Ficar em quarentena com crianças nos faz refletir sobre os sentidos do cuidar em nosso cotidiano. E, ao que tudo indica, valores como cuidado e empatia farão parte de nossas vidas pós-COVID19
POR JOANA BRANDÃO*
joanabrandao@hotmail.com
Quem assistiu “Sessão da tarde” nos anos 1990 certamente viu os filmes “Querida, encolhi as crianças” e “Querida, estiquei o bebê”. No primeiro, o pai, inventor desastrado, acaba encolhendo os filhos acidentalmente em uma de suas descobertas para um tamanho menor do que de formigas e os perde no jardim da casa. No segundo filme da série, ele transforma o bebê de dois anos, com toda sua potência destrutiva, em um gigante.
Eu não gosto de reproduzir essa normalização de pais desastrados que, em geral, traz subentendida a ideia de que as mulheres têm um alento inato para lidar com crianças e que os homens não são naturalmente tão bons assim. Como se, nós, mulheres, tivéssemos capacidades mágicas que nos fizessem trocar fraldas ou preparar mamadeiras praticamente de olhos fechados, puramente com a intuição, e não por exercícios de pensamento lógico e esforço que partem exclusivamente da necessidade.
Apesar de este luxo (leia-se privilégio de gênero/classe) do pai desajeitado estar na essência do enredo destes filmes, não consigo achar uma forma melhor de descrever o momento atual. Creio que estamos vivendo, na própria pele, o terceiro número da série e ele se chama: “Querida, me tranquei com as crianças!”.
Quem é cuidador(a) de criança e está entre paredes com estes seres energizados sabe muito bem que a tarefa é das mais desafiadoras. Por aqui em casa, às 11 horas da noite, depois de 14 horas de brincadeiras ininterruptas que envolvem intermináveis encenações teatrais, acrobacias como cabriolas e ficar de cabeça para baixo incontáveis vezes por dia, é comum ouvir : “Mamãe, eu não quero dormir, dormir é chato. A gente não faz nada quando dorme”. Depois disso, metade de mim é cansaço e a outra metade é vontade de ter esta disposição. Com meu torcicolo e lombalgia cotidianos, resta-me ver o rebento ficar com pernas para o ar nas diversas superfícies da casa – sofá, cama, chão…e torcer para que o sofá, ela e todos nós saiamos inteiros desta quarentena.
Enfim, a parentalidade é algo realmente desafiador e, nestes tempos de pandemia, como tudo, este desafio se potencializou. A máxima: “é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança” é sentida mais do que nunca. Mesmo que em nossa sociedade contemporânea tenhamos capitalizado a aldeia, no fim, a realidade é só uma: as necessidades de um ser humano em formação são imensas e diversas e demandam trabalho coletivo. E nestes tempos de quarentena, a aldeia não pode mais ser capitalizada. Não tem escola, babá, natação, musicalização, etc. Somos nós com nossos filhos dentro de casa. E esse nós, muitas vezes, é feminino.
As mulheres têm sofisticado e passado adiante a tecnologia do cuidado desde tempos ancestrais, como nos diz o ecofeminismo, não porque somos naturalmente destinadas a isso, mas porque socialmente nos é resguardado este lugar, e acabamos por aprender e entender desde cedo os sentidos do olhar, cuidar e pensar no outro, enfim, o exercício da empatia. Cuidamos do outro muitas vezes às custas de nosso próprio autocuidado, de nossos sonhos e planos. E talvez seja devido ao valor social deste exercício contínuo de empatia que os países que estão atravessando a pandemia de forma menos danosa sejam aqueles geridos por mulheres.
Assim, buscando ser um pouco útil neste momento em que o cuidado se faz tão necessário, dedico as próximas linhas para escrever dois manuais de sobrevivência com crianças na quarentena. Neles, partilho algumas dicas de coisas que têm funcionado aqui em casa com uma criança de quatro anos. Espero que ajude! Vocês encontrarão duas versões, e peço que façam um exercício de empatia de ler as duas. Se você não tem filho pequeno em casa, pule direto para segunda versão. Voilà!
Versão 1
Manual para sobrevivência na quarentena com crianças
(para famílias com comida na despensa)
Se você tiver o que dar de comer para suas crianças, tiver celular ou computador com acesso a internet em casa, então este manual pode ser útil para você. Ainda assim recomendo a leitura da segunda versão, sua leitura pode ser útil para outras famílias.
1 – Desista dos seus planos de produtividade! Lembre-se que em tempos de calamidade o mais importante é permanecer vivo e em segurança. Se você precisar de inspiração, vá no Instagram de Paula Lavigne e veja Caetano Veloso comendo paçoquinha na paz de odara!
2 -Lembre a criança que a quarentena vai acabar e faça planos! A saudade dos parentes e amigos pode ser ressignificada se você lembrar as crianças que vocês vão reencontrar os amigos em passeios no parque, na praia, no shopping. As crianças vão lembrar com alegria desses planos quando a quarentena acabar – e um dia ela vai!
3 – Manuais na internet podem ser muito mais que abas abertas em seu celular e computador. Alguns podem ser de fato úteis! Sem muitas cobranças, se arrisque a ler e aplicar alguns deles no cotidiano. Desde de dinâmicas de teatro com crianças, a como fazer massinha com farinha de trigo, há varias dicas que podem render programas divertidos entre quatro paredes.
4 – Recicle! As crianças vão se cansar de seus brinquedos e provavelmente vão reciclar alguns elas mesmas depois de quebrá-los, e nesta quarentena haverá oportunidade e energia para quebrar muitos. Então, aprenda a lição e se volte para fonte interminável de brinquedos que você produz todo dia em casa: seu lixo reciclável. Embalagens de café, biscoitos, garrafas pet, rolos de papel higiênico e de papel toalha, caixa de ovos são matérias-primas fantásticas para várias artes. Você verá que dá para fazer muita coisa sem precisar ter uma papelaria em casa!
5 – Assista filmes com as crianças! Se você normalmente controla o tempo na tela, na quarentena este controle irá se relaxar um pouco. Não morra de culpa por isso, e aproveite para ver filmes infantis junto com a prole! Desenhos animados podem ser relaxantes e alguns ainda possuem belas mensagens. Além de tudo, é uma ótima maneira de incentivar a criança a ver aquele desenho mais didático que você tenta convencê-la a tempos a ver sem sucesso!
6 – Cozinhem juntos! Integrar as crianças nas atividades da casa nem sempre é possível. Mas, de longe, cozinhar é a atividade preferida delas. Faz uma meleira, mas é educativo e sensorial. Pode até dar um empurrãozinho para as crianças provarem novos sabores. Coloca essas mãozinhas para amassar o pão!
7 – Plantem! Pode ser feijão, uma muda de alho ou de manjericão, pode ser batata, cenoura ou cebola! Maior parte da comida em sua geladeira pode virar uma planta! Se não tiver terra, coloque a muda na água em uma garrafa vazia e espere a raiz sair. Serão cinco minutos de distração todo dia conversando com as mudinhas. Qualquer minuto de tranquilidade vale ouro nestas condições!
8 – E, por último, mas não menos importante, aprenda com as crianças a aproveitar o momento! Embora elas possam estar estressadas com o que está acontecendo e até ter incorporando o vocábulo “coronavírus” em suas brincadeiras, certamente não estão preocupadas com o futuro do país, da humanidade, nem quando, como e se o mundo voltará a ser como antes. As crianças têm habilidade nata de ressignificar experiências e de viver o presente. Então aproveite a companhia delas como a melhor terapia neste período de incertezas. Elas produzem pílulas de sabedoria no meio de um mar de gritaria e bagunça!
Versão 2
Manual para sobrevivência na quarentena com crianças
(para famílias com comida na despensa)
Se você não tiver o que dar de comer para suas crianças, não tiver celular ou computador com acesso a internet em casa, então provavelmente você não estará lendo este texto. E realmente eu não saberia o que escrever para você. Eu não tenho a mínima ideia do que dizer para alguém que está com um filho passando fome em casa. Meu conhecimento, minha educação, minhas palavras sofisticadas de nada servem para aplacar um injustiça desta proporção. Portanto eu falo para você, que tem comida na despensa, e pode fazer algo por quem não tem e não está lendo este texto.
Nenhuma mãe deveria jamais ver um filho sentir fome. Em uma terra que “em se plantando tudo dá” essa deveria ser nossa máxima. E foi um dia. Lembram do lema “Brasil sem fome”? Ele surtiu efeito e implantamos uma tecnologia social reconhecida internacionalmente na erradicação da pobreza que tirou o Brasil do mapa da fome, o Bolsa Família. E esta tecnologia pode ser o caminho das pedras para ajudar as famílias em situação de vulnerabilidade social neste momento de crise.
Carolina de Jesus, escritora negra, catadora de papel, que criou três filhos sozinha em uma periferia em São Paulo na década de 1950, escreveu em seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada: “É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la (…) A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”
Então, se você leu este manual até aqui, provavelmente você, assim como eu, não tem a fome como professora. Mas, ainda assim, pode ter empatia e ajudar quem está com as crianças em casa e não tem farinha de trigo e óleo sobrando na despensa para fazer massinha.
Diversos projetos sociais estão trabalhando para dar cesta básica para famílias de baixa renda. Procure organizações da sociedade civil do seu bairro, da sua vizinhança, do seu estado, e contribua de alguma forma!
Se você não sabe quem ajudar, apresento duas organizações que trabalham com povos indígenas. Muitos indígenas dependem da venda de seus artesanatos e outros precisam ir às cidades para vende-los e adquirir suprimentos. Com a pandemia, eles estão impedidos de trabalhar pois têm permanecido nas aldeias para não se contaminarem na cidade. Os indígenas superam epidemias desde a chegada dos portugueses nestas terras. Vamos apoia-los para superar mais uma. Você pode ajudá-los através destes links:
1) A Articulação de Povos Indígenas do Brasil está realizando uma campanha para arrecadar verbas que serão destinadas para compra de alimentos e remédios para aldeias indígenas.
2) O Instituto Socioambiental fez uma lista das campanhas realizadas pelos povos indígenas, que pode ser vista aqui!
Vamos exercer esta tecnologia social feminina ancestral e cuidar uns dos outros. Ao que tudo indica, ao sairmos dessa, vamos incorporar valores como cuidado, amparo e empatia em nosso cotidiano. Ao conhecimento ancestral feminino está resguardado o futuro da humanidade.
*Joana Brandão é jornalista, cineasta e educadora. Sempre sonhou em vivenciar um momento histórico importante para humanidade. Só não pensou que seria agora e trancada na própria casa. Escreve a coluna “Crônicas do fim do mundo” para a Ciência e Cultura sobre implicações socioculturais da pandemia global pelo Covid-19.