Desmatamento, queimadas, aumento da temperatura, falta de local para nidificação e redução das fontes de alimento são as principais causas do êxodo das abelhas para os centros urbanos. O fenômeno tem gerado uma relação conflituosa com os moradores das cidades, devido aos riscos que eventuais ataques causam à saúde humana. Os insetos do gênero Bombus possuem a maior glândula de veneno e são extremamente agressivas quando perturbadas. Mas, nas zonas urbanas, as africanizadas são as mais comuns, populosas e também as campeãs em acidentes, explica a professora e taxonomista de abelhas do Instituto de Biologia da Ufba, Favízia Freitas de Oliveira. Coordenadora do Laboratório de Bionomia, Biogeografia e Sistemática de Insetos e do Museu de Zoologia da Ufba, Favizia diz que exterminar uma grande quantidade de enxames pode gerar impacto negativo no ambiente, principalmente pelo papel que essas abelhas exercem como polinizadores, inclusive de plantas nativas
POR LÍDICE OLIVEIRA
oliveira.lidice@gmail.com
Ciência e Cultura – Quantas espécies de abelhas estão catalogadas? Todas são peçonhentas?
Favízia de Oliveira - Segundo o livro “As Abelhas do Mundo” publicado em 2007, que é a publicação em taxonomia das abelhas mais recente, existem 17.500 espécies de abelhas descritas para todo o mundo, porém, estima-se que existam mais de 20 mil espécies espalhadas por todas as regiões do mundo onde existem plantas com flores. A grande maioria das espécies possui ferrão, ou seja, pode picar, sendo que apenas uma pequena parcela das espécies de abelhas possui ferrão atrofiado, vestigial, perdendo, portanto, a capacidade de picar (em torno de 400 espécies).
Essas abelhas que não picam são conhecidas popularmente como abelhas indígenas “sem ferrão” (tribo Meliponini). Outro fato interessante é que a grande maioria das espécies de abelha é solitária, ou seja, não constroem ninhos com divisão de trabalho e sobreposição de gerações, sendo formados apenas pela fêmea e seus descendentes, e, na maioria das vezes, a mãe morre antes de seus filhotes emergirem como adultos. Apenas uma pequena parcela das espécies é social, construindo ninhos com operárias, machos e rainhas, com divisão de trabalho e sobreposição de gerações (gêneros Apis, Bombus e a tribo Meliponini), sendo que alguns ninhos podem sobreviver por décadas no mesmo local (Meliponini). Com relação aos acidentes por abelhas, apenas as sociais com ferrão têm potencial para causar injúria, principalmente, devido à sua agressividade na defesa de seu ninho, e à grande quantidade de indivíduos por colônia, como é o caso do gênero Apis. No caso do gênero Bombus (Mamangavas ou Mangangás), embora os ninhos sejam bem menos populosos que os das Apis, essas abelhas são maiores e muitíssimo agressivas quando perturbadas (fazem ninhos no solo), e o ferrão é fixo, podendo picar diversas vezes, possuindo também a maior glândula de veneno.
No Apis, o ferrão fica aderido ao intestino e, ao picarem, as abelhas acabam perdendo as vísceras juntamente com o ferrão e morrem. Entretanto, é importante salientar que apesar dos acidentes com abelhas que temos visto ultimamente, os benefícios que elas nos trazem são infinitamente maiores que os malefícios que elas podem nos causar. As abelhas são os principais responsáveis pela reprodução vegetal, por promoverem o fluxo gênico entre as espécies de plantas através do fenômeno da polinização. Se levarmos em conta que mais de 80% dos produtos que consumimos hoje dependem das abelhas para frutificação (a grande maioria das frutas que consumimos no nosso dia a dia), sendo que alguns produtos que não são dependentes totalmente da polinização melhoram a qualidade e quantidade de frutos e sementes (como é o caso do café, algodão, feijão e soja), concluímos que dependemos totalmente das abelhas para a nossa sobrevivência. Por isso, a nossa maior preocupação deve estar centrada na preservação das espécies de abelhas, e devemos ter ciência de que elas só atacam quando se sentem ameaçadas. Devemos lembrar também que o grande culpado dos acidentes somos nós mesmos, por destruirmos os ambientes naturais, como acontece nas cidades, principalmente.
Ciência e Cultura – Quais as espécies de abelhas de maior ocorrência na Bahia, e, em especial, em Salvador?
