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Atualizado em 9 DE setembro DE 2012 ás 02:09

Vitor de Athayde Couto

Deixar de pensar o orçamento doméstico dos agricultores familiares, como sendo exclusivamente agrícola, representa um grande avanço para o grupo Agricultura Familiar e Desenvolvimento Territorial, segundo o coordenador Vitor de Athayde Couto. Ele é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e referência na área em que atua. Acredita que a formação de pessoas para o trabalho com a realidade é algo muito importante e considera o espaço rural a sua sala de aula. Uma das tarefas atuais é a de tradução do livro “Projetos de desenvolvimento agrícola: manual para especialistas” pela Editora da UFBA (Edufba).

POR EDVAN LESSA*
lessaedvan@gmail.com

Ciência e Cultura – O grupo de pesquisa Agricultura Familiar e Desenvolvimento atua na área de Economia Agrária e dos Recursos Naturais. Quais as suas atividades atualmente?

Vitor de Athayde Couto – Sempre trabalhamos com atividades de pesquisa e extensão. Num país tão cheio de problemas, a pesquisa exclusiva é um luxo. O espaço rural é a nossa sala de aula, o nosso laboratório. Laboratório vem de labor – trabalho, mas o senso comum, dicionarizado, sugere um ambiente com instalações, com provetas. Quando organizamos saídas para o campo, com estudantes, alguns desistem antes do embarque. Outros abandonam os trabalhos em pleno curso das atividades. No final, ficam poucos, mas podemos assegurar que são pessoas preparadas para o trabalho. Em 16 anos de existência do grupo, os seus egressos, que de fato cumpriram todas as etapas da pesquisa e extensão, têm segurança naquilo que fazem. Em resumo, a nossa principal atividade é de formação. Formação de pessoas capacitadas para a pesquisa aplicada, para a extensão, para o trabalho com a realidade.

Ciência e Cultura –  Quais são os avanços junto às famílias de agricultores rurais?

Vitor de Athayde Couto – Os avanços são poucos. Sejamos realistas. O campo brasileiro particularmente onde se concentra agriculturas e agricultores familiares, foi invadido por um exército de “pesquisadores” munidos de extensos questionários, filmadoras, “gepeésses”, data-show e outros gadgets. Simplesmente porque as famílias rurais pobres, como as do semiárido, são “brasileiros cordiais” e ainda aturam essas coisas. E porque o Estado ainda financia projetos de pesquisa descasado da extensão. Duvidamos que isso se aplique tão facilmente aos empresários rurais do chamado agronegócio, pois eles só têm tempo para resultados. Então, vai sobrar para quem? Para os pobres agricultores familiares. Há exceções, claro. O pouco avanço que conseguimos é exclusivamente imaterial, mudança de mentalidade. A metodologia sistêmica liberta as pessoas da armadilha da especialização, filha dileta da monocultura e dos currículos produtivistas dos cursos tradicionais de agronomia. Deixar de pensar o orçamento doméstico dos agricultores familiares, como se fosse exclusivamente agrícola, já representa um grande avanço. A análise sistêmica considera todo o complexo de atividades diversificadas das famílias rurais reais, cada vez mais pluriativas e praticantes de uma agricultura multifuncional.

Ciência e Cultura – Quando destaca os termos “agriculturas e agricultores familiares” e “agronegócio”, o que quer dizer?

Vitor de Athayde Couto – “Agriculturas e agricultores familiares” é o título de recente artigo que produzimos no grupo, e que algumas pessoas menos avisadas insistem em corrigir para agricultoras e agricultores familiares. Esse tipo de reação, resultado da repetição constante de infinitas dinâmicas e oficinas, virou mania, a exemplo de “boa tarde a todas e a todos”, “trabalhadores e trabalhadoras”, etc. Agronegócio é uma infeliz tradução do conceito original, “agribusiness”, origem de mal entendidos. Nos anos 70, Alberto Passos Guimarães propôs uma tradução bem mais correta: Complexo Agroindustrial, ou simplesmente CAI. Não raro, confunde-se agronegócio com empresa rural, e até com latifúndio.

Ciência e Cultura – Mas no que compete às atividades de subsistência, como avalia a agricultura familiar especialmente no semiárido, hoje, do ponto de vista histórico-social e econômico?

Vitor de Athayde Couto – Há muito tempo, pesquisadores mais argutos já tinham desvendado o mistério do semiárido nordestino. Trata-se de um grande celeiro de mão-de-obra que se reproduz para o capital, porém, sem passar pelo salário. Leia-se autoconsumo a subsistência mencionada, transferências de rendas, biscates e outras estratégias de sobrevivência. Esse tema não é fácil porque não estamos preparados para ele. Assim como a reprodução se realiza por fora do salário, o tema igualmente passa por fora dos currículos das ciências sociais aplicadas. Contam-se nos dedos os estudiosos que levam isso em conta.

Ciência e Cultura – Ainda nesse sentido, quais são aos produtos que mantêm ativa a produção agrícola nas chamadas “ilhas de prosperidade”?

Vitor de Athayde Couto – Nas ilhas de prosperidade, empresários continuam investindo na produção de frutas irrigadas, grãos, café, algodão e carnes, com forte impacto ambiental, típico do modelo produtivista. Todavia, parte da subsistência dos agricultores familiares ainda é garantida pelo autoconsumo, ou seja, pelos policultivos (milho, feijão, mandioca, etc.) e a pequena criação (caprinos, ovinos, aves, etc.) que ainda são consumidos pelas famílias. Mas se analisarmos a chamada renda familiar (o orçamento doméstico), são os rendimentos não agrícolas que predominam, em termos monetários.

Ciência e Cultura – E no que se refere às características humanas desse cenário?

Vitor de Athayde Couto – O que mais se vê são idosos e crianças. Os jovens, em pleno vigor da força de trabalho, migram, definitiva ou temporariamente. As mulheres engravidam e levam os filhos para os avós criarem. Nem sempre enviam dinheiro, mas a reprodução é garantida pelos avós, pelo autoconsumo, aposentadorias, pensões e outras transferências de rendimentos. Dá pra perceber que não estou falando das “ilhas de prosperidade” do semiárido, como os grandes perímetros irrigados. Infelizmente muitos pesquisadores só se interessam por essas ilhas.  Todavia, eles não fazem ideia da dimensão do valor que tem a reprodução da força de trabalho fora das ilhas, e do quanto essa reprodução repercute na valorização do capital. Em termos econômicos, isso pode representar muito mais valor do que as ilhas. Valor que transborda para outras atividades industriais, urbanas e de serviços. Só ultimamente, com as políticas sociais, a oferta de mão-de-obra na construção civil diminuiu ao ponto de obrigar as construtoras a importar e treinar trabalhadores da Bolívia e de outros vizinhos. São os novos retirantes.

Ciência e Cultura – Retomando a atuação do grupo de pesquisa, como avalia as suas perspectivas?

Vitor de Athayde Couto – As perspectivas não são boas. Durante 12 anos conseguimos executar cinco projetos de pesquisa e extensão, sendo três apoiados em editais ministeriais, e dois no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Todavia, a burocracia aumentou demais nos últimos quatro anos, principalmente no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e outros ministérios afins. O último projeto que executamos foi também a última pá de cal nesse modelo do tipo “chamada de edital”. Em nossa opinião, nenhum pesquisador-extensionista sério sobrevive diante de tantas exigências absurdas e burocráticas, baseadas exclusivamente na desconfiança. Para piorar, não há com quem dialogar conteúdo técnico algum. Contratam-se consultores ad-hoc, temporários e despreparados, não raro por um preço superior ao orçamento do projeto que está sendo avaliado – se considerarmos honorários, encargos sociais, passagens, diárias e apoio logístico local. Nenhum consultor ad-hoc que nos visitou dominava o sistema online de acompanhamento desenvolvido pelo próprio ministério que o contratou. Era impossível dialogar.

Ciência e Cultura – E quanto às outras intermediações na execução dos projetos?

Vitor de Athayde Couto – Como a universidade é gigantesca e lenta, você é obrigado a procurar outra instituição, geralmente uma fundação, que se apresenta como “mais ágil”. A partir daí, ela faz outro convênio com a universidade, que executa as ações. Os órgãos intermediários, como por exemplo, a Caixa Econômica Federal, também não encontramos nenhum funcionário capaz de dialogar a respeito do conteúdo técnico do projeto. Ainda existem as associações dos agricultores familiares com quem são definidas prioridades e as ações executivas. Acho justo que os agricultores definam quais são as prioridades e até fiscalizem, mas nem todas as associações podem ser consideradas sérias. Pra piorar ainda mais, a sua diretoria pode mudar durante a execução do projeto. Esse modelo não funciona bem.

Ciência e Cultura – Insistindo nesse aspecto, como ficam as produções do grupo Agricultura Familiar e Desenvolvimento?

Vitor de Athayde Couto – O grupo limita-se agora a meia dúzia de orientandos de monografias, dissertações e tese. Sem projeto e sem nenhum apoio financeiro. Nossos projetos eram sempre apresentados “no balcão”. Nunca procuramos saber quem estava nos comitês ou quem eram os consultores ad-hoc [do latim, para essa finalidade] “para fazer contato”. Sabemos que existem grupos melhor estruturados, mas nunca pensamos em subcontratar ninguém para cuidar da burocracia, deixando-nos à vontade apenas para pesquisar. Não acho isso ético, até porque os editais que conheço proíbem contratar pessoas para funções “administrativas”. Todo mundo sabe que esse modelo está errado. Mas sabem também que nunca irá mudar, porque, quem manda, usufrui das imperfeições desse modelo nada republicano. Para dar outro exemplo, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) teve, só em 2011, cerca de quatro bilhões de reais para gastar com serviços que engajam milhares de funcionários. O detalhe é que, durante toda a sua existência, o índice de Gini – que mede a concentração da propriedade rural no Brasil, sequer se moveu ou tomou conhecimento da existência de políticas agrárias, ou da “reforma agrária”, como alguns costumam apelidar essas políticas.

Ciência e Cultura – Existem, portanto, consideráveis desafios a serem superados.

Vitor de Athayde Couto – Sim, mas, pelas razões já mencionadas. É inútil tocar no problema principal a estrutura agrária. Já são cinco séculos de latifúndio – e não mais quatro, como nos ensinou o saudoso Alberto Passos Guimarães, pesquisador competente e honrado, que não teve oportunidade de contar com o apoio do Estado, mas deixou um excelente legado científico. Por isso preferimos estudar os sistemas de produção, independentemente da estrutura agrária. Depois da reforma agrária, consideramos que o principal desafio está no conhecimento e reestruturação dos sistemas de produção. Essa é a metodologia que praticamos no grupo: “análise-diagnóstica de sistemas de produção”. Com a experiência, essa metodologia vem sendo ampliada para “sistemas de atividades”. Tivemos um grande apoio técnico da Food and Agriculture Organization (FAO) e também do Professor Marc Dufumier, catedrático de Agricultura Comparada, no Instituto Nacional de Agronomia Paris-Grignon (INA-PG). Fizemos um convênio com esse instituto, que atualmente atende pelo nome de AgroParisTech. Além dos intercâmbios, co-orientamos doutorandos e traduzimos o livro-referência da metodologia, intitulado “Projetos de desenvolvimento agrícola: manual para especialistas”, já em segunda edição na Edufba.

*Edvan Lessa é estudande de Jornalismo da Facom – UFBA  e bolsista da Agência de Notícias Ciência e Cultura.

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