Abaixo o “corte”: textos teatrais censurados pela ditadura são resgatados por pesquisadora da Ufba. Anos após o fim do carimbo do veto, Rosa Borges busca trazer de volta um pedaço da nossa história literária posto em suspenso pelos anos ditatoriais
Por *Lara Pinheiro
laah.laara@gmail.com
Anos após o fim do carimbo do veto, Rosa Borges, professora do Departamento de Fundamentos para Estudo das Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), busca trazer de volta um pedaço da nossa história literária posto em suspenso pelos anos ditatoriais.
Seu interesse por textos teatrais censurados na época da ditadura na Bahia começou através de um aluno, que lhe informou sobre o acervo reunido no Espaço Xisto Bahia. A riqueza de informações ali constante não escapou a Rosa, que decidiu, em 2006, começar sua pesquisa, com o objetivo de entender mais sobre nossa história literária e não deixar que ela caia no esquecimento.
Ciência e Cultura - Sua pesquisa está concentrada num campo conhecido por filologia. Explique seu interesse nesta área da Literatura.
Rosa Borges - O trabalho que desenvolvo é na área da crítica textual, do campo da filologia, que se ocupa da restauração, recuperação, restituição do texto, o qual durante o processo de transmissão é muito modificado. A idéia é recuperar e estudar esse texto, e tê-lo como a representação da nossa história, da nossa memória, da nossa cultura, da nossa literatura. Primeiro a gente fez um projeto para buscar esse material, saber o quanto a gente tinha lá, ou de outros lugares [que pudessem ter material], a gente começou essa atividade de recolha mesmo desses textos. A gama maior está no Espaço Xisto Bahia, depois a gente foi pro Teatro Vila Velha e para o Teatro Castro Alves, e para a Escola de Teatro da UFBA. Já recolhemos o material e estamos num processo de catalogação, fazendo um catálogo com esses textos, com essas peças teatrais que foram censuradas. E estamos fazendo um outro trabalho em paralelo, que dá sustentação a esse de busca e edição dos textos, que é o trabalho com os jornais, com as matérias de jornais que circulavam na época a respeito do teatro e da censura. Caminham juntas as elaborações de dois catálogos: um com os textos teatrais que foram censurados e outro com os textos de imprensa relativos ao teatro e à censura. Isso serve de fundamento para o nosso trabalho, que é a edição crítica desses textos. Neste ano, fizemos o contato com o Arquivo Nacional em Brasília e estamos tendo acesso aos pareceres e aos processos relacionados a esses textos. Fazemos uma análise então sobre esse primeiro texto, o qual o dramaturgo submete ao julgamento da censura; e do outro, o texto do censor, porque tem as marcas de alguém que diz que aquilo não pode ser dito. E em paralelo caminha a busca dessas informações na área de entrevistas dos textos impressos, para embasar o nosso trabalho de edição desses textos. O projeto está aí, a todo vapor, está completando cinco anos, sempre envolveu os núcleos de iniciação científica. Nós estamos, no momento, com cinco bolsistas de iniciação científica, três doutorandos, cinco mestrandos, todos trabalhando com esses textos. Tem muita gente já trabalhando, tem outros que já se formaram, já fizeram mestrado. Quem começou comigo desde o início do projeto já defendeu dissertação de mestrado, já tem dissertações defendidas a respeito desses textos. Uma com João Augusto, que é o grande nome do teatro baiano. É uma pesquisa bem interessante, porque você lida com arquivos da própria história, do período ditatorial, do que foi, o que representou produzir naquela época, lida com a própria literatura dramática baiana que foi produzida e os vários estudos que estão sendo desenvolvidos. Espero que o trabalho de vocês faça essa divulgação. Essa é a importância da pesquisa, de envolver, de fazer interagir as diferentes áreas. Um trabalho como esse já tem uma relação que é bem próxima, que é entre Letras, Teatro e História. Procuramos sempre envolver as pessoas: já houve membros do grupo de Teatro, e História também.
Ciência e Cultura - E vocês, já pensaram em reencenar alguma dessas peças?
Rosa Borges - O pessoal de Teatro perguntou se a gente não queria! Eu disse: “daqui a pouco a gente deixa de ser um estudioso da Literatura e passa a ser ator, atriz” [risos]. Algumas dessas peças – não por iniciativa nossa, mas por iniciativa do pessoal de Teatro mesmo – já foram encenadas. ”Primeiro de abril” foi encenada. Foram encenadas umas três ou quatro peças que nós trabalhamos.
Ciência e Cultura - Como pesquisadora, você se interessa pela encenação da peça na íntegra?
Rosa Borges - Não, o interesse na peça hoje não serve para a gente. A nossa preocupação é com o texto: o texto que foi produzido naquele período, que foi submetido a uma censura, e trazer essa literatura que foi produzida naquele período. Para nós de Letras, o que interessa é reconstituir essa história, relacionada à produção do texto. Então nós vamos buscar o texto que foi censurado e publicá-lo. É uma edição científica, não comercial, feita a partir de alguns critérios que são próprios da área da filologia. Tem uma forma de preparar essa edição e essa publicação, então o nosso compromisso é com o texto. Tudo o que estiver associado a esse texto a gente leva em conta, como eu falei: entrevistas, livros, jornais, tudo isso serve para este trabalho de edição que é feito: a gente comenta, esclarece o que está ali por detrás do texto, porque tem uma informação que as pessoas não conhecem… Vocabulário, por exemplo, específico daquela época… A gente não conhece, vai conhecer como? Através da literatura, através das entrevistas, é que se vai ter a informação sobre o que é que aquilo significava naquele período.
Ciência e Cultura - Você mencionou que essa divulgação é mais científica, mas e para o grande público? Para as pessoas em geral ficarem sabendo como é que acontecia, como é que os textos eram censurados?
Rosa Borges - A produção do trabalho acadêmico vai dar conta disso. Como eu falei, já tem duas dissertações aí, prontas, e tem vários trabalhos de conclusão de curso. A academia vai produzindo esse conhecimento, que está aqui dentro deste espaço e vai ser consultado pelas vias convencionais – ou em biblioteca, ou aqui na instituição. Eu coloquei no site, [www.textoecensura.ufba.br] é uma forma de divulgar também, porque a gente precisa fazer essa divulgação; mas de início é uma produção acadêmica, que atende ao âmbito acadêmico, que atende a especialistas. O que a gente quer mesmo é ir levando isso para frente, ir publicando isso para que as pessoas conheçam, tenham mais informações, mas esse é um trabalho imenso, aos poucos ele vai acontecendo.
Ciência e Cultura - Com a Agência de Notícias nós esperamos fazer isso.
Rosa Borges - Exatamente, isso que eu falei, achei uma iniciativa boa porque aí propaga. Já sai do âmbito da própria universidade, a gente vai adiante, as pessoas já sabem onde e o que está sendo pesquisado, e não fica somente algo endêmico.
Ciência e Cultura - Nós vimos alguns textos e notamos que muitas partes censuradas continham palavras de baixo calão, algumas de conteúdo ideológico…
Rosa Borges - Existem cortes de várias naturezas, tem cortes relacionados a palavras de baixo calão mesmo, cortes de cunho moral, social, político, religioso. O que predominava era o corte de cunho moral, aquilo que “ofende a família brasileira”. Alguns trabalhos meus que estão lá [no Espaço Xisto] falam de textos, de memórias…Neles eu falo disso, de como é que era o processo da censura, as bases legais para se fazer isso… Nem sempre foi feito em Brasília, algumas vezes também era aqui, e houve um momento em que era feito em cada estado. Para a peça ser encenada, teria que haver um julgamento desse texto: ele era encaminhado em três vias. Três técnicos da censura dariam os pareceres, havia todo um protocolo para encaminhar para diferentes pessoas até chegar ao diretor-geral, para ele mandar emitir o certificado de censura. O certificado de censura tinha validade de cinco anos, mas se você fizesse qualquer alteração no texto dessa peça, ou quisesse encenar em outro lugar, diferente do que o que pediu pra encenar, tinha que submeter novamente à censura.