Favízia de Oliveira – No livro sobre a fauna de abelhas do Brasil, publicado em 2002, “Abelhas Brasileiras: Sistemática e Identificação”, de Fernando A. Silveira, Gabriel A.R. Melo e Eduardo A.B. Almeida, foram computadas 251 espécies de abelhas para a Bahia. Desde então, várias outras espécies foram reportadas para o estado, sendo que várias espécies novas foram descritas, e ainda existem centenas de espécies novas para serem descritas. Ou seja, esse número não reflete a diversidade de abelhas do estado. Este mês submetemos um artigo para a revista internacional Zookeys, onde, juntamente com um de meus orientandos e um colega da University of Kansas (USA), descrevemos uma espécie nova da família Colletidae, de um gênero relativamente raro no Brasil, sendo o primeiro registro do gênero para a Bahia, e temos mais sete espécies novas da Bahia em estudo para publicação. Quando nos referimos às espécies da Bahia, excluímos o poliíbrido Apis mellifera scutellata Lepeletier (1836), abelha Europa ou africanizada, que é a espécie mais comumente encontrada, por se tratar de um animal introduzido, ou seja, não ser uma espécie nativa do Brasil. Existem centenas de espécies de abelhas nativas com grande ocorrência na Bahia e Salvador, a exemplo das abelhas “sem ferrão” Trigona spinipes (Fabricius, 1793) (conhecida como Irapuá ou Arapuá), Tetragonisca angustula (Latreille, 1811) (Jataí), Nannotrigona testaceicornis (Lepeletier, 1836) (Iraí), Plebeia droryana (Friese, 1900) (abelha Mirim ou Mosquito), Melipona scutellaris Latreille, 1811 (Uruçu), Melipona quadrifasciata Lepeletier, 1836, e Melipona mandacaia Smith, 1863 (conhecidas como Mandassaia), dentre muitas outras espécies, ou das espécies com ferrão Xylocopa frontalis (Olivier, 1789), Xylocopa grisescens Lepeletier, 1841, Bombus brevivillus Franklin, 1913 e Bombus morio (Swederus, 1787). Todas são conhecidas como Mamangavas ou Mangangás, sendo as duas primeiras solitárias, e a última, social.
Ciência e Cultura – Fala-se muito no híbrido de africana. Esse híbrido tem ocorrência significativa na Bahia? Ela é a mais agressiva?
Favízia de Oliveira- As mais agressivas são as Bombus e as africanizadas. As abelhas que conhecemos com africanizadas ou Europa são, na realidade, poliíbridos resultantes dos cruzamentos entre as abelhas africanas Apis mellifera scutellata Lepeletier (1836), introduzidas no Brasil em 1956 e anteriormente classificadas como Apis mellifera adansonii Latreille (1804)), e as raças européias A. m. mellifera Linnaeus (1758), A. m. ligustica Spinola (1806), A. m. carnica Pollmann (1879) e A. m. caucasica Gorbachev (1916), que foram introduzidas na América pelos colonizadores, antes da chegada das africanas. Como nestes poliíbridos predominam as características morfológicas e comportamentais das africanas, são conhecidas com africanizadas, e o nome científico de referência deve ser Apis mellifera scutellata. A abelha africanizada é a mais comumente encontrada em todo o Brasil, sendo melhor adaptada ao nosso ambiente do que as européias, melhor produtora de mel e também mais resistente às pragas e doenças, o que coloca o Brasil hoje entre os maiores produtores de produtos derivados das abelhas. Sem falar também dos benefícios para a nossa saúde, com o uso dos produtos das abelhas.
Ciência e Cultura – Que espécie, dentre aquelas encontradas na Bahia, causa mais acidentes? Por que?
Favízia de Oliveira – As africanizadas são as mais comuns e populosas, sendo melhor adaptadas também aos ambientes urbanos (até mesmo pelo se comportamento de nidificação) e as campeãs em acidentes nos centros urbanos. Em segundo lugar vêm as do gênero Bombus, e depois as Xylocopa, ambas com poucos casos de acidentes em centros urbanos, sendo mais comuns os acidentes na zona rural. A picada de Bombus é muitíssimo mais dolorida do que das africanizadas. Se a pessoa for alérgica, uma ferroada apenas de uma abelha poderá desencadear um processo alérgico grave. As abelhas injetam o veneno ao picar, e ao tentarmos tirar o ferrão acabamos por pressionar a glândula anexa do ferrão, e liberamos ainda mais veneno no local da picada. O ideal é não mexer no local e procurar assistência médica. Os profissionais treinados sabem como retirar o ferrão sem causar maiores danos, ministrando também o soro contra veneno de abelha de forma adequada.
Ciência e Cultura – A Sra. concorda que o aumento dos acidentes em Salvador é fruto da degradação ambiental? A Sra. dispõe de dados sobre esse problema na Bahia? E sobre estatísticas de óbito por acidentes com abelhas?
