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Atualizado em 13 DE abril DE 2013 ás 18:16

Diário de estrada: Seca, fome, fé e resistência

Na série especial Sertão Adentro, relatos evidenciam a dificuldade de sobrevivência dos sertanejos, por meio de atividades como a venda de frutos à beira das estradas.

POR LILIANA PEIXINHO*
lilianapeixinho@gmail.com

Produtos como umbu, mel, castanha, manga, jaca, aipim, mamão, pinha, coco, banana, jaca, abóbora, ajudam as famílias do semiárido nordestino a enfrentar o desafio do desemprego, da falta de renda. Com o comércio desses itens na beira das estradas, anseiam por alguns trocados.

As lavouras de feijão, mandioca e milho, agricultura básica dos sertanejos, viraram palhas há muito tempo. Hoje servem para dar de comer aos animais que ainda resistem à estiagem. Na roça do pequeno agricultor Jaime dos Anjos, 51, em Bebedouro, as poucas cabeças de cabras que conseguiram sobreviver disputam restos de pasto e um arbusto, a jitirana – planta típica da caatinga.

Sem emprego ou sem comida; doentes e sem cuidados médicos, algumas famílias tentam sobreviver com o benefício da política do governo, num ciclo perverso de conformidade.  O sistema é burocrático e cheio de arranjos associativos. E quem não tem acesso a um ou outro auxílio vai para as estradas driblar os carros, em pistas perigosas, para abordar passageiros, vendendo o que deveria estar comendo.

Arriscando a vida

Próximo à cidade de Cansanção, Bahia, avistei uma menina na beira da estrada com uma vasilha na cintura. Fiz a manobra com o carro na pequena faixa estreita, parei e fui conversar. Rosa Maria, 14 anos, fica na pista o dia inteiro com um balde de umbu, se arriscando entre os carros, entre uma pista e outra, para tentar arranjar algum dinheiro.  Rosa vende o litro do umbu a R$ 0,60 centavos (sessenta centavos). Ela acorda bem cedinho; com as galinhas, como se diz na roça. Pegar os umbus que caíram durante a noite, cata um por um, mas só se não tiverem rachados com a queda. Quando isso acontece precisa tirá-los no pé, se arranhando entre os galhos. No final do dia, com muita sorte, Rosa diz que pode arrecadar entre sete e 10 reais. O suficiente para os pais comprarem comida para os seis irmãos, todos pequenos.

Menina vende umbu nas estradas em busca de alguns trocados para a família. Foto: Liliana Peixinho.

Menina vende umbu nas estradas em busca de alguns trocados para a família. Foto: Liliana Peixinho.

Via crucis em busca de água

Encontrei seu Elísio Ferreira Costa de 58 anos na beira da estrada, perto do Povoado de Coité, nas proximidades de Tucano (BA). Ele tocava o gado em sol a pino. Parei o carro no acostamento, do outro lado da pista, e dei boa tarde. Ele respondeu de pronto: “Boa”!  Perguntei se o gado já tinha bebido água. Ele disse: “tou voltando agora, mia fia, de um pocinho que descobri lá na frente”.

Carroça leva água de casa em casa. Foto: Liliana Peixinho.

Carroça leva água de casa em casa. Foto: Liliana Peixinho.

Perguntei há quanto tempo estava andando e ele disse que tinha saído com o sol nascendo de um lugar chamado Cajueiro, perto de Coité. Então o senhor andou bastante né seu Elísio?  “Andei uma légua (seis quilômetros) procurando água e agora tô voltando pra casa”. É que na roça de seu Elísio não tem água desde o início de 2012 e as poucas chuvas que caíram não foram suficientes para encher os tanques naturais, cavados no próprio solo.

A cara de seu Elísio é de um homem guerreiro, sem fastio. Demonstra que não lhe falta coragem. Até tenta sorrir para a foto. Meio sem jeito, encabulado, retribui a confiança. É casado com dona Berenice de 44 anos. Seu filho Marcos, 24 anos, é locutor de uma rádio e Joaquim, 17, trabalha na roça tirando coco. “Agora está difícil com a seca”, diz seu Elísio sobre o a dificuldade que leva um dos seus filhos a tentar fazer “bico” de pedreiro na cidade.

Estradas e perigos

Seu Elísio é desses homens de fé, que crê na labuta como forma de enfrentamento aos desafios como a seca. Ele aprendeu com a vida que não tem porque desistir. Não existe cansaço que o impeça de andar tanto para procurar água e saciar a sede das poucas cabeças de gado que restaram de sua humilde criação.

Seu Elísio, na estrada, guia as poucas cabeças de gado que resistiram à estiagem. Foto: Liliana Peixinho.

Seu Elísio, na estrada, guia as poucas cabeças de gado que resistiram à estiagem. Foto: Liliana Peixinho.

Dele, fica o exemplo de fé e resistência de um guerreiro do sertão. Na conversa de beira de estrada me alertou sobre riscos de assalto, me dizendo que ali mesmo onde eu parei o carro, uma mulher tinha morrido há tinha pouco tempo, vítima do crime.

Seu Elísio sabe das coisas porque ele vai para a estrada todos os dias fazendo percursos longos, vendo tudo o que se passa nas estradas, de cedinho à tardinha. Claro que dei importância a aviso de seu Elísio, mas não antes de terminar a prosa sobre os seus desafios diários. Tempo depois, pra não atrapalhar sua ida, cansada, nos despedimos com um “fica com Deus”, de ambas as partes. Agradeço o carinho, a atenção, o cuidado, e sigo viagem.

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* Liliana Peixinho é jornalista, especialista em  Jornalismo Científico e Tecnológico, com atuação em Mídia, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ativista socioambiental, fundadora dos Movimentos Amigos do Meio Ambiente (AMA) e Rede de Articulação e Mobilização Ambiental (RAMA).

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