Ilka Bichara, professora do Instituto de Psicologia da UFBA, estuda as brincadeiras infantis desde o seu doutorado. Em entrevista à Agência de Notícias Ciência e Cultura, Ilka fala sobre o legado das brincadeiras e como algumas delas variam de acordo com o contexto socioeconômico em que está inserida.
THAIS BORGES*
thaiiis.borges@gmail.com
Ciência e Cultura – Quando surgiu o interesse em estudar as brincadeiras infantis?
Ilka Bichara - Meu interesse surgiu quando ainda era estudante do curso de Psicologia da UFBA e se consolidou quando, docente da Universidade Federal de Sergipe, cursei Mestrado e Doutorado em Psicologia na USP. A partir de uma sugestão de minha orientadora de doutorado, a professora Emma Otta, para que eu lesse a dissertação de mestrado de uma colega (Maria Salum Moraes). Na leitura fui me apaixonando tanto pelo tema que, ao concluí-la, já tinha na cabeça meu projeto de tese pronto. Isso foi em 1990. De lá pra cá não parei, quando concluo um projeto já tenho várias indagações que me levam ao próximo.
Ciência e Cultura: De que maneira as brincadeiras de faz-de-conta estimulam a criatividade das crianças?
Ilka Bichara – Essa é uma questão controversa como a do ovo e da galinha, ou seja, o faz-de-conta pressupõe criatividade e ao mesmo tempo a estimula. Na brincadeira de faz-de-conta a criança reinterpreta, ressignifica a realidade, seja o cotidiano de sua comunidade, sejam conteúdos midiáticos, não importa. A criança está sempre criando e recriando coisas. Nesse processo ela também se constrói.
Ciência e Cultura – As brincadeiras são uma forma de fugir da realidade?
Ilka Bichara – De jeito nenhum. Como expliquei, na brincadeira a criança ressignifica a realidade, busca compreendê-la e nesse processo vai formando suas impressões, seus valores, a partir do processo de negociação sobre o conteúdo das brincadeiras com as outras crianças. Por exemplo, quando as crianças resolvem brincar de escola, a professora terá que ser uma mescla da experiência das crianças que participam da brincadeira e não a de uma só. Todos do grupo têm que concordar que “professora faz as coisas desse jeito”. As brincadeiras estão sempre fincadas na realidade.
Ciência e Cultura – Por que as crianças têm deixado as brincadeiras de lado mais cedo? Elas têm amadurecido mais rápido?
Ilka Bichara – Não concordo com isso. As brincadeiras mudam, passam a ter outros conteúdos, mas elas estão aí. Nós é que temos dificuldade em vê-las porque são diferentes das que brincávamos em nossa infância. Hoje, o ambiente virtual é um enorme palco das mais diversas brincadeiras, inclusive as de faz-de-conta. Pais e educadores precisam ficar mais atentos a esta nova realidade.
Ciência e Cultura – Os brinquedos atuais, com muita tecnologia, limitam as crianças?
Ilka Bichara – Depende. Se puderem ser usados com usos diferentes daqueles para que foram construídos, quebrados etc., não. Ou seja, o que limita a criatividade da criança não é o objeto, mas as restrições dos adultos.
Ciência e Cultura – As brincadeiras são as mesmas em todas as classes econômicas?
Ilka Bichara – Algumas sim, outras não. As brincadeiras variam em forma e conteúdo conforme o contexto em que elas acontecem. Porém os tipos de brincadeiras são os mesmos. Por exemplo: todas as crianças brincam de faz-de-conta (tipo), porém os enredos, papéis, objetos, cenários, diálogos etc., vão variar conforme o contexto tanto físico quanto cultural. Outro exemplo: o jogo de gude existe em várias partes do mundo e há muito tempo (desde o Egito Antigo comprovadamente), mas as bolinhas podem ser feitas de materiais diferentes que o vidro. Assim como no Egito antigo eram feitas de alabastro, encontramos, hoje, no norte do país bolinhas confeccionadas com sementes raladas em pedra. Em Salvador, nosso grupo de pesquisa já presenciou um jogo onde as bolinhas foram substituídas por tampas de garrafa pet. Então, muitas brincadeiras são brincadas em todos os lugares independentes da classe social, país ou cultura, porém as crianças vão dar a elas conteúdos diferenciados. Vão adaptar regras, objetos, cenários e enredos conforme o contexto sócio-cultural em que estejam inseridas. É importante registrar que as brincadeiras das crianças, principalmente, as chamadas tradicionais, são consideradas elementos da cultura de um povo.
Ciência e Cultura – Algumas brincadeiras já podem ser consideradas “eternas” ?
Ilka Bichara – Eternas é um exagero, mas algumas brincadeiras são bem antigas, como o jogo de gude, porém elas não são congeladas no tempo. Elas vão sofrendo transformações. Dizemos que nessas brincadeiras há uma relação de universalidade e diversidade, ou seja, elas possuem uma estrutura, que as faz serem reconhecidas como as mesmas, mas vão sofrendo alterações aqui e ali, seja pela cultura mais geral, seja pela criatividade do grupo de brincantes. Isso é o que os autores da Sociologia da Infância (W. Corsaro) chamam de “cultura de pares”. Ou seja, acredita-se que a criança não é um ser passivo que vai apenas reproduzindo aquilo que vê, pelo contrário, ela é um ser ativo, que reinterpreta e recria a realidade em suas brincadeiras e, com isso, cria cultura.
Ciência e Cultura – Pessoas adultas têm alguma herança deixada pelas brincadeiras?
Ilka Bichara – Sim. Durante muito tempo se acreditou na psicologia, que a principal função da brincadeira seria a de treino para habilidades futuras. Hoje essa crença e as teorias que a fundamentavam foram revistas, porém acredita-se que um indivíduo não tem fases indissociadas em sua vida. Tudo aquilo que é vivido faz parte de seu processo de desenvolvimento. Nas brincadeiras se negocia, se exercita habilidades sociais complexas, se forma valores, conceitos, há emoção, enfim, se vive as brincadeiras e essas vivências, em maior ou menor grau, fazem parte do indivíduo.
*Thais Borges é estudante de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia.