Apesar das conquistas promovidas pelas ações afirmativas que garantem o acesso da população indígena nas universidades, as condições de permanência podem ser um empecilho para que esse grupo continue desenvolvendo os estudos e possa manter a sua cultura
POR BEATRIZ BRAGA, ESTHER SANTANA R NAYRA LIMA*
agenciamulticiencia@gmail.com
Apesar das conquistas promovidas pelas ações afirmativas que garantem o acesso da população indígena nas universidades, as condições de permanência podem ser um empecilho para que esse grupo continue desenvolvendo os estudos e possa manter a sua cultura. A lei nº 12.711/2012, aprovada e sancionada pela ex-presidente da República, Dilma Rousseff, busca garantir a reserva de vagas nas instituições de ensino superior, mas pouco se pensou sobre como esse estudante poderia garantir sua autonomia nesse espaço que, predominantemente, impõe um modelo eurocêntrico de aprendizado. Com o objetivo de trazer essas discussões e garantir a integridade intelectual e cultural dessa população, foi realizado o 2º Encontro de Estudantes Indígenas, da Universidade do Estado da Bahia, entre os dias 26 a 28 de maio em Juazeiro, que socializou temáticas como o direito à comunicação, a partir de experiências inovadoras, como a Rádio Yandê, e a participação das mulheres no movimento indígena. Num momento em que as novas tecnologias surgem como um mecanismo de interconexão entre os meios, a comunicação tornou-se uma ferramenta ágil para comunidades tradicionais indígenas na produção de conteúdo independente. Para os estudantes, desenvolver produtos etnomidiáticos se tornou um importante agente na construção desses conteúdos, pois, além de abrir canais de diálogos e ser fonte de informação, também fortalece a identidade cultural desses povos, valorizando a tradição oral e dando visibilidade aos discursos e práticas.
A rádio Yandê, fundada em 2013 no Rio de Janeiro, é a primeira web rádio indígenas do Brasil, desenvolvido com esse conceito de produto etnomidiático. Comunicação colaborativa composta por 174 indígenas, a proposta da programação é difundir a cultura e tradição dos povos tradicionais por uma ótica de pertencimento de fala. A rádio já registrou mais de 1 milhão de acesso de ouvintes no mundo. Para o coordenador da Rádio Yandê, Anapuakua Tupinambá, que participou da mesa redonda sobre “O direito à comunicação”, uma das características de produção é estimular a autonomia no processo de produção. “A gente tem que construir primeiro as nossas pautas com nosso próprio olhar. Sem intervenção do outro, é assim que começa o processo de construção da etnomídia indígena. É a comunicação feita com seu próprio olhar, respeitando a diversidade ética,” explica Anapuakua. Para o Anakapua a comunicação precisa atender a diversidade étnica, respeitar o ouvinte e discutir temas que são do interesse das comunidades indígenas, como a demarcação de terra. “Nós não tratamos o nosso ouvinte, o nosso leitor e espectador como massa. Tem que respeitar a diversidade étnica, social, plural, de gênero, é assim que trabalhamos”. As mulheres no movimento Indígena – “Pobre, indígena e mulher”. Foi assim que Vanessa Truká iniciou sua fala durante a apresentação na palestra sobre a importância das mulheres no movimento indígena. A enfermeira, que mora atualmente no Mato Grosso, milita pela saúde da mulher indígena. Na sua pesquisa sobre o câncer no colo de útero, Vanessa verificou que as taxas de acesso das mulheres indígenas ao exame e tratamento da saúde feminina são extremamente baixas. Outro fator é que a saúde dessa população tem suas particularidades e exige uma atenção básica distinta devido ao contexto cultural de cada povo indígena. “Nós mulheres indígenas deveríamos procurar saber mais e cobrar as políticas públicas para esse atendimento e não podemos generalizar a saúde da mulher para todas as mulheres, disse Vanessa.
Atuante na área de fronteira entre o estado do Mato Grosso e a Bolívia, Vanessa, que também é jovem liderança das Organizações das Nações Unidas (ONU), comenta as situações de machismo que presencia. A ativista explica que, no contexto histórico do povo boliviano, é bem comum que a mulher ainda apanhe do marido, ou se alimente depois dele ou dos convidados. Para que haja uma mudança nesse cenário, a militante afirma que as mulheres devem ocupar mais espaços de liderança para garantir políticas públicas. Para Célia Xacriabá, coordenadora de Educação Indígena do Estado de Minas Gerais, o machismo chega com a cultura do colonizador, no contexto não indígena. Mas o feminismo também. De acordo com ela, se alguma das mulheres do movimento feminista chegassem na aldeia para falar sobre liderança, iria achar um absurdo não ter mulher nessa posição. A professora explica que existe culturalmente o patriarcado e o matriarcado nas comunidades indígenas. “Se o feminismo “branco” chega nesse contexto, não vai entender essas relações”. Além disso, os hábitos praticados pela cultura indígena, buscam evidenciar valores comuns a cada povo. “A questão da mulher indígena cuidar da alimentação, desde que isso não seja feito de forma obrigatória, demonstra a reciprocidade, o valor de cuidar. Mas, ao mesmo tempo, nós temos discutido de forma crítica que a questão cultural não pode servir pra continuar qualquer tipo de violência”, esclarece Célia. Ela conta que, em alguns grupos, as mulheres teriam que obrigatoriamente se casar aos 12 ou 13 anos, mas as mudanças podem ocorrer. A partir do momento que esse hábito é rejeitado, não é um caso de desobediência, mas porque ocorreu uma transformação cultural. Devido a especificidade de cada povo, a maioria das mulheres indígenas tem dificuldade de ingressar na universidade. Assim como, o ambiente acadêmico não está preparado para recebê-las. “Há um ´desbotamento cultural´ dentro das salas de aula, onde a cultura indígena é mais uma vez subtraída. Os saberes e formas de aprendizado de outros grupos são postos acima da sabedoria desse povo”, declara. Célia relata que é uma conquista ter mulheres indígenas na universidade, mas esse processo não é tão tranquilo. “Quando meus pais e avós falavam assim: minha filha, estuda porque a única oportunidade que eu tive foi de ir pra roça. Hoje, retorno fazendo uma reflexão crítica: nós ganhamos muito céu, mas nós estamos quase perdendo nossas raízes. Por que os nossos seres indígenas não podem também fazer parte do território do outro? Porque nós temos que estar habituados?”, questiona. Em forma de poesia, ela conclui sua fala, “Nós mulheres indígenas temos a grande capacidade de fazer da luta melodia: Na invasão deste país fomos vítimas dessa trama. Eu não sei se chama de Brasil ou se chama pitorama São lutas e muitas dores que ficou marcado na memória Seja negra ou indígena a protagonista dessa história Muita gente se pergunta: como é que faz pra se tornar indígena ou negro?”
Consciência Política - Durante o evento, os estudantes se reuniram com trabalhadores e comunidade em geral em um ato de protesto contra a política do governo de Michel Temer e nota de repúdio à Pró Reitoria de Ações Afirmativas (Proaf), da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Em um dos momentos da manifestação, eles realizaram a ‘Toré’, um ritual típico da cultura indígena, que envolve cantos, gritos ritmados e sons de maracá e configura um espaço para confraternização com pessoas de outros grupos indígenas da região. NOTA DE REPÚDIO Nós, estudantes indígenas e não indígenas, reunidos entre os dias 26 a 28 de maio de 2017 na Universidade do Estado da Bahia- UNEB, campus III Juazeiro, no 2º Encontro de Estudantes Indígenas da UNEB. Viemos declarar o nosso repúdio a Pró Reitoria de Ações Afirmativas- PROAF, criada em março de 2014 tendo como objetivo ampliar as políticas de ações afirmativas para discentes, professores, técnicos administrativos e comunidade externa da Universidade, constituindo-se como uma representação de caráter abrangente, permanente, transversal e inclusiva da UNEB. No ano de 2015 foi idealizado pelos estudantes indígenas da UNEB, um projeto com a intenção de reunir todos os estudantes indígenas da instituição, com o objetivo de trocar experiências e propor iniciativas para o melhor acolhimento dos estudantes dentro da Universidade. Em reunião realizada no mesmo ano, a PROAF se comprometeu em viabilizar alguns recursos necessários a realização do referido encontro, no entanto, chegada a data do evento, não cumpriu com a obrigação que havia assumido, comprometendo assim, a participação dos estudantes indígenas da instituição no evento. Ao final do evento, a comissão organizadora e todos os povos presentes assinaram uma nota de repúdio que foi encaminhada para a pró reitoria e protocolada no Campus I direcionada a mesma, da qual, até o corrente ano, o Núcleo Indígena da UNEB- NIU, não teve nenhum retorno com relação a nota. Ao final do 2º Encontro de Estudantes Indígenas da UNEB, foi aprovada uma nova nota de repúdio a PROAF, devido a sua ausência na construção do encontro e o descumprimento do seu objetivo proposto para toda a comunidade. Nesse intervalo de dois anos nenhum diálogo foi firmado com o NIU, nem tampouco foi dada uma resposta aos questionamentos feitos pelos indígenas na Conferência de Cotistas- CONFCOTAS realizada em Salvador no teatro UNEB. Esperamos que após essas desconfortáveis situações, se estabeleça um canal de comunicação e de materialização das propostas apresentadas pelos estudantes indígenas, para que a Universidade se torne inclusiva de fato, promovendo a participação dos diversos grupos étnicos dentro da instituição. Juazeiro, 28 de Maio de 2017 * Repórteres da Agência Multiciência da Uneb de Juazeiro