Bruno Solano, 32, coordenador do Centro de Biotecnologia e Terapia Celular do Hospital São Rafael e pesquisador em Saúde Pública no Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz-BA), revela os avanços das pesquisas com células-tronco realizadas na Bahia nos últimos quinze anos. O jovem médico desenvolve pesquisas para o tratamento da doença de Chagas e Zika, além de experiência em microscopia confocal, cultura de células-tronco mesenquimais, cultura de células neurais, iPSC, desenvolvimento de estudos pré-clínicos em modelos experimentais e participação em estudos clínicos nas áreas de terapia celular e medicina regenerativa. O Centro de Terapia Celular, fundado há sete anos, hoje desenvolve 21 projetos de pesquisa, que vão desde estudos clínicos ao teste de terapia em pacientes. Confira a entrevista realizada pela repórter da Agência de Notícias em CT&I - Ciência e Cultura UFBA, Marcela Vilar
POR MARCELA VILAR*
marcelavilarms@gmail.com
Ciência e Cultura – Como está o andamento das pesquisas com células-tronco na Bahia?
Bruno Solano – A Bahia é pioneira no estudo com células-tronco. Há 15 anos atrás, a Fiocruz deu o pontapé inicial com os estudos de terapia celular na doença de Chagas, através dos pesquisadores Ricardo Ribeiro e Milena Soares. Desde então, estudamos outras aplicações neste grupo de pesquisa: atuamos em doenças cardiovasculares, hepáticas e neurológicas. Existem outros grupos, como o liderado por professor Gildásio Daltro, na UFBA, que envolve a aplicação de células-tronco em lesões ortopédicas associadas à anemia falciforme. Na Bahia, as pesquisas desse gênero se beneficiaram bastante com a fundação do Centro de Terapias (CTC) instalado no Hospital São Rafael, em 2010. Deu a infraestrutura necessária para cultivar células-tronco dentro dos padrões para a utilização clínica em pacientes. Nos últimos 10 anos, houveram grandes avanços tecnológicos no mundo inteiro que possibilitou conhecermos muito mais sobre essas células. A Bahia tem acompanhado estes avanços, a partir de estudos dos diferentes tipos de células-tronco, como as células mesenquimais e as células células-tronco pluripotentes induzidas (iPSC). Através do financiamento da FAPESB e FINEP, estabelecemos uma plataforma para produção de células iPSC na Bahia. Elas possuem um potencial muito maior para se diferenciarem em qualquer tipo de célula do organismo. Hoje, produzimos neurônios, células do fígado e do coração no laboratório, mas por enquanto as aplicações são feitas in vitro ou em animais.
Ciência e Cultura – Quais as doenças que podem ser tratadas a partir das células-tronco e quais foram contempladas nas suas pesquisas?
Bruno Solano - Existe um grande apelo para o tratamento de doenças crônico-degenerativas, como aquelas que levam à perda da função neurológica ou cardíaca. Hoje, o Centro de Biotecnologia e Terapia Celular do Hospital São Rafael, em parceria com a Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz), desenvolve 21 projetos de pesquisa que vão desde a fase de pesquisa básica ou pré-clínica (estudos experimentais em culturas de células ou em animais) até estudos clínicos, com teste de novas terapias em pacientes. Nos estudos clínicos, focamos no desenvolvimento de terapias celulares para pacientes com lesões raquimedulares, cirrose hepática e o teste de uma medicação que atua sobre as células-tronco em pacientes com doença de Chagas.
Ciência e Cultura – Como são escolhidos os pacientes para os testes e pesquisas? Quantos participaram ou participam até hoje?
Bruno Solano – Em geral, fazemos divulgação em nosso site e na mídia quando iniciamos um novo estudo clínico. Estamos sempre à disposição para que interessados entrem em contato, aos quais prestamos esclarecimentos e orientações. Como tratam-se de estudos clínicos, nem todos poderão ser incluídos, pois estudamos um perfil muito específico de pacientes. No caso dos estudos com trauma raquimedular, algumas características como o nível da lesão, a causa do acidente, o quadro clínico do paciente, são critérios pré-estabelecidos e aprovados pelo comitê de ética. A partir da aprovação, tratamos, dentro daquele protocolo, um número definido de pacientes, com aquelas características específicas, conforme autorizado pelo comitê de ética. Nos estudos de trauma raquimedular, foram tratados 19 pacientes. Dezenas de outros pacientes foram incluídos em outros estudos (cirrose hepática, doença de Chagas, isquemia crítica de membros).
Ciência e Cultura - Como é o pós-tratamento de pacientes com as células-tronco? Há rejeição?
Bruno Solano - Os pacientes precisam ser acompanhados periodicamente, principalmente nos primeiros 6 a 12 meses. Neste período, fazemos exames complementares, investigamos a presença de eventos adversos e acompanhamos a evolução clínica, se há resposta ou não à terapia. Até o momento, trabalhamos apenas com transplantes autólogos, em que as células são retiradas do próprio paciente e transplantadas nele mesmo. Neste tipo de situação, não ocorre rejeição.
Ciência e Cultura - Existem riscos para o paciente ao participar desse tratamento? Quais?
