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Ciência e Cultura - Agência de notícias da Bahia
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Atualizado em 17 DE abril DE 2013 ás 12:20

Paulo Miguez

Mesmo fora do mês em que é comemorado, o Carnaval é constantemente discutido. E para esclarecer algumas questões acerca do seu funcionamento, conversamos com o professor Paulo Miguez, do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) da Universidade Federal da Bahia. Ele possui como principais áreas de interesse os estudos socioeconômicos da cultura; políticas culturais e estudos da festa, com ênfase no carnaval.

POR DANIELLE MESQUITA JACÓ*
dmj.266@gmail.com

Ciência e Cultura – Como você define o carnaval baiano nos tempos atuais?

Paulo Miguez – Uma grande festa que experimentou nos últimos anos uma dimensão nova, de mercado, devidamente marcada pela espetacularização, pela presença das lógicas da economia do turismo e por uma forte presença mercantil. Um nome que talvez possa dar conta deste carnaval que nós temos hoje é o que o eu chamo de Carnaval Afro-elétrico-empresarial, porque são as duas grandes dimensões estéticas presentes na festa; a dimensão eletrificada que vem do trio, a dimensão da estética afro-carnavalesca e a dimensão empresarial que alcança trio, o mundo afro, o mundo dos outros blocos, uma dimensão que atravessa a festa de uma maneira transversal.

Ciência e Cultura – Que benefícios o carnaval traz como elemento articulador da cultura baiana?

Paulo Miguez – Todos. O carnaval é um grande centro articulador. Do ponto de vista estético, por exemplo, algumas novidades no campo da música baiana acontecem a partir do carnaval; lá atrás, a batida do samba-reggae – antes do samba-reggae – toda invenção musical que significou a invenção do trio elétrico, a emergência de um gênero novo de música brasileira. Outra contribuição estética fabulosa é a trieletrificação do Ijexá – nação africana que resiste atualmente como ritmo musical presente nos Afoxés. Na metade dos anos 70, quando o trio encontra definitivamente o afoxé e esses sons se cruzam e se hibridizam, no momento seguinte, ocorre a invenção da batida do samba-reggae pelos blocos afro com figuras importantes como Neguinho do Samba, e em tempos mais recentes, o Axé music e de certa forma o pagode contemporâneo. São cinco contribuições que vem do mundo da festa carnavalesca e vão estabelecer bases fortes na cena musical.

Outra contribuição é que o mercado da festa que se estabelece no final dos anos 1980, início dos anos 1990, vai estimular outros segmentos do mercado da cultura. Por exemplo, mesmo músicos que não trabalham com o carnaval ou gêneros que dialogam pouco com a festa vão se beneficiar da emergência desse mercado para aquisição de instrumentos musicais, entre outras coisas. Acho que o carnaval é um grande eixo organizador da trama cultural baiana. Há coisas que correm para além dele, mas ele sempre dialoga com isso.

Ciência e Cultura – Qual a sua opinião sobre a repartição da riqueza gerada pela economia do carnaval?

Paulo Miguez – Absolutamente desigual e concentrada. A economia do carnaval expressa de forma condensada àquilo que a gente tem na dimensão socioeconômica da cidade: concentração, desigualdade. E o carnaval não é diferente disso, o carnaval é assim mesmo; esse mercado está estabelecido assim. É preciso políticas que atuem no sentido da desconcentração. Não vejo possibilidade de igualdade no mercado capitalista, mas imagino que você possa ter muito menos desigualdade, mais possibilidades, mais oportunidades para setores que estão trabalhando na franja desse mercado. O estado tem que entrar pesado com a regulação desse mercado, com políticas públicas.

Ciência e Cultura – Como você define a política de utilização dos espaços públicos nos circuitos?

Paulo Miguez – Ainda largamente submetida à lógica e aos interesses do negócio carnavalesco. A prova mais evidente disso é a incapacidade ao longo dos anos que o estado teve de produzir o mínimo de regulação sobre os blocos e a utilização de espaço público para a montagem de camarotes, às vezes declaradamente espaço público, às vezes disfarçadamente espaço público. Isso precisava ser enfrentado porque é inaceitável que você privatize a qualquer título, qualquer espaço público, dentro do carnaval e fora também. Mas no carnaval isso aparece de maneira ainda mais dolorosa, pois é o momento em que alguns setores da população conseguem chegar até o centro. Há algumas áreas que durante o cotidiano que quase lhe são vedados, seja pela distância, seja pela intolerância, seja pelo preconceito; as pessoas não se deslocam para o lado de cá. Durante o carnaval se deslocam, e esse deslocamento tem uma limitação que é a redução do espaço público, quando são erguidos equipamentos desse tipo ou quando se é incapaz de regular o desfile balizado por cordas.

Ciência e Cultura – Os camarotes representam a exploração do entretenimento carnavalesco?

Paulo Miguez – Os camarotes não são exatamente um problema desde que eles sejam montados em um espaço privado. Eles reproduzem uma lógica que está presente ao longo da história do carnaval, uma lógica de separação da forma de brincar das elites, separando os setores populares. Desse ponto de vista não tem nenhuma novidade. Há anos você tinha os clubes sociais – com uma diferença no sentido de que havia um muro e o camarote foi obrigado a dialogar com a festa da rua através das suas varandas. Muitas pessoas ali pouco se importam com o que está acontecendo do lado de fora, mas enquanto equipamento, ele não conseguiu fechar aquilo, ele precisa da rua, ele dialoga com a rua.

Do ponto de vista do negócio carnavalesco eu acho que ele é mais uma oportunidade, os camarotes são um problema quando construídos com espaço público, em espaço privado, desde que a sua montagem não causem transtornos como a gente presencia na Barra. Eu não vejo problema nenhum. Acho que nós temos capacidade de vender a festa, e competência que são suficientes para convencer um turista incauto de que o melhor lugar para se ver o carnaval da Bahia é o décimo andar de um camarote.

Não acho que seja possível uma política cultural da festa que determine a forma de brincar, ou seja, “só pode brincar carnaval na rua”. Acho que não é a função. O camarote é um equipamento que, respeitando o espaço público e as condições de instalação, é perfeitamente razoável e não cria nenhum problema desse ponto de vista.

Ciência e Cultura – Você acredita que o carnaval “Ouro Negro” fortalece a presença de entidades de matriz afro-baianas no carnaval?

Paulo Miguez – Com certeza. Acho que o carnaval Ouro Negro é uma política desenvolvida pela Secretaria de Cultura do Estado que tenta deslocar a relação com o mundo das entidades carnavalescas, do plano do mercado para o plano sociocultural. É uma política em processo de aperfeiçoamento, com recursos aquém das necessidades das entidades. Mas me parece uma forma diferente e positiva de se fazer política de cultura no carnaval. Merece todo o aplauso.

Ciência e Cultura – Qual a sua opinião sobre o “Afródromo”?

Paulo Miguez – Eu não conheço o projeto em detalhes, apenas aquilo que a imprensa veiculou. Entretanto, olhando com o cuidado necessário, eu vejo que algumas questões precisavam ser enfrentadas. Primeiro lugar, eu acho que é absolutamente legítima a manifestação dos blocos afro, exigindo um lugar na festa. Ao longo dos anos esse lugar tem sido vedado, por conta da forma que o desfile tem sido organizado. Essa forma atende exclusivamente aos interesses de mercado e não a lógica de diversidade de manifestações da festa, que me parece que é a riqueza da festa. Mas, se for verdade que o projeto significa a criação de um circuito exclusivo para entidades afro-carnavalescas, do ponto de vista político, considerando o que foi o movimento de emergência dos blocos afro na metade dos anos 70, eu considero o recuo. Porque, quando os blocos afro saem, eles afirmam que não querem o gueto – que querem a cidade e a festa – e o quanto são fundamentais para a festa. Brigam por isso. É uma luta política extremamente importante para a cultura baiana. Então, do ponto de vista político há um recuo quando eu crio uma coisa específica. Acho que tem que ter o enfrentamento, por exemplo, dizendo: “ou muda a forma de organizar o desfile ou, no próximo carnaval, não haverá blocos de matrizes africanas no carnaval”. E eu acho difícil que qualquer governo topasse enfrentar situações desse tipo.

Ciência e Cultura – É legítima, portanto, a manifestação dos blocos afro na festa.

Do ponto de vista simbólico é importante que os blocos afro estejam presentes em todos os espaços da festa, porque o que pode acontecer é que outros grupos reivindiquem espaços específicos. Desde tempo atrás que a ideia de “axedródromo vem sendo alimentada por alguns artistas da cena. Houve um momento em que o Durval Lelis, que é um grande artista da festa carnavalesca, cedeu uma entrevista ao então deputado Geddel Vieira Lima e que dizia que ele achava que deveria licitar ruas; as pessoas concorreriam, ganhariam e organizariam a festa. A ideia de um circuito exclusivo, em minha opinião, está na contramão da festa, inclusive do ponto de vista econômico porque a organização do desfile no espaço público para qualquer entidade tem um custo de transação muito elevado. Os camarotes vêm se tornando o centro da festa porque os custos são menores do que para organizar um bloco. Uma coisa é eu negociar um alvará para montar um camarote, outra coisa sou eu negociar com a polícia, com a SUCOM (Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo), com os pipocas, com os cordeiros, com o trânsito, com o horário – o que chamamos em economia de custos de transação. Me parece que há um legítimo interesse mercantil, não vejo nenhum problema nisso. Mas eles precisavam fazer as contas com mais rigor.

Ciência e Cultura – O “Afródromo” tem tudo para crescer?

Eu vejo com reservas esse projeto, ainda que não o conheça bem para afirmar categoricamente. Entretanto, a experiência que eu assisti no Pelourinho no final do Encontro das Culturas Negras que a SecultBA promoveu quando Carlinhos Brown regeu uma orquestra de tambores de vários blocos, eu acho que um projeto dessa natureza é absolutamente inovador, encantador. Merece todo apoio público em termos de políticas, de organização de espaço, de horário, para que cresça e se torne um dos grandes símbolos do carnaval contemporâneo na Bahia. Ou seja, os blocos afro produzindo um projeto daquela natureza, que tem viabilidade comercial, qualquer grande marca se interessaria num horário e num espaço devidamente organizado e nobre –  essa coisa de espaço nobre é muito importante pela relação que o carnaval tem na mídia. Então aí eu acho que é perfeitamente bem vindo, é necessário, estava faltando isso. Isso pode ser produzido por trios independentes, projetos semelhantes e merece um bom acolhimento do ponto de vista dos gestores públicos que tem a obrigação e responsabilidade de zelar pela festa, de pensar a festa e de produzir políticas para a festa.

* Danielle Mesquita Jacó é estudante de Comunicação com ênfase em Produção Cultural na Facom-UFBA.

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