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Atualizado em 10 DE junho DE 2013 ás 17:05

Érika Aragão

A uniformização de regras monopolísticas para bens essenciais, como medicamentos, é tema de debates no mundo inteiro. No caso brasileiro, esse assunto é ainda mais controverso por causa da peculiaridade do sistema de saúde adotado – o SUS – e a legislação que rege a propriedade industrial no país. Ao mesmo tempo em que a União se propõe a assegurar o acesso universal à saúde, o desenvolvimento da indústria farmacêutica internacional gera produtos novos para tratamento de doenças graves, cujo acesso é restrito aos países ricos uma vez que são tecnologias caras. Essa mesma indústria pressiona o sistema único de saúde, assim como a população, que exige alternativas de ponta para tratamentos médicos. Sobre essa questão, nós conversamos com a economista e Doutora em Saúde Pública, Érika Aragão.

POR LUANA ASSIZ*
luanassiz@gmail.com

Luana Assiz – As patentes de medicamentos são alvo de polêmica: de um lado, os argumentos em favor dos detentores da tecnologia e do investimento, que querem retorno financeiro. De outro, os defensores do acesso universal à saúde. É possível conciliar as duas vertentes?

Érika Aragão - Em termos internacionais, o acesso universal é muito difícil, com exceção de algumas doenças muito específicas. As empresas que detêm as patentes acabam abrindo mão, mas, no geral, a área de saúde é uma das que mais utilizam a patente como instrumento para garantir o retorno do investimento. Então, não acho que essa lógica de acesso universal seja aplicada, a menos que isso ocorra em instituições públicas. E mesmo o setor público tem de apropriar, ainda que disponibilize depois. Se ele participa do processo de invenção e não apropria, qualquer empresa pode se apropriar do que ele inventou e vender.

LA – A apropriação é uma fase necessária do processo…

EA - Não, isso pode mudar em termos de economia política, mas é uma mudança de longo prazo e a legislação internacional caminha no sentido oposto. Após o Acordo Geral de Tarifa e Comércio com a criação da OMC em 1994, o acordo tríplice vai fazer o alinhamento internacional de rigidez de apropriação do conhecimento, que é nacional (cada país tem o seu), mas existe uma regulação internacional que direciona os países a garantirem a apropriação do conhecimento.

LA – A lei de patentes foi assinada em 1996 no Brasil por demanda externa, para que pudéssemos reconhecer patentes registradas em outros países, principalmente pelos Estados Unidos (que exerceram forte pressão sobre o governo brasileiro), na área de fármacos. O Brasil é um dos poucos países a adotarem as patentes pipeline (mecanismo em que a patente expedida no exterior é reconhecida no Brasil até expirar o prazo no país de origem) e há muitas críticas sobre esse modelo…

EA – O Brasil utiliza muito pouco a pipeline. Fala-se muito nisso, mas não se usa tanto quanto se divulga. A questão principal que eu acho que tem a ver com pipeline, mas é maior que isso, é o timing de quando o Brasil reformula sua lei de patentes. A lei de propriedade intelectual permitira que as empresas brasileiras pudessem fazer similares de medicamentos fabricados fora. A parte química e farmoquímica estava livre. Quando a OMC é criada e surge o acordo tríplice, o Brasil é um dos primeiros países a estabelecer uma lei de patentes – e uma das mais rigorosas do mundo -, quando tinha um prazo de dez anos pra se adequar. O Brasil se antecipa (coisa que não faz a Índia nem a China) e hoje, somos um grande importador de medicamentos (incluindo genéricos) da Índia, China, Israel e outros países que na época não tinham nível de desenvolvimento da indústria farmacêutica nem um pouco superior ao nosso.

LA – Podemos dizer que essa precipitação é o que diferencia o sistema brasileiro em relação aos demais…

EA - Sim, a tomada de decisão de complementação desse sistema de patentes foi precipitada. O Brasil não se aproveitou dos mecanismos legais permitidos pelo acordo tríplice para se adequar às normas internacionais, fazer o aprendizado e desenvolver sua indústria nacional. O país perdeu o trem da indústria farmoquímica. Perdemos competitividade para a China e Índia, que apenas agora estão se tornando rígidos e cumprindo o acordo, depois que eles fizeram similares, aprenderam, treinaram gente…

LA – Os avanços da engenharia genética reorientaram os rumos da investigação científica sobre o sistema imunológico, produzindo medicamentos contra doenças infecciosas, imunológicas e neoplásicas, que se tornaram líderes de mercado. Só que o acesso a essas drogas, que são caras, é limitado aos países ricos. Como está a distribuição de poder na indústria farmacêutica mundial?

