Como desconcentrar os profissionais?
Cristina Melo – Ou o governo brasileiro toma medidas, como prestação de serviço social obrigatório para o jovem que se forma na universidade, com uma bolsa publica, ou cria um serviço social obrigatório a todo jovem para que se comece a se dedicar a uma ação social solidária antes de desenvolver suas ambições individuais para sua vida profissional ou não vai ter SUS consolidado, porque não temos profissionais.
Ciência e Cultura – Há algum caminho para que a descentralização ocorra de verdade, sem parecer desconcentração?
Cristina Melo – A descentralização não pode acontecer apenas por via normativa, indutiva, do Ministério da Saúde, ela exige dos municípios, estados e União, um embate politico para caminhar para a consolidação, ao lado disso tudo, se tem também a iniciativa privada que se locupleta com dinheiro público e a mídia brasileira que é absolutamente contrária a que venha a existir um sistema público, equânime, universal. A mídia estatal não combate com vigor o que a mídia privada faz. A estratégia de comunicação do Governo do Estado é com folheto e cartaz, que não alcança a população.
Ciência e Cultura – Como é o papel da enfermagem na descentralização da gestão?
Cristina Melo – As enfermeiras sempre estiveram envolvidas com a coordenação de serviços de saúde, papel dado pela condição estabelecida historicamente. Municípios mantêm enfermeiras, mas não mantêm médicos. Existe uma pergunta que domina o campo da enfermeira: “qual o fazer da enfermeira?” Estamos ali porque como somos uma profissão de origem na divisão técnica do trabalho médico, podemos estar ali, porque custamos menos, porque somos maioria de mulheres. Estamos ali, mas não sabemos que estamos ali, nem sabemos exatamente qual o nosso papel.
Todas falamos que quem sustenta o sistema de saúde são as enfermeiras e as auxiliares técnicas, as trabalhadoras de enfermagem, de maneira geral, inclusive porque as enfermeiras são gerentes do processo de trabalho.. Não existe hospital que funcione se não tiver enfermeira em todos os processos. Ela tem uma capacidade historicamente desenvolvida, mas não tem consciência política dessa capacidade. Um indicador de que o espaço tem menor prestígio politico daquele fato ou organização é quando o secretario deixa que uma enfermeira faça a coordenação do serviço, como por exemplo, a coordenação da VE, porque não se deram conta de quanto estratégico é isso. Estamos coordenando porque estamos disponíveis e não há ninguém disputando esses espaços.
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