Favízia de Oliveira – Totalmente. O que vemos é uma reação das abelhas ao processo de mudança global, causado pelas ações antrópicas. Desmatamento, queimadas, aumento da temperatura, falta de local para nidificação e redução das fontes de alimento (causada pelo desmatamento, principalmente), são os principais motivos para esses insetos procurarem abrigo nos centros urbanos, onde há muitas cavidades disponíveis para elas construírem seus ninhos e disponibilidade de alimento. É comum vermos abelhas africanizadas em lixeiras, consumindo restos de sucos, refrigerantes, ou nos nossos jardins, que acabam possuindo as únicas flores existentes em centenas de metros quadrados. Muitas casas e apartamentos possuem vãos abertos entre lajes e os forros, o que favorece a instalação de enxames. Muitas casas possuem, ainda, cômodos externos pouco frequentados pelos moradores, ou recipientes como tonéis, madeiras empilhadas e outros, que acabam abandonados, servindo como moradia não apenas para as abelhas africanizadas, mas também para diversos outros animais com ratos, cobras, escorpiões etc. Até uma mala velha, largada em um quarto abandonado nos fundos de uma casa, pode servir como um local perfeito para um enxame de Apis se instalar, como observado há alguns anos em Brasília. Infelizmente, não existem estudos que mostrem estatisticamente esse processo de aumento de acidentes por abelhas, nem que relacionem esse fato com o desmatamento aqui na Bahia. Também, muitos dos acidentes com óbitos nem mesmo chegam a fazer parte das estatísticas, uma vez que as pessoas não reportam os acidentes aos centros de zoonoses ou aos serviços médicos, especialmente na zona rural.
Ciência e Cultura – Tem havido muitos casos de extermínio de colméias/enxames quando esses animais vão parar em área urbanas, onde a remoção é difícil ou considerada inviável. Quais os riscos dessa prática para a biodiversidade? O que precisa ser feito com urgência sobre esse problema?
Favízia de Oliveira – O ideal é que os enxames sejam capturados e levados a locais adequados de criação. Porém, se o enxame representa risco à saúde humana, o procedimento mais correto é o seu extermínio, infelizmente. Devemos ser sensatos e agir com prudência. Embora as abelhas Apis não sejam espécies nativas de nossa fauna, elas já se tornaram adaptadas ao nosso ambiente, e já estão integradas na dinâmica dos ecossistemas. Exterminar uma grande quantidade de enxames pode vir a causar um grande impacto negativo no ambiente, especialmente pelo papel que essas abelhas assumiram como polinizadores, inclusive de plantas nativas. Se levarmos em conta a vulnerabilidade que o nosso ecossistema já enfrenta por todas as pressões das ações antrópicas, em grandes proporções, o extermínio de enxames pode ser mais um processo danoso ao ambiente, além de ser um procedimento antiético, especialmente se temos em mente o papel ecológico, social e econômico que esses animais assumiram em nossa sociedade. As autoridades competentes devem estar alertas a isso, e buscarem meios de criar mecanismos de monitoramento e captura correta desses enxames. Isso é um assunto sério que vem sendo negligenciado por toda a sociedade.
Ciência e Cultura – A Sra. saberia informar como estão às pesquisas para uso do veneno de abelhas na produção de medicamentos? Existem estudos na Bahia que a Sra. tenha conhecimento?
Favízia de Oliveira – A Apiterapia tem sido definida como a utilização de produtos derivados das abelhas para tratamento terapêutico, incluindo também as apitoxinas das picadas das abelhas. O veneno das abelhas tem sido utilizado a partir de abelhas vivas, com uso controlado das picadas, ou pelo uso de pomadas produzidas com a apitoxina, bem como através da inoculação por injeções, ou por flotação, inalação ou por absorção sublingual. Alguns experimentos têm sido desenvolvidos também com a aplicação da picada de abelha nos pontos de acupuntura, potencializando ou modificando o seu efeito, prática esta denominada por alguns de apipuntura. Infelizmente, não tenho dados sobre pesquisas científicas em nosso estado. O que sei é que alguns médicos já utilizam a apitoxina em procedimentos terapêuticos, com resultados muito bons em casos de artrose e artrite, e que o uso da apitoxina tem sido feito para curar doenças do aparelho respiratório, cardiovascular, geniturinário e gastrintestinal, doenças de ordem neurológica e dermatológicas, como a celulite, entre outras. Esse é um campo novo, que precisa de estudos sérios que envolvam biólogos, médicos, farmacêuticos e químicos, entre outros profissionais, compartilhando conhecimento e experiências para que a apiterapia surja como um procedimento liberado pelos órgãos reguladores da saúde pública e amplamente divulgado. Isso é importante, já que os resultados se mostram tão promissores. E para isso, serão necessários investimentos em pesquisa científica.
Ciência e Cultura – O que a Sra. acha de um sistema para monitorar os enxames? A Sra. tem conhecimento de algum sistema similar no Brasil ou outro país?
Favízia de Oliveira – Acho que é uma idéia muito boa e necessária. Vários estados possuem empresas que realizam um serviço similar, conhecido como SOS Abelhas. São Paulo, Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul são alguns deles. Essas empresas capturam os enxames e os levam para apiários especializados em receber essas abelhas. Infelizmente, desconheço esse serviço na Bahia e em outros estados da região Nordeste.
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