Darci Neves é doutora em Epidemiologia Psiquiátrica e especialista em Saúde Pública. Atualmente, ela coordena um estudo em andamento sobre os efeitos das alterações neurológicas congênitas ligadas ao Zika vírus no desenvolvimento infantil. A pesquisa, realizada em Salvador, além de avaliar a cognição, linguagem e motricidade das crianças com complicações causadas pela zika, também busca investigar o impacto dessa alteração para a família e propor intervenções que auxiliem no desenvolvimento infantil. “Essa epidemia colocou à vista a questão das alterações neurológicas congênitas, que não estavam sendo pensadas na atenção básica”, denuncia a pesquisadora. Na entrevista a seguir, ela conta detalhes sobre o projeto e explica como irá executá-lo
POR LARISSA SILVA*
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Ciência e Cultura: Qual o objetivo da pesquisa?
Darci Neves: O objetivo central é dar uma resposta para a consequência mais grave da epidemia do zika vírus, a alteração neurológica que as crianças apresentaram ao nascimento. Compreender como vão se desenvolver essas crianças ao longo da sua infância, como essa família é afetada e de que forma podemos minorar essa questão oferecendo uma intervenção no nível básico de atenção em saúde. Queremos saber qual é o painel de alteração que vai se dar, quão danificado será o desenvolvimento dessa criança e até que ponto uma intervenção pode minorar [os danos].
Ciência e Cultura: Qual a metodologia adotada?
Darci Neves: Escolhemos trabalhar com 302 crianças que foram atingidas e segui-las até os 42 meses de vida. Nesse tempo, pretendemos avaliá-las 4 vezes. A primeira seria no primeiro ano de vida, mas tivemos um atraso no financiamento, então estamos correndo contra o tempo, pois elas já estão com cerca de 17 meses e não queremos passar dos 18 meses para a primeira medida. Também avaliaremos a saúde mental do seu cuidador e o tipo de estímulo psicossocial que ela dispõe, porque diante da alteração neurológica, a única coisa que pode favorecer é a estimulação. 100 crianças sem alterações serão submetidas aos mesmos exames e acompanhamentos, estas são necessárias para a comparação [dos resultados].
Ciência e Cultura: O que seria essa estimulação?
Darci Neves: Ela depende de como o ambiente e as pessoas vão se relacionar com essa criança e também de um trabalho feito pela reabilitação, realizado pelo fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo, porque essa alteração tem a ver com motricidade, comunicação, cognição, entendimento e percepção. A neurociência tem feito muitos estudos sobre como o cérebro se desenvolve, o que ela informa é que os três primeiros anos de vida são essenciais, porque a depender das interações nesse período, se altera o desenvolvimento de sinapses e articulações. Então, se fizer o que tem que ser feito nesse período, você reduz o dano. Nesse sentido, essa criança com alteração neurológica precisa de um cuidado e de estimulação, que não é só o brinquedo e o exercício, mas alguém que esteja atento a sua voz, lhe responda, tenha paciência e insista, além das sessões tecnicamente colocadas pelos profissionais.
“Pode ser que tenhamos criança com alteração leve, facilmente contornável, ou crianças com autonomia totalmente comprometida. Das poucas que visitamos, algumas têm deficiência motora muito severa”.
Ciência e Cultura: O que será avaliado nas crianças?
Darci Neves: O desenvolvimento cognitivo, como elas pensam e aprendem. Também é preciso avaliar a linguagem e a motricidade. Essas três coisas são muito importantes para o adulto ter uma autonomia plena. Para fazer essa medida com crianças, utilizamos um instrumento da psicologia, a Escala Bayley. É uma sequência de brinquedos, cubinhos, desenhos, papéis… Tem as formas como você deve mostrar essas coisas e o que você espera que a criança faça. Essa avaliação é feita até 42 meses. Existem outras formas de avaliação, mas essa é a que melhor se adequa a nossa proposta.
Ciência e Cultura: Há alguma noção sobre o grau de comprometimento que essas crianças poderão apresentar?
Darci Neves: A única coisa que podemos pensar é no que outras alterações neurológicas costumam comprometer, como mobilidade, fala e audição. Isso é esperado conforme a literatura, mas não sabemos em que quantidade e extensão. Pode ser que tenhamos criança com alteração leve, facilmente contornável, ou crianças com autonomia totalmente comprometida. Das poucas que visitamos, por exemplo, algumas têm deficiência motora muito severa. Mas ainda não dá pra saber, é uma das coisas que pretendo explicar.
Ciência e Cultura: Como foi o processo de desenvolvimento do projeto?
Darci Neves: Quando apareceu a epidemia, me senti convocada a refletir. Então comecei a conceber como seria um projeto para dar conta do entendimento dos efeitos das alterações neurológicas congênitas no desenvolvimento infantil, um estudo de acompanhamento prospectivo na atenção básica, porque esse tipo de problema é muito estudado, mas sempre no nível especializado. Essa epidemia colocou à vista a questão das alterações neurológicas congênitas, que não estavam sendo pensadas na atenção básica. Também pensei na atenção primária porque esse é um problema de longo prazo e que tem a ver com inclusão social, essas crianças e famílias serão facilmente estigmatizadas se algo não for feito. Todas essas coisas me fizeram pensar que era preciso fazer um projeto que, além de verificar como elas serão, analise como ficará as famílias e como isso pode ser trabalhado a médio e longo prazo no lugar em que essas pessoas vivem, por isso incluí a unidade de saúde da família, a escola e a unidade de assistência social.
Ciência e Cultura: Que ferramentas a rede pública de atenção básica tem para atuar, de maneira eficaz, na redução desses danos?
Darci Neves – A rede pública de atenção básica não havia ainda se colocado enquanto provedora de cuidado em reabilitação. Essa questão esteve sempre ligada ao nível especializado, em ambulatórios ou hospitais. Entretanto, há um conjunto de ações mais simples e necessárias que podem ser feitas na atenção básica.
“Esse é um problema de longo prazo e que tem a ver com inclusão social, essas crianças e famílias serão facilmente estigmatizadas se algo não for feito”.
Ciência e Cultura: Consta como uma das propostas do projeto a “intervenção tecnológica para estimulação domiciliar a distância”. Que dispositivos tecnológicos serão utilizados para isto?
Darci Neves: Tivemos essa ideia no projeto original. Selecionei crianças residentes em Salvador e as que moram em regiões mais longínquas não dispõem dos recursos que vão precisar. A ideia era desenvolver uma tecnologia a ser usada em smartphones, dessa forma, a família que estivesse longe pudesse ter um instrumento para realizar as atividades com as crianças. Mas esse componente não foi financiado, está em standby, por enquanto. A nossa maior preocupação agora é ter essas 302 crianças avaliadas.
Ciência e Cultura: Em que etapa se encontra o projeto e quais os próximos passos?
Darci Neves: A fase atual é a de coleta de campo, estamos indo aos distritos sanitários, entrando em contato com os agentes comunitários para chegar às casas das famílias e fazer as primeiras avaliações: auditiva, nutricional, bucal e a da Escala Bayley. Até agora fizemos cerca de 25 visitas, pretendemos terminar todas até outubro. Quando terminá-las, vamos criar grupos semanais em que as crianças receberão a estimulação em sessões organizadas e seus familiares passarão pelo apoio psicológico.
*Estudante de jornalismo da Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura