Moradores criaram uma Associação Socio-Cultural em 2008 com o objetivo de fortalecer a identidade cultural da comunidade, que estava ameaçada pela crescente inserção da vila nos processos de modernização e de evangelização neopentecostal
NÁDIA CONCEIÇÃO*
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Lembrar e esquecer é parte natural da rotina dos seres humanos, mas a perpetuação da memória cultural de um determinado lugar, diz muito sobre sua identidade. Dessa forma, o zelo pela memória é uma das preocupações da comunidade de Matarandiba, vila de pescadores e marisqueiras, localizada no município baiano de Vera Cruz, distante 26 km de Mar Grande (sede administrativa da cidade).
Reconhecendo a memória como uma categoria que vem provocando indagações em diversas áreas, a dissertação da discente do Programa de Pós-graduação em Antropologia, sediado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA) Renata Freitas Machado, Um olhar etnográfico sobre a memória social de Matarandiba, defendida no ano de 2013, buscou identificar e compreender os processos envolvidos na reconstrução coletiva da Vila de Matarandiba, através da constituição de um memorial comunitário.
O memorial foi promovido pela Associação Socio-Cultural da localidade (Ascomat), criada em 2008, a partir da mobilização dos próprios moradores, que almejavam fortalecer sua identidade cultural, aparentemente ameaçada pela crescente inserção da vila nos processos de modernização e de evangelização neopentecostal.
A definição da memória usada pela autora parte da compreensão antropológica, onde a mesma é tida como uma reconstituição realizada no presente a partir das experiências passadas, que é consolidada a partir da “dialética da lembrança e do esquecimento”. Partindo desse conceito antropológico, a constituição do memorial teve como principal motivador o resgate e o registro das lembranças, evitando as ameaças representadas pelo esquecimento.
De acordo com Renata Freitas em artigo de mesmo nome, apresentado III Encontro Baiano de Estudos em Cultura (EBECULT), “o memorial tem como objetivo reunir e inscrever em memória passível de resgate público, os acontecimentos históricos valorizados pelos moradores locais, a vida cotidiana, as relações estabelecidas entre as pessoas, os lugares, o trabalho e o lazer”.
Comunidade X impactos ambientais
Um período marcante para os moradores de Matarandiba teve início na década de 1970, quando foi descoberto um depósito de salgema (termo aplicado ao sal obtido da precipitação química pela evaporação da água de antigas bacias marinhas em ambientes sedimentares), pela Dow Química – empresa de origem norte-americana. Esse período trouxe mudanças estruturais para a comunidade.
Uma dessas mudanças foi a construção de uma estrada que ligava a Ilha de Matarandiba à Ilha de Itaparica, o que culminou em um grande aterro marítimo e, consequentemente, mudanças profundas nos curso natural da água do mar na localidade. Segundo a pesquisadora, os impactos ambientais até hoje não foram avaliados, mas é possível perceber quando pescadores relatam o desaparecimento de algumas espécies marítimas, antes facilmente encontrada na região.
Quando o assunto é a criação de novos postos de trabalho, a desculpa frequentemente usada pelos governantes e pelos empresários para a chegada e instalação dessas multinacionais na região, é a criação de diversos postos de trabalhos, mas o que há de fato é a “criação dos mesmos, mas temporários e em atividades que demandam trabalhadores com menores qualificações e remuneração de mais baixo nível”.
A pesquisa aponta ainda que existe uma forte exclusão econômica, social e político-participativo das comunidades tradicionais da vila, o que vem ocorrendo desde a década de 1970. Esse movimento foi importante para que a população pudesse reagir e batalhar pela valorização do patrimônio da comunidade, e assim garantir o seu direito à memória, “um sentimento de pertencimento a uma comunidade ou a um lugar e se constitui como um importante objeto de luta hegemônica” descreve a autora no texto.
Concluindo, a pesquisadora enfatizou a importância da realização da pesquisa etnográfica, onde foi possível realizar um trabalho diferenciado de campo, onde “o contato com as pessoas proporcionou uma mudança no que diz respeito ao lugar do sentido das coisas”, o que sendo Renata Freitas foi proporcionado pelo contato que já tinha com a comunidade, mais precisamente uma relação familiar e que também foi motivador para a realização do projeto.
*Nádia Conceição é jornalista, estudante de Produção Cultural , mestranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC e bolsista da Agência de Notícias FACOM – UFBA