Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas, América Lúcia Silva César, atualmente é professora da Universidade Federal da Bahia e participa do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística e do Pós-Afro – Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em estudos Étnicos e Africanos. Em entrevista à Agência de Notícias Ciência e Cultura, a pesquisadora fala sobre o Projeto Observatório da Educação Escolar Indígena - Núcleo Local do Território Etnoeducacional Nordeste I, que está vinculado ao Pós-Afro (Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos). Uma parceria com o PINEB (Programa de Pesquisa sobre os Povos Indígenas no Nordeste), ambos da Universidade Federal da Bahia.
POR CAROLINA FILGUEIRAS*
carol.rotondano@gmail.com
Ciência e Cultura – Como funciona o projeto? Quais as expectativas de produção deste ano (2012) e principalmente neste semestre?
América Lúcia Silva César - O Núcleo Yby Yara é uma meta em execução proposta pelo Projeto Observatório da Educação Escolar Indígena – Núcleo Local do Território Etnoeducacional Nordeste I, está vinculado ao Pós-Afro (Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos) em parceria com o PINEB (Programa de Pesquisa sobre os Povos Indígenas no Nordeste), ambos da Universidade Federal da Bahia, e a Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena (LICEEI), da Universidade Estadual da Bahia.
Portanto, o nosso projeto, aprovado em 2009, desde o início, foi pensado para atuar no espaço já existente das iniciativas de formação de professores indígenas e da pesquisa acadêmica e ao mesmo tempo acompanhar, discutir e fomentar as ações no âmbito da educação escolar no Território Etnoeducacional Yby Yara, envolvendo dez dos povos indígenas que fazem parte desse território. Yby Yara é um termo de origem tupi, que significa “dono da terra”.
Nos dois primeiros anos atuamos no sentido de realizar o que chamamos “diagnóstico da educação escolar indígena” com vista a uma cartografia da educação escola no TEE Yby Yara, além da orientação de dois projetos de mestrado e um de doutorado no interior do Observatório. A experiência com o diagnóstico nos levou a repensar as ações e metodologia do projeto e a experimentar a implementação dos núcleos autônomos de pesquisa em área indígena. Neste último ano de financiamento do projeto, estamos trabalhando no acompanhamento desses núcleos, na finalização de alguns produtos, como a edição da primeira versão cartografia e de um site, para conter alguns resultados da pesquisa. Esperamos também neste primeiro semestre a defesa de duas dissertações feitas por mestrandas Pataxó, as primeiras indígenas que entraram em cursos de graduação da Universidade Federal da Bahia pelo programa de ações afirmativas em 2005 e que agora já concluem o seu Mestrado no Pós-Afro, e também a qualificação da tese de doutorado de um professor não indígena, que trabalha com produção de material didático nas escolas Kiriri e monografias de conclusão de curso.
Ciência e Cultura – De que maneira o Projeto Observatório se propõe a contribuir para a afirmação de políticas públicas e de identidades étnicas no que se refere à valorização de sua diversidade linguística e cultural?
América Lúcia Silva César - Bom, na verdade, a educação escolar indígena no Brasil, principalmente a partir da Constituição de 1988, se define como comunitária, específica, intercultural e bilíngue e se realiza de forma muito particular para garantir o direito dos povos indígenas a uma educação que respeite e valorize os seus modos próprios de existência e ao mesmo tempo possibilite maior interlocução com os não indígenas, principalmente quando se trata da defesa dos seus direitos. Isso significa, grosso modo, dizer que a educação que interessa aos povos indígenas deve ser realizada por professores e gestores indígenas para estudantes e comunidades indígenas dentro dos projetos de autonomia política e afirmação étnica de cada povo, em diálogo com outros conhecimentos, práticas e sujeitos, provindos de outras culturas e sociedades. Ou seja, em si mesma, a escola indígena é expressão da diversidade cultural e linguística e normalmente tem como meta sua valorização num diálogo intercultural.
Acontece que a estrutura do Estado brasileiro não foi pensada para este tipo de política, e o funcionamento e gestão da educação dentro dos regimes de colaboração existente entre estados municípios e União tem colocado inúmeros problemas. Tanto que o movimento indígena tem como uma das suas reivindicações antigas a criação de um sistema próprio de educação escolar. A política de implementação dos territórios etnoeducacionais pelo MEC, cujo decreto é de 2009, é uma tentativa de propor uma solução intermediária. Por outro lado, o Observatório da Educação Escolar Indígena, na sua primeira edição, de 2009, que foi prorrogada até este ano de 2012, é resultante de uma parceria entre a Capes, a Secadi e o Inep, dentro do modelo do Observatório da Educação e propõe fomentar estudos e pesquisas em educação intercultural indígena e formação de professores e pesquisadores no âmbito dos recém-criados territórios etnoeducacionais. Então, de saída, as iniciativas de implantação do Observatório da Educação Escolar Indígena, como também a criação e implementação dos territórios etnoeducacionais são parte de uma política de educação para os povos indígenas relativamente recentes, ainda em experimentação e discussão.
Ciência e Cultura – Qual o impacto social resultante deste projeto, para a sociedade e para a autoafirmação cultural indígena?
América Lúcia Silva César - Ainda não dá para falar em impacto, porque estamos ainda em fase de implantação do projeto e dois anos e meio ainda é pouco tempo em termos de pesquisa. Na verdade, este investimento em pesquisa no espaço da educação básica, propondo uma interlocução entre pesquisa acadêmica e as comunidades escolares, através dos professores e estudantes indígenas na graduação e pós-graduação é muito interessante e oportuno, mas se constitui no mesmo espaço de conflito interinstitucional e intercultural da educação escolar indígena. Ou seja, a Universidade, o MEC e suas agências de fomento à pesquisa, como a Capes e o Inep, nós todos, também estamos submetidos a regras e linguagens pautadas por relações de poder dentro de um Estado que historicamente se organizou numa perspectiva assimilacionista em relação aos indígenas, e agora tem que se reestruturar para abarcar novas configurações e desafios. De todo modo, o que o nosso Núcleo fez nesse tempo foi procurar fazer um trabalho em co-autoria, onde os sujeitos indígenas possam ter uma práxis no sentido de fortalecer a sua autonomia e referências culturais, tendo como foco a pesquisa, como chamamos, “feita por dentro” e a formação do professor/pesquisador indígena. Além disso, o que estamos gostando de fazer é poder refletir sobre essas relações e políticas e ter um espaço para isso. De concreto, temos já algumas ações realizadas em termos de articulação interinstitucional, como o trabalho em parceria com a Licenciatura Intercultural Indígena e o Curso de Magistério Indígena, da SEC, o PET-Conexões Indígena, a inserção de representante do nosso Observatório na comissão gestora do Território Etnoeducacional Yby Yara, no Fórum de Educação Indígena na Bahia, no Mopoiba, Movimento dos Povos Indígenas na Bahia, além da implementação de Núcleos de Pesquisa em área indígena coordenado por indígenas ( já temos alguns núcleos em andamento, com projetos próprios) e a construção de uma cartografia da educação escolar indígena feita majoritariamente por estudantes e professores indígenas, que esperamos finalizar uma primeira versão, agora em 2012.
Ciência e Cultura – Na maioria dos relatos sobre a história da formação da sociedade brasileira nos deparamos com relatos de desrespeito, exclusão, apagamento e invisibilidade em relação à cultura indígena. De que maneira o Observatório trabalha a inclusão da cultura indígena em ambientes acadêmicos, com objetivo de superar essa história?
América Lúcia Silva César - Bom, primeiramente é preciso chamar a atenção para o desconhecimento sobre os povos indígenas, suas conquistas e desafios atuais. Aliás, são os próprios estudantes indígenas que nos informam sobre isso, com o olhar de quem sofre na própria pele. São casos absurdos, que falam sobre racismo e discriminações, fruto dessa história perversa de contato e colonização, que precisa ser remexida e recontada com mais vigor. Então, uma vertente do trabalho do Observatório tem sido participar de eventos culturais, acadêmicos, bem como produzir blog, site, textos em que os estudantes indígenas possam falar sobre si e sobre essas relações, e debater com os não-indígenas. Nesse sentido, as universidades que hoje têm programas de ações afirmativas, e acolhem afrobrasileiros e indígenas têm uma contribuição privilegiada em termos de aperfeiçoamento e qualidade do conhecimento que produzem, porque podem contar, no meio acadêmico, com a colaboração desses sujeitos, detentores de referências culturais e tecnológicas fundamentais para a contemporaneidade e para a remodelação do Estado brasileiro. E isso temos visto no próprio interior do Observatório. A pesquisa feita pelos indígenas, as contradições e soluções que apontam… Por exemplo, a crítica que lideranças e bolsistas fizeram às formas de se pesquisar e construir conhecimento hegemônico, calcado no isolamento do pesquisador e individualização do trabalho de pesquisa… (até as bolsas são individuais e supõem projetos e planos de trabalho individuais) nos levaram a repensar o modelo proposto para o Observatório, que chamamos “oficial” e a propor “formas locais de fazer pesquisa”, em que se privilegia o sentido de coletividade e implicação direta com a realidade pesquisada. Se isso fosse considerado seriamente pelas agências de fomento e pelos pesquisadores não-indígenas, nos conduziria certamente a formas mais criativas e eficazes de produzir conhecimento, pautada por interesses coletivos e práticas coletivas de organização intelectual.
*Carolina Filgueiras é estudante de Comunicação Social da Universidade Federal da Bahia.