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Atualizado em 14 DE abril DE 2013 ás 18:14

Diário de estrada: Elos de dor e solidariedade

“Se a gente morre, o gado também morre, e vai se fazer o quê?”, diz seu Sabino, com os olhos lacrimejados e a voz rouca, com a dor das perdas.

POR LILIANA PEIXINHO*
lilianapeixinho@gmail.com

A Indústria da Seca caminha no sentido contrário ao discurso da sustentabilidade, propagada em campanhas publicitárias, veiculadas na mídia, até enjoar de tanto repetir. O problema da falta d’água é sério e está atrelado a valores profundos, contextualizados em ações de infraestruturas para manutenção da vida. Na Bahia chove propaganda sobre projetos ditos sustentáveis, apresentando cenários de comunidades produzidos sob a fantasia da felicidade. Mas, nas estradas, de asfalto ou barro, Sertão adentro, observamos claramente a desconexão entre a fama da “Terra da Felicidade” e o que vimos, na realidade, lastreada na vida do povo, que apesar de sofrer muito, parece abnegar-se à dor.

Doenças acometem as crianças, a gravidez precoce é recorrente entre as adolescentes ( e avós passam a ser mães de novo) e o consumo exagerado um problema entre muitos. Há pessoas com antena parabólica, mas sem cisterna. Jovens com moto, carro, roupas de grife e sem informação básica sobre os perigos de embriaguez ao volante, uso do capacete e celular enquanto dirige, etc.

Nas estradas, quilômetro a quilômetro, percebe-se uma tradição brasileira de homenagear seus mortos em acidentes. Uma série de fotos mostra centenas de carneirinhas com cruz de ferro ou madeira, feitas por familiares em homenagem a filhos, mães, pais, sobrinhos, avós, e demais parentes mortos violentamente nas estradas. São evidencias em um curto espaço geográfico, entre os municípios de Adustina, Monte Santo e Euclides da Cunha, Bahia.

A dor da perda de familiares é refletida na beira das estradas com essas carneirinhas de cruzes. Foto: Liliana Peixinho.

A dor da perda de familiares é refletida na beira das estradas com essas carneirinhas de cruzes. Foto: Liliana Peixinho.

Tristeza familiar

Na roça do seu Sabino Ferreira 80, e dona Iracema, 79, na Passagem Velha (BA), das 20 cabeças de gado que produziam 50 litros de leite para consumo e renda complementar, seis morreram logo nos primeiros meses e outras foram vendidas para comprar ração e alimentar as que restaram dessa histórica seca, intensificada  desde o início de 2012. Com uma aposentadoria de cerca de 600 reais seu Sabino não consegue mais pagar o trabalhador da roça, não pode comprar água de carro-pipa – vendida a cerca de R$200 reais, e a feira semanal não contempla a necessidade alimentar em frutas, legumes, peixe, leite e cereais. Falta dinheiro até para os remédios que ajudam no controle do colesterol e no tratamento de doenças cardiovasculares.

A esposa de Seu Sabino, apesar dos quase 80 anos, não é aposentada, e as dificuldades são muitas para dar conta sozinha de todos os afazeres domésticos. Mas foi assim a vida toda de casada, na qual teve sete filhos e os cinco que sobreviveram foram criados com muita luta.

Logo que levanta, de noites mal dormidas, dona Iracema molha sua horta, os pés de pinha, mamão, laranja, coco, e o frondoso abacateiro – no qual armava uma renda à sombra e agora fixa o olhar triste porque a  árvore está totalmente morta pela seca. Os netos e bisnetos, que sempre frequentaram os quintais da casa, não têm mais graça para brincar. Vidas vão sucumbindo aqui e ali e a gente ouve coisas assim: “Se a gente morre, o gado também morre, e vai se fazer  o quê?”, diz seu Sabino, com os olhos lacrimejados e a voz rouca.

Solidariedade coletiva

Seu Raimundo sofre com problemas de articulação, anda com um cajado. Leva mais de meia hora para andar uns dois quilômetros até a casa de amigos, como dona Iracema, onde ele vai quase toda tarde tomar um cafezinho, fumar um cigarro de palha, jogar dominó e atualizar as novidades alimentar as esperanças sobre a chuva. Sempre chega com algo nas mãos, seja um fósforo, uma tapioca ou uma muda de planta para presentear a amiga Iracema, pessoa de muito carinho e atenção para ouvir cada um que lhe chega.

Seu Raimundo também é desses bons conselheiros e contador de histórias. Adora servir é gentil, tanto é que deixou o menino Luquinhas subir no pé de acerola e encher uma sacola para levar aos seus irmãos.  Luquinhas foi só felicidade. E seu Raimundo adorou porque dias depois, com o Sol muito forte, o pé carregado de acerola ficou pelado, sem nada e do chão quente era impossível catá-las.

Recomeço constante

Os vizinhos de roça de seu Sabino, Seu  Raimundo, 76, e seu Boanerges, 72 anos, são como anjos guerreiros, de fé, luta, amor e respeito. Seu Boarnerges já fez diversas cirurgias e como  bom conhecedor de ervas medicinais, usa muitas delas para se tratar. Ele cultiva uma horta com couve, espinafre, coentro, cebolinha, alface e outras folhas.

Seu Boanerges. Foto: Liliana Peixinho.

Seu Boanerges. Foto: Liliana Peixinho.

No mês de janeiro, em plena seca, a horta dele se acabou porque as vacas, doidas de fome, pisaram em todos os pés plantados sem nenhum agrotóxico. Mas ele não desistiu e replantou tudo, semente por semente, muda por muda.

O dinheiro que tira das hortaliças, porém, não cobre à ida à cidade para vender o que colheu. O que salva mesmo, segundo ele, é o dinheiro da aposentadoria que recebe. Com ela, ajuda uma renca de filhos, netos e sobrinhos. Além, claro, de poder contar com os bons amigos que o cercam. Além de dona Iracema e Seu Sabino, seu Boanerges é muito querido por Cácio, seu Raimundo e seu Arnou.

Seu Raimundo, seu Sabino, dona Iracema: vizinhos solidários. Foto: Liliana Peixinho.

Seu Raimundo, seu Sabino, dona Iracema: vizinhos solidários. Foto: Liliana Peixinho.

De coração mole e cultivador de boas amizades, seu Boanerges é um dos primeiros moradores da Passagem Velha. Conhece tudo: as histórias de cada roça, de quem era, de que tamanho, quem comprou de quem, quem morreu, quem casou, separou. Ele também ajuda muita gente e anda com a disposição de uma criança, querendo explorar espaços.

Comida regrada

Dona Vanda Maria Macedo, 48 anos, já saiu da Bahia para São Paulo com o objetivo de dar suporte à gravidez de filha de 19 anos, que saiu da roça para tentar um trabalho na grande metrópole brasileira. Ela ficou em no Sudeste de dezembro a março e teve que voltar para Euclides da Cunha para cuidar dos outros filhos.

Desempregada, ela regra o que ganha do Bolsa Família. São dois quilos de feijão, um quilo de arroz, dois quilos de açúcar, um litro de óleo, dois quilos de farinha, dois pacotes de fubá, rigorosamente dosados para durar duas semanas. A família é numerosa e não tem outros complementos alimentares nos quintais, como pés de frutas, legumes e hortaliças, por falta de água.

Alegria com pouca coisa

Dona Vanda me serviu um cafezinho muito do bom e eu agradeci oferecendo um pacote de milho de pipoca, que pedi as crianças para pegar no banco de trás do carro. Eles pegaram o pacote de milho como um tesouro e saíram correndo para casa, onde pediram à mãe para fazer a pipoca – na casa de dona Vanda não tinha gás e demoraria muito para acender o fogo de lenha.

Rudinei dos Santos Lima Costa, tem 10 anos e está na quarta série, já o seu irmão, Anderson, o Andinho, tem 12 e cursa a sexta. Os dois adoraram a novidade. E sentados no sofá eles comiam a picopa e me contavam como faziam para chegar até escola. Rudinho, o mais novo, vai de perua até a Lagoa do Saco, enquanto Andinho segue até Currafaço num ônibus da prefeitura que passa de casa em casa. Ele estuda na Escola Professora Alice Tereza dos Anjos, em Euclides da Cunha, há cerca de 30 quilômetros da roça onde mora.

Mesmo nesse cenário de desafios, os meninos são encantadores, rápidos, sem preguiça para o fazer. Foi  uma tarde de muito aprendizado para todos. Ambos adoraram um rápida oficina de fotografia e aprenderam tudo muito rápido. Fizeram até foto de Dona Vanda me mostrando as cisternas vazias e me servindo um cafezinho na varanda da casa.

Dona Vanda serve café à jornalista Liliana Peixinho. Foto: Rudinho (Rudinei) e Andinho (Anderson).

Dona Vanda serve café à jornalista Liliana Peixinho. Foto: Andinho (Anderson).

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* Liliana Peixinho é jornalista, especialista em  Jornalismo Científico e Tecnológico, com atuação em Mídia, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ativista socioambiental, fundadora dos Movimentos Amigos do Meio Ambiente (AMA) e Rede de Articulação e Mobilização Ambiental (RAMA).

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