Após a criação da Escola de Medicina e a democratização do ensino, diversas camadas sociais passaram a ter acesso ao conhecimento da medicina, antes exclusividade dos ricos que podiam arcar com os custos dos estudos na Europa.
POR CLÁUDIO ANTÔNIO DE FREITAS BANDEIRA*
Pouco menos de um mês após desembarcar em Salvador, D. João VI, ainda príncipe regente, acatando sugestão do cirurgião mor da corte, o pernambucano José Correia Picanço, assina Carta Régia determinando a criação da Escola de Medicina do Brasil. A instituição foi instalada na sede do Hospital Militar, no Terreiro de Jesus. Picanço (que também foi fundador da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, entre outros feitos) fez no Hospital Militar do Recife a primeira operação cesariana do Brasil.
Com apenas 21 anos, foi nomeado cirurgião mor pelo governador Antônio Francisco de Paula. Estudou em Lisboa na Escola de Cirurgia do Hospital São José e obteve o título de Licenciado em Cirurgia. Vai para Paris, conquista o grau de “Officier de Santé”. De retorno a Lisboa, é nomeado pelo Marquês de Pombal para a Universidade de Coimbra. “Foi em 18 de fevereiro de 1808 que D. João VI assinou o documento no qual criava a Escola de Cirurgia da Bahia ou Colégio Médico Cirúrgico da Bahia nas instalações do Hospital Real Militar da Cidade do Salvador”, informa o tenente-coronel e médico Rogério Lange Fróes, ex- diretor do Hospital Geral de Salvador (Hospital do Exército).
Três capitães médicos doaram seus equipamentos e instrumentos disponíveis. No mesmo ano, em março foi realizada a aula inaugural de anatomia. Até o século 19, para o exercício da profissão médica era preciso apenas saber ler e escrever e ter habilidade manual para realizar cirurgias. Nas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro, era comum encontrar barbeiros exercendo a atividade. Mesmo com parcos conhecimentos, esses “cirurgiões barbeiros”, realizavam tratamento de fraturas e luxações, curavam feridas, sangravam, aplicavam ventosas, clísteres e sanguessugas, extraíam dentes e, naturalmente, cortavam cabelo e faziam barba (AZEVEDO, 2007).
Democratização do conhecimento – O Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia, como era então chamada a Faculdade de Medicina, tornou-se rapidamente um centro de convergência para milhares de brasileiros que queriam formar-se médicos. A democratização do ensino permitiu o acesso de camadas sociais variadas ao conhecimento da medicina, antes exclusividade dos ricos que podiam arcar com os custos dos estudos na Europa.
Ao longo de sua história bicentenária, a instituição formou 16.416 médicos, informa o e ex- diretor da Famed, o médico e professor da Faculdade de Medicina, José Tavares-Neto. Segundo ele, até meados do século passado a instituição era uma das mais procuradas em todo o País. Ele relata que o primeiro médico a conseguir se formar na instituição foi José Antonio de Souza, que colou grau em 1812. O quinto foi Jonathas Abbott. A história de Abbott exibe os ingredientes de uma personalidade determinada a ascender na vida.
Nascido em um bairro pobre de Londres em 1796, aos dezesseis anos, em 1812, Abbott aportou em Salvador como serviçal de um futuro professor da recém-criada Escola de Medicina da Bahia. Em pouco tempo, iria ele próprio tornar-se médico, cirurgião, catedrático na mesma escola, colecionador de arte, homem de posses e prestígio. Posteriormente, sua coleção de pinturas a óleo passou a compor o acervo do Museu de Arte do Estado.
Gazeta Médica da Bahia – Até hoje porta-voz oficial da Faculdade de Medicina da Bahia e o que hoje se chamaria de revista científica, o periódico teve o seu número 1 lançado em julho de 1866, sendo publicado nos dias 10 e 25 de cada mês. Foi premiado pelo Departamento de Artes Liberais da Exposição Universal Colombiana, realizada em Chicago, em 1893 e pela Exposição Nacional de 1908 (VALLE, 1974). Os objetivos da publicação foram colocados no editorial do 1º número, entre os quais o de ser um veículo destinado a divulgar os estudos feitos pelos integrantes da Faculdade de Medicina.
Dentre os principais trabalhos dos “tropicalistas” publicados neste periódico pela Gazeta Médica da Bahia destacaram-se os de Otto Edward Henry Wucherer: “Sobre a moléstia vulgarmente denominada opilação ou cansaço” (n. 3, 4, 5 e 6 do vol. I ,1866), como já vimos; “Notícia preliminar sobre vermes de uma espécie ainda não descrita, encontrados na urina de doentes de hematúria intertropical no Brasil” (Ano III, n. 57, 15 de dezembro de 1868); “Sobre a hematúria no Brasil” (5 artigos. Ano IV, n. 76,77, 78, 79 e 80, set.-nov. de 1869). José Francisco da Silva Lima publicou cerca de vinte comunicações sobre o beribéri sob o título de “Contribuição para a história de uma moléstia que reina atualmente na Bahia, sob a forma epidêmica, e caracterizada por paralisia, edema e fraqueza geral” (1866-1868).
As comunicações de Silva Lima foram publicadas em forma de livro com o título “Ensaio sobre o beribéri no Brasil”, em 1872. Além dessa temática, periodicamente era publicada uma seção que era uma sinopse de desenvolvimento da área de ginecologia e obstetrícia, na qual eram revistos alguns escritos dos médicos norte-americanos e europeus sobre essa especialização médica, incluindo na seção bibliográfica do jornal uma bibliografia atualizada de publicações recentes sobre doenças de mulheres.
Alguns dos diretores da Gazeta Médica da Bahia: Virgílio Clímaco Damásio (1866-1867), formado pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1859, antecessor de Nina Rodrigues na cátedra de medicina legal; Antônio Pacífico Pereira (1868- ocupou o cargo por décadas), formado também pela Faculdade de Medicina da Bahia, ligado ao grupo desde os tempos acadêmicos; opositor por concurso da seção de ciências cirúrgicas (1871), depois (1882), catedrático da anatomia geral e patologia, transferido em 1883 para a cadeira de histologia. Demetrio Cyriaco Tourinho, professor de patologia interna dirigiu a Gazeta na ausência de Pacífico Pereira. Raimundo Nina Rodrigues (1890-1893), entre outros.
Outros personagens ligados à história da Gazeta – Manoel Victorino Pereira, Antônio José Alves, Antônio José Pereira da Silva Araújo, Alexandre Maia Bittencourt, José Luiz de Almeida Couto, Thomas Wright Hall (médico escocês, freqüentou as reuniões em casa de Paterson).
Confira a primeira matéria da série especial Memórias da Medicina
*Cláudio Antônio de Freitas Bandeira é jornalista especializado em Jornalismo Cientifico e Tecnológico