Bruno Solano - Nenhum procedimento médico é isento de riscos. Para evitá-los, o preparo das células-tronco deve ser devidamente monitorado, a fim de controlar sua qualidade e segurança. Um possível risco é a ocorrência de infecções, por conta da liberação de um produto contaminado. Por isso, cultivamos as células em condições de esterilidade, fazemos testes para demonstrar ausência de bactérias, fungos e endotoxina. Outra questão é a integridade genômica da célula. O processo de cultivo das células-tronco no laboratório pode induzir alterações no DNA que podem levar a uma transformação destas células em células capazes de produzir tumores, e isto precisa ser controlado. Então, tentamos cultivar as células pelo menor tempo possível e realizamos uma análise citogenética, como parte do nosso controle de qualidade, antes de liberar as células para uso clínico. Os riscos envolvidos nas terapias com células-tronco adultas são muito menores que os das células fetais, embrionárias ou mesmo células pluripotentes induzidas.
Ciência e Cultura - Quanto custa para um paciente uma terapia com células-tronco?
Bruno Solano – Hoje, as terapias com células-tronco ainda são consideradas experimentais, por isso não devem ser oferecidas comercialmente, pois há necessidade de comprovação científica de segurança e eficácia. Então, o uso de células-tronco em pacientes, à exceção do transplante de medula óssea para doenças hematológicas, deve ser restrito a estudos clínicos, sem custos. No entanto, observa-se uma proliferação de clínicas que oferecem as mais diversas terapias com células-tronco e cobram verdadeiras fortunas por tratamento. Nós não recomendamos que os pacientes procurem este tipo de tratamento, não apenas por não haver comprovação de que realmente funciona, mas porque podem ocorrer efeitos colaterais graves. Recomendamos que os pacientes interessados em terapias com células-tronco busquem centros de pesquisa, universidades ou instituições sérias que estejam recrutando pacientes para estudos clínicos, pois nestes casos se garante a proteção do paciente.
Ciência e Cultura - Houve dificuldade na aprovação pelos órgãos como Conep/Anvisa e voluntários? Como foi realizado esse processo?
Bruno Solano - Hoje, o Centro de Terapia Celular (CTC) é autorizado pela ANVISA para a produção de células-tronco para uso clínico. O processo de submissão dos projetos para o sistema CEP/CONEP ocorreu de forma normal, seguindo o mesmo processo que qualquer estudo clínico no Brasil. Nos últimos anos, a medida que aumentamos o entendimento e acumulamos experiência clínica das células-tronco, a tendência é haver cada vez menos resistência à protocolos de pesquisa envolvendo terapia celular.
Ciência e Cultura - Ainda existem divergências quanto à realização de pesquisas que trabalham com a manipulação de células-tronco. Como avalia este quadro?
Bruno Solano – Felizmente, muitas dessas divergências vêm sendo superadas. Do ponto de vista ético, havia no início muita polêmica acerca da utilização das células-tronco embrionárias. Mas as pesquisas conseguiram avançar no campo das células-tronco adultas e, mais recentemente, as células iPSC vêm se consolidando como uma alternativa “à altura” das células-tronco embrionárias, podendo ser produzidas no laboratório sem a necessidade da manipulação de embriões humanos.
Ciência e Cultura - Há um avanço das nossas legislações na permissão do uso de células-tronco em pesquisas e tratamentos?
Bruno Solano – Ainda aguardamos a regulamentação da terapia celular no Brasil, o que está muito atrasado em comparação com outros países e tem prejudicado o andamento desta área no nosso país.
Ciência e Cultura – Temos percebido grandes avanços nas pesquisas de combate e tratamento da Zika, sua pesquisa é uma delas. Poderia explicar um pouco do que se trata?
Bruno Solano – A nossa pesquisa se iniciou à época do surto de Zika entre 2015 e 2016, dada a necessidade de se confirmar se o vírus era capaz de infectar células nervosas e comprometer a formação do cérebro, causando a microcefalia. Utilizamos neste estudo células-tronco pluripotentes, conhecidas como iPSC, que se assemelham às células presentes no embrião no 5o dia após a fecundação. Estimulamos essas células a se transformarem em células nervosas, simulando o desenvolvimento do cérebro e infectamos estas células com o vírus Zika. Ficou comprovado então que o vírus Zika infecta e mata preferencialmente as células progenitoras neurais, que estão presentes no cérebro do feto e são as células-tronco que dão origem a todas as outras células que vão formar o cérebro, confirmando sua ligação com a microcefalia e outras malformações do sistema nervoso. Desde então, continuamos buscando entender mais profundamente como o vírus afeta o funcionamento das células progenitoras neurais, de que modo podemos evitar danos.
Ciência e Cultura - O uso das células troncos tem sido considerado o grande salvador nos últimos anos. Tendo em vista que não avançamos na busca por novos tratamentos de determinadas doenças, isso é preocupante?
Bruno Solano - As células-tronco não vieram para curar todos os males, mas são uma valiosa ferramenta, com potencial enorme para nos ajudar a tratar algumas doenças que hoje carecem de opções de tratamento. Na verdade, estamos apenas começando a aprender com elas. Dentre os grandes desafios da medicina no século XXI são incluídas principalmente doenças complexas, associadas ao envelhecimento, doenças crônico-degenerativas, que provavelmente não conseguiremos tratar exclusivamente com um medicamento tradicional, e sim pela combinação de novas abordagens, envolvendo a terapia celular, terapia gênica e nanotecnologia.
*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter da Agência de Notícias da UFBA