Ciência e Cultura - Havia formas – na escrita do texto teatral – de driblar a censura?
Rosa Borges - Alguns textos tinham mecanismos para driblar a censura. Em outros as pessoas enfrentam mesmo, é quase que uma denúncia, porque eles não estão nem aí… Querem mesmo é provocar [risos]. Aquele papel revolucionário, ideológico que eles têm que defender, mesmo com medo. Quando a gente faz as entrevistas, algumas pessoas [que passaram por aquilo] diziam que “mesmo com muito medo, a gente precisava reagir.” Mesmo com medo naquele contexto de tortura, de o pessoal [da censura] invadir o teatro armado para proibir a encenação… Às vezes só se dava o resultado da avaliação – se poderia ou não ser encenado – em cima da hora, e vinha o parecer negativo e as pessoas perdiam tudo em cima da hora… Tudo o que tinham feito, todo o trabalho de produção. Esses fatores faziam com que eles fizessem algumas modificações no texto. Depois de voltar de Brasília, esse texto ainda era submetido a outra avaliação por outros censores, que era no ensaio geral. No ensaio geral, os censores ali iriam identificar se aquilo que foi censurado nos textos foi de fato cumprido. O que podia ter passado como uma coisa discreta [à primeira censura] não passava assim aos olhos daqueles censores que estavam acompanhando, então era cortado. Esporadicamente, também havia censores na plateia, no dia da encenação, para verificar se a censura estava sendo cumprida. Algumas peças eram tão cortadas – páginas, às vezes – que não tinham mais condições de serem encenadas. Não dava para reformular porque teriam que passar pela censura de novo, e muitas eram vetadas. A maioria era liberada parcialmente – o dramaturgo teria que respeitar os cortes que haviam sido feitos. Existem casos muito interessantes, um em que o autor muda a ordem das letras na palavra, e você acha um negócio estranho, esquisito. Aí depois você percebe o que ele fez e começa a reconstruir. Na hora da encenação, eles usavam alguns recursos para indicar que aquilo tinha sido censurado. Eles não podiam falar, então na hora faziam silêncio, vestir o personagem daquilo que tinha sido cortado. Em um dos textos a palavra “vagina” foi cortada, e aí vestiram o personagem com a roupa e ele entrou em cena, e mudaram o nome para “poliglota”, uma coisa que não tem nada a ver, mas na representação havia a informação de que aquilo tinha sido cortado. Mas não era nada de leve. Embora o contexto fosse de opressão, repressão, havia textos que denunciavam mesmo toda aquela situação política. Esses não conseguiam passar, voltavam cheios de cortes.
Ciência e Cultura - E se alguém mandasse uma peça com muitos cortes, ela não seria interrogada, por sequer ousar enviar uma peça assim?
Rosa Borges - Não, a peça seria encaminhada, receberia os pareceres, e os censores decidiriam pela encenação ou não – pela liberação parcial ou total, ou também pelo veto. No caso de ser aprovada para a encenação, vinha escrita a faixa etária, e todas as páginas que tinham cortes. Eram liberadas, mas o dramaturgo tinha que levar em conta os cortes. Quando era proibida mesmo, não seguia adiante. A gente estudou uma peça que o autor tentou por várias vezes encenar, e em um dos processos, que ocorreu lá pelo final da ditadura, ela conseguiu o parecer para ser encenada, porque não fazia mais sentido censurá-la, pelo conteúdo, contexto, etc.
Ciência e Cultura – Nós vimos uma peça com vários cortes em uma das falas, com conteúdo ideológico socialista, e a página estava cheia de cortes.
Rosa Borges - Tudo o que estivesse associado a qualquer movimento, ou a qualquer ação política, ou a qualquer crítica ao governo vinha cheio de cortes.
*Estudande de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Ufba – Facom