Newsletter
Ciência e Cultura - Agência de notícias da Bahia
RSS Facebook Twitter Flickr
Atualizado em 1 DE novembro DE 2023 ás 13:38

Joelma Stella

Dando sequência ao semestre temático sobre "mulheres na ciência", a Agência de Notícias entrevista Joelma Stella, Bacharela em Artes, Mestra pelo Pós-Cultura e estudante de produção cultural na UFBA.

Por Cinthia Maria

Foto: Acervo Pessoal

A jornada acadêmica de Joelma Stella, 38, natural de Santo André, São Paulo, sempre foi marcada por muitos desafios. Bacharela em Artes, mestra pelo Pós-Cultura e estudante de produção cultural, ela conta que, desde criança, nutriu o sonho de ingressar em uma universidade e, antes de entrar na Universidade Federal da Bahia (UFBA), havia tentado isso por quase dez anos, mas sem sucesso.

Em entrevista à Agência de Notícias em CT&I (AGN), Joelma falou sobre os desafios de ser mulher e mãe na ciência, relembrando momentos de dificuldades e superações em sua trajetória de 11 anos na UFBA. Confira na íntegra:

AGN: Você sempre quis estar na ciência?

Joelma: Na verdade, entrei na ciência meio sem saber que estava entrando. Eu queria estudar, era esse o meu objetivo. Terminei o ensino médio em 2002 e fui trabalhar, mas sempre com esse sonho de fazer faculdade. Não tinha o objetivo de fazer pesquisa, ser cientista, nem a pretensão de cursar faculdade pública. Fiz o ensino médio em São Paulo, e lá as faculdades públicas eram a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (UNESP). Na minha cabeça, só gente rica, que estudava em escola cara, entrava em uma delas. Por isso, fiquei trabalhando e estudando sozinha, com o objetivo de conseguir entrar em uma faculdade particular mesmo e tentar conseguir bolsa, ou pagar a mensalidade parcelada. Algo nesse sentido. Só passou pela minha cabeça que a universidade pública era possível bem mais tarde, quando descobri que um colega que trabalhava comigo em um Call Center fazia Letras na USP. Aquilo foi um evento na minha cabeça, parecia que eu tinha descoberto a roda. Um jovem, proletário, que fez escola pública, assim como eu, e que estudava na USP? Era inédito na minha mente. Depois disso, voltei para a Bahia e resolvi tentar o vestibular da UFBA, porque queria fazer cinema e não sabia muito bem onde cursar, mas tinha ouvido falar do BI, que era um curso que tinha essa possibilidade. Ingressei em 2012, aos 27 anos, através do REUNI, e as coisas foram acontecendo. Quando percebi, já era pesquisadora.

AGN: Como surgiu o seu interesse pela área da cultura?

Joelma: Eu não consigo me lembrar quando foi a primeira vez que pensei em trabalhar com cultura. Lembro de decidir que queria ser fotógrafa com uns dez anos, e cineasta também. Mas a cultura sempre esteve presente na minha vida, desde que me entendo por gente. Eu cresci em uma família implicada social e politicamente na cultura. Não da perspectiva institucional, mas na comunidade mesmo. Meu avô era líder comunitário, um agitador cultural como gosto de chamar. Assim como minha mãe, que fundou um movimento de mulheres artesãs que ela lidera há mais de vinte anos, e que culminou na transformação da nossa casa em um Ponto de Cultura. No fim das contas minha trajetória na pesquisa é atravessada pela minha trajetória pessoal e familiar. Eu vejo a minha persona pesquisadora um pouco como consequência dessa busca pelo meu lugar na história da minha família, o meu lugar dentro e fora dela. Não quero me limitar a dar sequência à trajetória familiar. Para mim, é importante também compreender quem eu sou além da minha família e da bagagem que vem com ela.

AGN: Você enfrentou algum tipo de resistência ou dúvidas de outras pessoas em relação à sua escolha de carreira na ciência? Como lidou com isso?

Joelma: A minha família nunca questionou meu desejo de seguir carreira acadêmica. Eles sempre me incentivaram bastante e tiveram muita paciência. A resistência que enfrentei foi de alguns professores e colegas dentro da universidade. Eu sempre fui muito falante e participativa nas aulas, e lembro de, ainda no primeiro semestre, tirar uma nota baixa na prova de uma matéria que eu amava e falava horrores. A professora, na hora de me entregar a prova, falou na frente da sala inteira que esperava mais de mim. Fiquei péssima e me senti um lixo, burra. Depois disso, eu fui mãe. Sabemos que a universidade, como todo espaço de poder, não é acolhedora para mães e crianças. Então, tive vários episódios de ter a minha presença e a da minha criança questionadas por professores. Houve situações de humilhação, por precisar faltar ou chegar mais tarde em aulas por conta da maternidade. Muitos colegas se recusaram a fazer atividades comigo porque eu levava meu filho para as aulas e eles achavam que ele ia atrapalhar o andamento das coisas. Ser mãe na universidade é muito solitário, você é raramente escolhida para os trabalhos em grupo, quase nunca é chamada para os rolês ou confraternizações dos alunos. Eu me sentia invisível e tinha a sensação de estar sempre incomodando. Uma vez uma professora me passou atividades extras e me disse que eu não poderia ter nenhuma falta na matéria dela para compensar o atraso, porque a aula dela começava às 07h da manhã e meu filho entrava na escola às 07h30.

AGN: Você, em algum momento, pensou em desistir?

Joelma: Sim. Essas muitas situações de humilhação me renderam uma crise de depressão, dois semestres da primeira graduação trancados e o quase abandono da vida acadêmica. Mas eu sou teimosa. Antes de entrar na UFBA, passei quase dez anos tentando fazer faculdade com ProUni, Fies e pagando mensalidade. Inclusive, trabalhei dois anos em um Call Center em São Paulo, morando de favor e pagando minha faculdade de Psicologia, que acabei abandonando por falta de grana. Então, fazer faculdade era um grande sonho e quando percebi que estava quase desistindo da UFBA, depois de toda essa jornada para conseguir entrar — e desistindo por conta de pessoas que não pagam as minhas contas e não sabem da minha semana — eu me retei, teimei e voltei. A morte dos meus avós também me deu um empurrão para não desistir. Me fez lembrar que venho de uma família de gente teimosa, birrenta, que insiste em ocupar os espaços que lhe são negados. Foi assim que eu consegui terminar o BI de Artes, o mestrado e agora estou concluindo a graduação de Produção Cultural na Facom.

AGN: Atualmente, o que você está pesquisando?

Joelma: Conclui o mestrado no Pós Cultura, na linha de pesquisa de cultura e desenvolvimento, sob orientação do professor Beto Severino. Minha pesquisa é uma cartografia e, como é uma pesquisa multidisciplinar, ela tem atravessamentos historiográficos e antropológicos. Atualmente, integro o grupo de pesquisa Memória e Identidade, coordenado pelo professor Beto, e também participo eventualmente das reuniões do grupo de pesquisa LOGOS, grupo de pesquisa em comunicação estratégica, marca e cultura. Em linhas gerais, pesquiso memórias, afetos e patrimônio. Me interessa observar como nossos afetos e nossas memórias se relacionam e influenciam a maneira como definimos coletivamente o que é patrimônio. No momento, estou tentando me aprofundar nos debates sobre patrimônio ambiental e a relação afetiva do humano com a natureza.

AGN: Além de você, há mais mulheres no seu grupo de pesquisa?

Joelma: Sim, arrisco dizer que tem mais mulheres do que homens inclusive.

AGN: Como você vê a importância da igualdade de gênero na ciência e quais desafios, na sua opinião, as mulheres ainda enfrentam hoje em dia na busca pela igualdade de oportunidades e reconhecimento na pesquisa e na academia?

A igualdade de gênero é fundamental e urgente na universidade e em todos os espaços públicos e privados de poder na nossa sociedade. Vivemos a ilusão de que somos um país moderno e evoluído, mas a verdade é que a sociedade brasileira é violenta e extremamente patriarcal e conservadora. Não precisa ir longe, é só pensar nos últimos quatro anos de desgoverno para notar como ainda estamos carregados de colonialidade, racismo, misoginia e afins. A gente esquece que o Brasil é um país alicerçado em desigualdades e violências silenciadas — e muito bem camufladas na narrativa consolidada durante a república eugenista de Vargas, atrás de uma narrativa de país feliz e miscigenado que perdura até hoje. Isso se reflete em todas as camadas sociais, e está latente na ausência ou na pouca representatividade feminina nos espaços de poder. Só piora se você incluir outros marcadores como raça, classe social, identidade de gênero, orientação sexual, etc. A representatividade feminina na ciência é um reflexo de toda essa história. É um ambiente ainda muito masculino normativo e branco. Inclusive muitos pesquisadores que são referências em pesquisas de gênero e raça ainda são homens que desempenham uma figura social normativa. Obviamente houveram avanços, mas é notório que é mais difícil para a mulher se manter na pesquisa. Ciência é trabalho, e muitas mulheres conciliam jornadas triplas como tantas outras trabalhadoras, cuidando de filhos, de casa. Lidando com as violências físicas e simbólicas que atravessam os corpos e subjetividades femininas mundo afora. Acho importante destacar também a necessidade de uma representatividade feminina na ciência para além do superficial. Não adianta ter mais mulheres conservadoras na ciência. Damares Alves é mulher e presta um grande desserviço aos direitos das mulheres e das crianças do país. É fundamental estarmos atentas sempre a essas sutilezas.

AGN: Você teve alguma figura inspiradora ou modelo a seguir que influenciou sua decisão de seguir uma carreira na ciência?

Joelma: Eu admiro várias mulheres pesquisadoras. A professora Janja, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), é uma pesquisadora que me inspirou muito desde que a conheci, na sede do grupo de capoeira angola do Alto da Sereia, onde ela é mestra, e depois sendo sua aluna na matéria de Gênero e Cultura durante a graduação no BI de Artes. Janja me inspira a não esquecer minhas origens e jamais me deixar iludir por qualquer ‘glamour’ que um título acadêmico possa me dar. Minha autora e pesquisadora favorita é bell hooks, porque ela traz essa mesma perspectiva de não esquecer de onde se vem, para onde se vai e quem se é no meio disso tudo. Também tem a escrita simples e de fácil leitura de bell, que torna seu texto acessível. Eu me cobro bastante para fazer uma escrita acessível como a dela, porque não quero escrever rebuscado para meia dúzia de acadêmicos entenderem enquanto tomam café em uma sala de grandes intelectuais. Eu quero que as mulheres da minha cidade no interior, que só têm o ensino fundamental e médio, consigam ler o que escrevo e compreender o que quero dizer.

AGN: Como você vê a importância de, assim como a professora Janja, inspirar jovens estudantes a seguir o mesmo caminho?

Joelma: Eu vejo como uma grande responsabilidade. Tento sempre passar para as universitárias com quem dialogo que nós somos mais do que a universidade, mas também fazemos parte dela. Precisamos estar nesse espaço, ocupá-lo, sermos narradoras das nossas histórias e detentoras dos saberes que existem ali. Eu quero ver mulheres sequenciando DNAs para vacinas, fazendo cálculos incríveis que eu jamais serei capaz de fazer, e nem quero. Mulheres nas ciências humanas, exatas, biológicas, nas letras, nas artes. Em todos os lugares. E que essas mulheres permaneçam, que suas trajetórias não sejam apagadas ou silenciadas. Inspirar jovens e outras mulheres é uma grande responsabilidade, porque é contribuir para que elas tenham consciência de todas as violências e silêncios, e de que elas precisam levantar todo dia, lutar e resistir. Isso pode ser extremamente cansativo, mas é o que garante que ocupemos os espaços que nos são negados cotidianamente. Não só na ciência, mas no mundo.

*Revisado por Beatriz Nascimento e Nathali Brasileiro

Um comentário a Joelma Stella

  1. Pesquisador disse:

    Olá, pode entrar em contato por email, cienciaecultura.ufba@gmail.com!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *