Para a pesquisadora Ilka Bichara, a herança das brincadeiras das crianças constrói os adultos.
POR THAIS BORGES*
thaiiis.borges@gmail.com
Poderia o conhecido “brincar de casinha” ser uma máquina de formação de futuras donas de casa e pais de família? Ou então, brincar de pega-pega ser o ingrediente necessário para a formação de futuros vencedores dos 100m rasos? A resposta é que isso acontece naturalmente. Como explica a pesquisadora Ilka Bichara, doutora em Psicologia e professora do Instituto de Psicologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia), que estuda o tema desde 1990, brincadeiras na infância deixam uma herança para a vida adulta. “Durante muito tempo se acreditou, na psicologia, que a principal função da brincadeira seria a de treino para as habilidades futuras”, lembra. Contudo, segundo Ilka, essa crença e as teorias que a fundamentavam foram revistas, e a pesquisadora ressalta que atualmente acredita-se que o indivíduo não tem fases indissociadas na vida – todas as vivências de uma pessoa seriam, portanto, partes de um processo de formação e desenvolvimento, funcionando, logo, como esse “treino”.
“Nas brincadeiras, há negociação, exercício de habilidades sociais complexas, formação de valores e conceitos, como também há emoção”, explica. Para a professora, que faz parte do Núcleo de Pesquisa sobre Infância, Desenvolvimento e Contextos Culturais, da UFBA, as brincadeiras são vividas, e essas vivências tornam-se parte do indivíduo. Como resultado, em brincadeiras, a criança traria essas suas experiências em jogo, para uma nova interação com outras crianças, da mesma maneira que um adulto o faz na vida. “A criança não é um ser passivo que vai apenas reproduzindo aquilo que vê, pelo contrário, ela é um ser ativo, que reinterpreta e recria a realidade em suas brincadeiras e, com isso, cria cultura”, afirma Ilka.
Faz-de-conta
Não seria de surpreender se os adultos com maior criatividade fossem aqueles que mais brincaram de “faz-de-conta”, na infância. Essas brincadeiras, segundo a pesquisadora, funcionam de maneira diferente da ideia que a maioria das pessoas têm que seria uma fuga da realidade. Ilka reforça que é através do faz-de-conta que a criança tenta compreender a realidade a sua volta, assim como forma suas impressões e valores. Segundo Ilka, o faz-de-conta pressupõe criatividade e ao mesmo tempo a estimula. “A criança está sempre criando e recriando coisas. Todas as crianças brincam de faz-de-conta, porém os enredos, papéis, objetos, cenários, e diálogos variam conforme o contexto tanto físico quanto cultural”, analisa.
Brincadeiras levam à vida saudável
No hemisfério norte, o legado das brincadeiras tem sido alvo de estudos desde 1980. De acordo com um estudo da Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, publicado em 2011, adultos com um estilo de vida mais ativo e saudável tiveram uma infância repleta de brincadeiras.
Para o estudante César Rodrigues, 20 anos, as brincadeiras de corrida ajudaram-no a se direcionar para os esportes. “Eu gostava de correr, principalmente porque era rápido. Essas brincadeiras eram minhas preferidas, já que eu sempre ganhava”, lembra. Ele explica que, com o passar dos anos, a quantidade de brincadeiras foi diminuindo, mas não o interesse por atividades físicas. “Acabei canalizando para outra direção toda aquela energia que eu empregava antes, já que gostava de qualquer esporte”, diz. O jovem afirma que o destaque nas brincadeiras dava influência entre os amigos. “Estava sempre entre os primeiros a ser escolhidos [nos jogos e brincadeiras] e isso despertou um pouco de liderança em mim”, observa.
A assistente social Sandra Aguiar, 43, também acredita que as brincadeiras que envolviam atividade física fizeram com que gostasse de se exercitar. “Naquela época, podíamos brincar na rua de baleado, esconde-esconde, amarelinha, elástico e muitas outras brincadeiras que nos forçavam a se exercitar”, conta. Sandra garante que tenta ter um estilo de vida saudável, apesar da falta de tempo. “Faço minhas atividades físicas e amo, mas também procuro me alimentar da melhor forma, sem comer a tal junk food”, diz, se referindo às comidas muito calóricas e pouco nutritivas. Por outro lado, a assistente social considera que as crianças, atualmente, não aproveitam as brincadeiras como antes. “Hoje, nossos filhos ficam no Facebook, no videogame e em outras coisas que não movimentam o corpo”, lamenta.
Novos universos de brincadeiras
A pesquisadora Ilka Bichara, por sua vez, julga que as brincadeiras no ambiente virtual não atrapalham o desenvolvimento das atividades da criança. “As brincadeiras mudam, passam a ter outros conteúdos, mas continuam. Nós é que temos dificuldade em vê-las, porque são diferentes das que brincávamos em nossa infância”, pondera. Para Ilka, o ambiente virtual é um novo palco de brincadeiras, inclusive as de faz-de-conta. “Pais e educadores precisam ficar mais atentos a essa nova realidade”, aconselha.
Brinquedos da nova era tecnológica, segundo a pesquisadora, não implicam, necessariamente, na limitação da criatividade infantil, especialmente se puderem ter usos diferentes para os quais foram inicialmente projetados. “Na verdade, o que limita a criatividade das crianças não é o objeto, mas as restrições dos adultos” critica.
*Thais Borges é estudante de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo na Universidade Federal da Bahia.