Pesquisa de doutorado revela como os Tupinambás de Serra do Padeiro têm utilizado seu próprio sistema de ensino para se defender em meio aos conflitos agrários do litoral sul da Bahia
POR GIOVANNA HEMERLY*
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Foi ao som de um canto forte, guerreiro e dos agitos dos maracás adornados com pinturas tradicionais indígenas que os Tupinambás da Serra do Padeiro abriram os caminhos para a defesa da tese de doutorado de Nathalie Le Bouler Pavelic, pesquisadora francesa do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB/UFBA) e do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Pós-Cultura/UFBA). E, como se diz, onde toca a força dos encantados, tudo flui, nem o limitado horário de funcionamento da UFBA durante o período de recesso, consequência dos cortes de mais de 50 milhões anunciados pelo Ministério da Educação no ensino superior neste ano, foi o bastante para atrapalhar a defesa pública da tese que aconteceu durante toda a tarde desta quarta-feira, 10.
Partindo de uma abordagem antropológica e etnográfica, a tese Aprender e Ensinar com os Outros: A Educação Como Meio de Abertura e de Defesa na Aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro, não se trata apenas de mais um trabalho sobre os Tupinambás, mas sim uma pesquisa feita com os próprios Tupinambás. “Eu tentei fazer com que a teoria estivesse a serviço da própria etnografia”, disse Pavelic enquanto mostrava os mapas elaborados com o auxílio dos habitantes da comunidade e as fotos tiradas durante o período de sua pesquisa de campo.
O doutoramento, que aconteceu sob regime de cotutela entre a UFBA e a L’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), da França, possibilitou a Nathalie Pavelic analisar as particularidades do sistema educacional indígena em Serra do Padeiro e como este tornou-se uma ferramenta fundamental na defesa da própria aldeia diante da violação de direitos cometidos tanto por parte de latifundiários da região, como pelo próprio Estado. “No argumento da tese, estou mostrando que a aldeia transmite seus ensinamentos no decorrer da luta pelos seus direitos, configurando assim um modelo educativo que talvez poderia ser expandido para fora das fronteiras da própria aldeia, claro que a partir de outros parâmetros a depender do contexto em questão”, afirmou a pesquisadora.
Além das análises sobre o ensino escolar indígena, a pesquisadora pode registrar também, através de um importante trabalho de memória oral, a linha histórica do ensino dos Tupinambás de Olivença, desde o momento anterior ao projeto de educação na aldeia até os dias atuais. “A gente nunca nem pensou que em alguma fase da nossa vida teríamos isso por escrito. A gente só faz, a gente deixa que a vida, ela mesma, os ventos, as folhas, a terra registrem. Mas nunca ia imaginar que uma pessoa ia chegar de tão longe, trazida pelos ventos, pelas marés, pelas águas, pela chuva, e ia transformar isso numa escrita”, disse Célia Tupinambá, professora do colégio da comunidade de Serra do Padeiro e membro da ONU mulheres. Para ela, o trabalho de Nathalie trouxe à luz aspectos culturais do povo indígena que possibilitará um maior entendimento sobre a etnia, até mesmo para os próprios Tupinambás. “Vendo hoje o trabalho de Nathalie que eu fui perceber o quanto a nossa luta é árdua para ter uma qualidade de vida, uma educação e muitas coisas que a gente precisa”.
Um território, vários conflitos - Apesar da permanência de longa data da aldeia no litoral sul baiano e de toda documentação histórica relacionada, foi apenas em 2002 que os Tupinambás de Olivença passaram a ser reconhecidos oficialmente como etnia indígena pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Antes deste reconhecimento, a etnia era dada como extinta desde o século XVIII e os Tupinambás de Olivença eram tidos apenas como caboclos ou pardos, consequência de um processo de apagamento histórico da identidade e da cultura desse povo. A demora no reconhecimento apenas fortaleceu a violência e desapropriação contra os habitantes de Serra do Padeiro, já que estes não tinham também nem seus direitos indígenas reconhecidos pelo poder público.
Suas terras, situadas na região da Mata Atlântica, há alguma distância da cidade de Ilhéus, são há tempos alvo de cobiça dos latifundiários que alimentam os conflitos da região com ameaças, ataques, expropriações e massacres. Há pelo menos 15 anos os Tupinambás de Olivença brigam na justiça pelas áreas que já foram demarcadas desde 2009 pela Funai, mas que até hoje, dez anos depois do início do processo de delimitação, o caso ainda permanece sem resolução.
Enquanto isso, as ameaças de expropriação das terras têm se intensificado, não apenas com a expansão do agronegócio, mas também com o crescimento do comércio de minério e do turismo na região. “Agora os Tupinambás estão sofrendo ameaças com mais dois projetos, o da criação do Porto Sul, que faria o transporte de minério de ferro, e também o projeto de criação de um grande resort. Com esses dois projetos, se de fato acontecerem, irão interditar parte do litoral e vão acabar com os manguezais, modificando a vida tradicional, a pesca e o acesso ao lugar dos rituais”, explicou Pavelic.
Surgimento do projeto educacional - Diante dos conflitos fundiários, as estratégias de reorganização na comunidade dos Tupinambás é uma constante, faz parte do desafio de resistir e sobreviver em uma área onde, não raramente, as disputas por terra resultam em torturas e massacres. Nas últimas décadas do século XX, os anciões da Serra do Padeiro passaram a buscar alternativas para que os jovens da aldeia pudessem ter acesso a algum tipo de educação. “A gente fez um trabalho sobre a memória oral, para buscar entender a preocupação dos anciões com a educação dos seus descendentes, e assim com o futuro da comunidade para não perder seu território”, explicou Nathalie Pavelic.
O trabalho de campo levou Nathalie até a história da família de Célia Tupinambá, professora do colégio da comunidade de Serra do Padeiro e membro da ONU mulheres. “O pai do pajé da comunidade, antes de falecer em 1981, pediu para a mãe de Célia, dona Maria, reunir três dos seus netos dizendo que um deles, que hoje é o atual diretor do colégio indígena, ia ter que estudar bastante porque teria uma missão muito importante na comunidade, enquanto o outro teria que estudar o suficiente para preservar a floresta, coisa que ele faz até hoje”, relatou a pesquisadora. Para o terceiro menino, não havia sido dado na época uma missão específica, mas foi alertado de que deveria estudar também pois seria importante na defesa da aldeia. Hoje, este é conhecido como Cacique Babau, uma das principais lideranças indígenas, não só de Serra do Padeiro, mas do Brasil.
Contudo, de acordo com a Nathalie, a missão deixada para dona Maria não foi tarefa fácil. Na época a educação formal não tinha lugar central na formação da aldeia, então a saída foi levar os netos para aprenderem por meio do ensino tradicional não indígena, até que pudesse desenvolver um projeto de ensino dentro da própria comunidade, o que mostrou ser desde o início um grande desafio. “Em um dos capítulos da tese eu mostro o movimento que dona Maria fez para que houvesse uma escola mais perto dos meninos. Porque mesmo que hoje a gente considere que as escolas são perto, na verdade ainda são distantes, ainda mais levando em conta que a região é de chuva, não havia meio de transporte, então era super difícil se deslocar”, relatou.
Inicialmente, a educação escolar indígena era realizada em casa ou improvisadas em armazéns de cacau, casas de farinhas ou debaixo de pés de manga. Com o tempo, o projeto foi se desenvolvendo e ganhando dimensões que trouxeram grandes transformações nas vivências da comunidade. Assim como Cacique Babau e seus irmãos, as crianças alfabetizadas na época na escola fundada por dona Maria são hoje as principais lideranças na defesa da Serra do Padeiro.
A luta continua - Nos dias atuais, os núcleo escolar criado por dona Maria, assim como os outros que sucederam, continuam assumindo sua função social no projeto de defesa da comunidade, sendo que a educação diferenciada proporcionada pelo ensino indígena segue sendo não só uma questão de adaptação, mas também de sobrevivência. De acordo com as observações de Nathalie Pavelic, durante a pesquisa de campo, além de viabilizar a alfabetização dos jovens da aldeia, as escolas indígenas promovem estratégias de aliança, autoafirmação étnica, visibilidade, conhecimento da própria cultura e de seus direitos. “Além da função de ensinar, essa educação é percebida como estratégia de resistência, permitindo lutar pelo seu direito à identidade, à terra, à saúde e a qualquer outro tipo de direito que se tenha”, afirmou a pesquisadora.
