ROSILÉIA ALMEIDA*
Esforço, mérito e talento são frequentemente reconhecidos no campo social e enfatizados pela mídia como os atributos que levam certos alunos de meios socioeconômicos desfavorecidos a superarem as dificuldades nas suas trajetórias escolares e alcançarem bons desempenhos acadêmicos. A esse respeito, a Organization for Economic Co-operation and Development (OECD), no boletim Pisa em Foco nº 5, intitulado Como alguns estudantes superam as dificuldades do ambiente socioeconômico?, apresenta como conclusão que esses estudantes, denominados resilientes, “podem e frequentemente conseguem desafiar os obstáculos quando lhes é dada uma oportunidade”, o que incluiria “oferecer a esses estudantes iguais oportunidades de aprendizagem e promover sua autoconfiança e motivação de forma que possam explorar seu potencial”. Como sustentação para esta conclusão informa que no PISA (Programme for International Student Assessment) de 2009, aproximadamente um terço dos estudantes dos países da OECD foi identificado como resiliente.
Outros documentos que abordam o conceito de resiliência e sua operacionalidade nas políticas públicas (Pisa 2009 – Results: Overcoming social background. Equaty in learning Opportunities and Outcomes, vo. 2 e Against the Odds: disadvantaged students who succeed in school) destacam que entender mais sobre os estudantes resilientes e sobre as abordagens de ensino e características das escolas associadas com a resiliência poderia subsidiar os elaboradores de políticas públicas e os gestores escolares na promoção da resiliência entre um número maior de estudantes. Embora a referida meta coloque em destaque aspectos relacionados às dimensões didática e institucional que contribuem para a resiliência, cabe perguntar: por que, atendidas essas dimensões, apenas uma parte dos alunos de meios socioeconômicos desfavorecidos respondem satisfatoriamente às demandas escolares e alcançam sucesso? Quanto a essa questão, os documentos da OCDE destacam o papel relevante desempenhado pelo nível de motivação intrínseca e de autoconfiança dos alunos na sua aprendizagem.
É nossa intenção, neste breve texto, compartilhar alguns questionamentos e instigar a reflexão e, quem sabe, o debate em torno da adequação do emprego do termo resiliência nas políticas que visam expandir as oportunidades educacionais e melhorar efetivamente o desempenho escolar de todos os estudantes.
Iniciado no campo da ciência física, pelo cientista inglês Thomas Young, em 1807, o uso do termo resiliência referia-se à propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica, sendo que o termo foi empregado posteriormente nas ciências naturais, no artigo Resilience and Stability of Ecological Systems, de C. S. Holling, de 1973, em referência à propriedade de certos sistemas ecológicos de sofrer mudanças e persistir diante de distúrbios. Posteriormente, o conceito foi adotado nas ciências humanas e sociais, referindo-se a crianças, adultos, famílias, comunidades e populações que teriam a capacidade de resistir e se reconfigurar internamente, quando confrontadas com as adversidades. Considerada inicialmente por essas ciências como resultante de atributos individuais, a resiliência, com o tempo, passou a ser considerada de forma sistêmica, dinâmica e multidimensional a partir da relação indivíduo-contexto. Cabe destacar que, embora adotado inicialmente nas ciências físicas, o emprego do termo resiliência nas demais ciências, segundo Brandão, Mahfoud e Gianordoli-Nascimento (2011), não teria resultado de uma simples transposição.
A pertinência da adoção do conceito de resiliência como referencial teórico no campo social tem sido questionada (Barlach, 2005). Ao se definir a resiliência como “o processo dinâmico de adaptação positiva em contexto de significativa adversidade”, percebe-se uma conotação ideológica, uma vez que a adaptação é considerada, em termos estatísticos, como positiva quando o indivíduo alcança expectativas sociais frequentemente dissociadas de contextos culturais específicos. Afinal, o que significa adaptar-se com sucesso às adversidades da vida? Além disso, desconsideram-se as formas singulares como os indivíduos ou grupamentos sociais relacionam-se com o meio, valoram suas experiências e, nesse processo, percebem as adversidades e mobilizam recursos para lidar com elas, aspectos imponderáveis e criativos que só podem ser compreendidos por meio de abordagens naturalísticas, participativas e etnográficas que considerem a subjetividade. No caso do emprego do conceito pela OCDE percebe-se, ainda, a redução do emprego da ideia de adversidade apenas à dimensão socioeconômica, referindo-se aos estudantes provenientes de meios socioeconômicos desfavorecidos, quando sabemos que a vida social comporta atualmente novas formas de adversidade e risco, que interferem no percurso escolar dos estudantes.
Políticas que garantam educação de qualidade para todos requerem a preocupação com a construção de propostas educacionais que promovam articulações longitudinais entre os conteúdos, com definição de necessidades de aprendizagem ao longo da escolaridade, o que torna-se particularmente relevante ao se considerar que a transição entre ciclos de estudo tem sido indicada como um dos pontos críticos das trajetórias escolares dos estudantes, especialmente dos provenientes de meios desfavorecidos (ABRANTES, 2005; ABRANTES, 2009; LOPES, 2005). No Brasil, a necessidade de articulações e continuidade da trajetória escolar dos estudantes é ressaltada no artigo 29 da Resolução nº 7, de 14 de dezembro de 2010 (CEB/CNE/MEC), que fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos: “a necessidade de assegurar aos alunos um percurso contínuo de aprendizagens torna imperativa a articulação de todas as etapas da educação, especialmente do Ensino Fundamental com a Educação Infantil, dos anos iniciais e dos anos finais no interior do Ensino Fundamental, bem como do Ensino Fundamental com o Ensino Médio, garantindo a qualidade da Educação Básica”.
Diante da meta de promover educação para todos, é necessário questionar se as finalidades da educação dizem respeito às aspirações do conjunto da sociedade, como garantia de um direito humano fundamental, ou se representam apenas os interesses de grupos de poder em torno de como cada país “se ajusta no grande esquema das coisas”, conforme ressaltado no vídeo institucional da OCDE sobre o PISA. A atuação das escolas, quando pautada por um modelo seletivo, universalista e excludente, que não valoriza as formas peculiares de viver e aprender dos alunos é incompatível com a pretensão de que TODOS os estudantes tenham altos níveis de aprendizagem. A valorização exclusiva do saber sistematizado é elitista e incompatível com a perspectiva da “educação para todos”, sendo que no campo da aprendizagem científica essa abordagem desconsidera que, para muitos estudantes, aprender ciências envolve a complexidade de um cruzamento de fronteiras (AIKENHEAD, 2009).
Assim, a ênfase nos conteúdos, e não na sua funcionalidade na atribuição de sentidos à prática social, faz com que os alunos de contextos desfavorecidos no aspecto socioeconômico e diferenciados culturalmente sejam penalizados na seleção dos supostamente mais capazes, o que tem consequências trágicas, já que esses alunos não percebem sentido no que lhes é ensinado e não se preparam para o exercício pleno da cidadania, condição necessária para a superação das desigualdades sociais. Nesse aspecto, os testes padronizados, a exemplo do PISA, quando se propõem a avaliar e comparar a capacidade de aplicação de conhecimentos pelos estudantes em situações e problemas da vida cotidiana, apresentam uma concepção universalista de cultura, que desconsidera as diferenças culturais e as maneiras próprias como cada indivíduo vivencia a sua própria cultura. Esses testes inserem-se, como bem destaca Carvalho (2009), no discurso da educação como fator de modernização, o qual tem regulado e legitimado, de forma controversa, políticas públicas nesse campo. Com a aproximação da aplicação de mais uma prova do PISA, agora na modalidade eletrônica, é importante debatermos o que se almeja: alunos resilientes, que se adaptam aos contextos e desenvolvem seu potencial para atender aos padrões de desempenho demandados pelo modelo competitivo de sociedade em que vivemos, ou alunos capazes de reconhecer as vinculações da ciência (inclusive daquela que confere sustentação ao PISA) com as demais dimensões da vida social e de se posicionar criticamente em relação a elas?
*É professora efetiva da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia e atua na área de Educação em Ciência, principalmente nos seguintes temas: aprendizagem escolar, educação intercultural e educação ambiental.