EA - A indústria farmacêutica internacional é extremamente oligopolizada, seis ou sete empresas detêm 50% do mercado e a segmentação é muito maior por classe terapêutica. Então, a estratégia para concorrer no mercado da indústria é concentrar em classe terapêutica. A Roche é a sétima empresa em termos de vendas mundiais, mas detém 53% do mercado de produtos contra o câncer. Se você quer tratar câncer, depende da Roche, o que é um problema, porque boa parte dos medicamentos estão ainda sob patente. E a legislação é diferente. Você não tem o genérico, mas tem o biossimilar, que é produzido a partir de modificações de proteínas. O processo para fazer medicamento com características iguais é bem diferente e o Brasil não tem competência hoje de estabelecer uma indústria competitiva para fazer frente aos biossimilares que estejam caindo em patentes de classe terapêuticas nas quais o Brasil mais gasta dinheiro no SUS – que são os medicamentos contra câncer, diabetes, coração e terapia renal substitutiva.

LA – Falta pesquisa…

EA - Falta gente. Mas o programa Ciência Sem Fronteiras, iniciado no governo Dilma e capitaneado por um baiano Manuel Barral, tende a ser muito importante na formação de pessoas. A Lei de Inovação também é importante ao aproximar empresas e universidades. A Lei do Bem (que oferece incentivos fiscais para empresas inovadoras), as linhas de financiamento específicas como o Profarma do BNDES… São programas que no médio-longo prazo vão ser muito importantes para essa formação de mão de obra e para aproximar a universidade e o setor produtivo. O objetivo da universidade não é produzir, não é inovar. É fazer parceria com alguém que produz.

LA – O aumento da expectativa de vida nos países mais pobres implicou aumento de doenças crônico-degenerativas, como o câncer, que é responsável pela segunda maior causa de morte no Brasil, depois apenas das doenças cardiovasculares. A indústria não se desenvolveu na mesma proporção do aumento da expectativa de vida. Você visualiza uma solução para esse problema?

EA - O Brasil está em transição epidemiológica. Por um lado, há o envelhecimento da população e com isso o aumento de doenças crônico-degenerativas, porque as pessoas vão ter mais problemas de saúde e vão ficar mais tempo no sistema de saúde.  A outra questão é que a gente mantém ainda uma série de problemas relacionados a doenças que já foram eliminadas em outros países desenvolvidos: leptospirose, dengue, malária, por exemplo. Gastamos dinheiro nessas duas frentes. Os avanços na área farmacêutica em biotecnologia são mais excludentes do que na indústria farmacêutica geral. Os medicamentos biotecnológicos são mais caros. Você tem uma série de descobertas para tratamento contra o câncer, por exemplo, mas o acesso é dos países ricos – 90% do consumo dos medicam estão nos Estados Unidos, Europa, Japão e Canadá. Enquanto a concentração na indústria farmacêutica é bem menor.

LA – Por outro lado, nos Estados Unidos não existe um sistema como o SUS…

EA - Mas na Europa tem sistema como o SUS. Inglaterra e França incorporam tecnologia, não na velocidade dos Estados Unidos, que tem um sistema muito peculiar, porque é privado, tem sistema de reembolso – o governo se concentra nas duas pontas basicamente: idosos e crianças. O resto, se não tem dinheiro, morre.

LA – O SUS assegura uma série de medicamentos à população (inclusive para o tratamento de AIDS), mas o governo brasileiro não investe no setor de saúde de maneira a sustentar essa política, o que alimenta a discussão sobre a quebra de patentes de medicamentos. É essa a saída?

EA - Saiu um relatório recentemente no Tribunal de Contas, mostrando que o atendimento de câncer no SUS é muito problemático. Isso é natural, porque o SUS é um sistema universal e integral e tem de oferecer desde o curativo ate o transplante. Nosso sistema foi construído no movimento de reforma sanitária. Enquanto o resto do mundo estava saindo da economia, o Brasil estava colocando um sistema universal. Então, começamos o sistema sem dinheiro. Para o Brasil dar conta disso, tem de ser muito racional na incorporação de tecnologia. Não dá para incorporar tudo e tem de concentrar em promoção e prevenção.

LA – E essa falta de foco na incorporação de tecnologia é algo que está acontecendo?

EA - Não, eu acho que o SUS tem programas fantásticos de vacinação e imunização (um dos mais bem sucedidos do mundo), só que existe uma queda de braço porque a indústria farmacêutica pressiona o SUS o tempo inteiro para incorporar essas tecnologias e a população quando não consegue, vai para a Justiça. Teve uma audiência publica no STF para definir o que era esse “universal”, que não é tudo o que existe no mundo. A gente estava incorporando coisa que não estava autorizada pela ANVISA. No final de 2011, foi reformulada a antiga Citec (Comissão de Incorporação de Tecnologia) e foi criada a Conitec, formada por diversas instituições da sociedade civil, que vai avaliar a incorporação de tecnologia, com listas e prazos de coisas a serem incorporados, e os cidadãos vão ter direito àquilo que o governo decidiu que é efetivo, seguro e não traz riscos.

*Luana Assiz é jornalista (Facom-UFBA) e especialista em Jornalismo Científico e Tecnológico pela mesma faculdade.

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