E diante das situações de descaso e de violações, também cometidas pelo próprio Estado, outra estratégia de resistência da comunidade indígena tem sido o desenvolvimento da autonomia de seu sistema educacional. Sem a assistência necessária em infraestrutura, que deveria ser fornecida pelas instituições governamentais, os Tupinambás passaram a encontrar por si mesmos meios de garantir o mínimo de funcionamento para o seu projeto. Contudo, a interferência do Estado ainda está presente no sistema educacional indígena, mas de forma que afeta justamente questões que envolvem essa autonomia desenvolvida. “Esse mesmo Estado que é omisso nas garantias das condições materiais para a implementação dessa educação escolar é quem quer intervir, discutir a questão dos conteúdos, dos horários, não respeitando a própria autonomia da comunidade”, explicou Nathalie Pavelic.
Ela ainda lembra que o modelo de núcleos educacionais distribuídos ao longo do território indígena, estratégia dos Tupinambás para garantir o acesso ao ensino para o maior número de pessoas, é frequentemente rejeitado pelo governo. “O modelo de colégio único que o próprio governo do estado queria já foi contestado desde o início pelos próprios Tupinambás, pois num território de 47 mil hectares, um colégio único não poderia atender de jeito nenhum as suas demandas”.
A tentativa do Estado em aplicar o modelo tradicional de ensino, não respeitando a cultura indígena, entra em conflito também com a própria forma de organização e gestão das escolas que acontece de forma singular, sendo feita em parte pelos indígenas e em parte pelos encantados. A pesquisadora explica que apesar da complexidade de conceituar quem são os encantados, pode se dizer que estes seriam entidades místicas que assumem o papel neste caso de agentes educativos. No entanto, em outras pesquisas realizadas, as entidades também são responsáveis pela organização sociopolítica das aldeias, já que na cultura dos Tupinambás a espiritualidade tem um papel fundamental. “Eu vejo eles [os encantados] na tese como agentes educativos. Em outros trabalhos, eles foram vistos também como agentes políticos, sendo que participavam também do processo de retomada das terras e de toda organização sociopolítica da comunidade”.
Educação duplamente diferenciada - Uma outra característica, que Nathalie Pavelic diz ter chamado sua atenção, durante sua pesquisa de campo, foi com relação à abertura do ensino Tupinambá para integração com indivíduos não pertencentes à comunidade. “Outra particularidade é o que eu chamo de educação duplamente diferenciada, porque é uma educação escolar indígena, mas que também acolhe os não indígenas da região”. Em sua maioria, as crianças e adolescentes que não são da aldeia são filhos de trabalhadores rurais e sem terras que, assim como os indígenas, encontram-se em situação de violação de direitos. “Eles [os Tupinambás] poderiam dizer ‘afinal a gente lutou tanto para ter essa escola então vamos ficar só entre a gente’, mas não, eles compartilham ainda com esse ‘outro’”.
Pavelic ressalta que, diferente do que acontece nas escolas de ensino tradicional, o ensino na escola indígena não obriga crianças não indígenas a seguirem seus costumes. Isso se deve em parte pelo objetivo de aliança com grupos sociais não indígenas da região, mas também do compromisso com a promoção do respeito e da coletividade, valores arraigados na cultura Tupinambá. “É uma estratégia de luta, mas ao mesmo tempo uma partilha generosa. Não se trata apenas de ensinar ao outro a quebrar com o preconceito ou então tornar um grupo a favor de uma luta, mas de uma partilha generosa”, afirmou.
Deste modo, a pesquisadora pôde perceber que, por meio desta abertura do ensino para pessoas não indígenas, a organização educacional promovida pelos Tupinambás, garantem o acesso à educação às áreas no qual o Estado é omisso. “Com o mapa construído, a gente mostrou todas as linhas de ônibus do colégio e o que os Tupinambás fazem para ir buscar e levar esses meninos para poder ir estudar, já que as municipalidades não fazem, mostrando inclusive a atuação dos próprios Tupinambás da Serra do Padeiro para com esse outro. Diante dessa situação, eu quis mostrar também como a comunidade se organizou para substituir esse Estado”, reforçou Nathalie.
*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA.