Para pesquisadoras sobre estudos de raça e etnicidade, a representação depreciativa que a sociedade faz do indivíduo e de seus aspectos físicos, históricos e culturais, podem ter forte impacto na sua auto-aceitação e na forma como este trata seus semelhantes. No entanto, a representatividade surge como possibilidade de reversão de concepções e conceitos racistas
POR GIOVANNA HEMERLY*
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Estudos sobre a representação distorcida apontam o impacto que esta pode ter na vida de uma geração. No caso da população negra, a representação negativa tem gerado estigmas sociais que alimentam o preconceito e a discriminação que já duram séculos. Temas como este, foram debatidos no V Seminário Produção Científica Feminina na Bahia: Pesquisas e Pesquisadoras, realizado pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Algumas pesquisas mostram a ocorrência de mudanças nesse quadro a partir da desconstrução e da ressignificação de estereótipos e ideologias, tanto nos espaços educacionais, quanto nos meios eletrônicos digitais. Mas a luta pela desestabilização de um sistema de valores que desumaniza o outro e ignora os direitos de um grupo social ainda continua.
A representação do negro nos livros didáticos - Durante suas pesquisas sobre a questão racial na educação brasileira, em meados da década de 1980, Ana Célia da Silva, doutora em Educação pela UFBA e especialista em Estudos Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (UFBA), notou que a representação social do negro nos livros didático das escolas de ensino básico, além de raras, ajudavam a reforçar estereótipos e a discriminação, invisibilizando seus valores históricos e culturais. A depreciação era naturalizada de forma que, muitas vezes, a própria criança sujeitava-se à concepções preconceituosas sobre si, acreditando ser esta uma realidade e não uma representação distorcida.
Foi a partir dessa representação negativa que Ana Célia da Silva passou a desenvolver seus estudos sobre o conceito de auto-rejeição, pois ela percebia que desde cedo a criança com a autoestima afetada pelas representações depreciativas do seu fenótipo, tendia a não aceitar a si e nem aos seus semelhantes por haver uma ruptura na sua relação com a própria identidade étnico-racial, não querendo deste modo pertencer a um grupo socialmente inferiorizado. “Quantas de nós não pegou nossos cabelos quando era criança e alisou? Por que a gente queimava nossos cabelos? Na maioria das vezes, porque alguém disse que ele era ‘ruim’. Isso se chama ‘auto-rejeição’, disse Ana Célia, durante sua palestra no V Seminário Produção Científica Feminina na Bahia: Pesquisas e Pesquisadoras.
Em seu livro “Desconstruindo a Discriminação do Negro no Livro Didático”, lançado pela editora EDUFBA, a pesquisadora propõe a ressignificação para desconstrução da representação negativa em sala de aula através da identificação e correção tanto de textos quanto de imagens discriminatórias nos livros durante atividades feitas pelo professor e alunos.
Não somos todos iguais - Outra questão colocada por Ana Célia da Silva é o cuidado que os educadores devem ter quando enfatizam a igualdade ao invés de valorizar a pluralidade histórico-cultural e fenotípica que constitui a sociedade brasileira. Quando se coloca que todos são iguais, há uma possibilidade de interpretar a diferença como um problema ou algo passível de ser ignorado, deixando assim de trabalhar o valor da pluralidade em sala de aula. Isso abre um espaço para a valorização da “ideologia do branqueamento”, já que diante do valor negativo que se tem do negro, a criança acredita que para ser igual a todos, é preciso se igualar ao modelo eurocêntrico convencionado pela sociedade. Por esta razão, seria mais importante ressaltar que a diferença não é o problema, e sim a sua não aceitação e intolerância.
Em vigor desde janeiro de 2003, a lei 10.639 que coloca como obrigatório o ensino de História e Cultura Africana/Afro-Brasileira nas escolas de educação básica, é uma das conquistas no âmbito educacional e jurídico que visa valorizar a diversidade e promover ações que auxiliem no combate da discriminação, do preconceito e da intolerância. Desse modo, a escola deve, por lei, ser um local onde é possível produzir conhecimentos e valorizar a pluralidade de raças e etnias que formam a identidade cultural brasileira, além de possibilitar aos estudantes afrobrasileiros a construção de sua identidade pessoal ao conhecer mais sobre sua própria história, a partir de uma perspectiva menos eurocêntrica.
No entanto, Ana Célia da Silva afirma que, apesar de ser um importante avanço para o reconhecimento e valorização da diversidade cultural brasileira, a eficiência da lei ainda fica comprometida por restringir sua aplicação somente à educação básica, deixando os cursos de formação de professores fora dessa obrigatoriedade. A consequência dessa decisão afeta inclusive a possibilidade de se trabalhar efetivamente a cultura negra em sala de aula e de desconstruir estigmas sociais por haver professores que não conhecem os elementos da própria cultura negra e que, em diversos casos, ainda perpetuam preconceitos e ideologias discriminantes.
Geração Tombamento e Representatividade - Para a pesquisadora Adriele Regine, mestranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudo Étnicos e Africanos – UFBA, a representatividade negra é um elemento chave para o enfraquecimento do modelo social hegemônico, por ser justamente a representação positiva da cultura africana e afrodescendente, de forma que o indivíduo e seus semelhantes possam se espelhar e ter referências positivas para a construção da sua identidade pessoal. Desta forma, a mestranda escolheu como linha de pesquisa os estudos sobre o movimento estético, social e político que ganhou força com a popularização das tecnologias digitais, a chamada “Geração Tombamento”.
De acordo com a pesquisadora, o termo surgiu da gíria “tombei”, que é utilizada em situações em que a pessoa ressalta seu auto-valor e sucesso pessoal. A expressão popularizou com a música de Karol Conká, um dos expoentes desse movimento que coloca em suas canções temas como liberdade, independência e poder negro/feminino. Desta forma, o movimento busca ressignificar a representação tanto da comunidade negra, como dos grupos minoritários em geral, a fim de fortalecer uma identidade pessoal mais fiel aos próprios valores, seja étnico-racial, de gênero ou de sexualidade, ao mesmo tempo que constrói uma identidade social como meio de resistir e re-existir diante do modelo hegemônico.
Adriele, que também é bacharel em Design de Moda, ressalta que apesar de ser lembrado mais por sua conotação estética e cultural, esse estilo implica também uma atitude de militância política herdada de outros grupos que lutaram pelo fim do preconceito nas décadas passadas, como o afrofuturismo e o afropunk.
Para essa nova geração, o corpo torna-se instrumento de resistência, já que através do cultivo da aparência e atitudes que fogem do padrão considerado aceitável socialmente, coloca-se a auto-afirmação como forma de protesto. “Quando esse corpo negro entende que ele tem ele tem seus próprios desejos vontades e experimentações, ele compreende seu espaço, compreende como esse corpo é político. Aí ele rompe com o modelo colonizador, assume suas características físicas e étnicas para além do caricato”.
Segundo Adriele, o maior acesso da população das classes mais baixas às tecnologias de comunicação e a promoção de políticas públicas pelo governo, no início deste século, foram fundamentais no surgimento da geração tombamento. As redes sociais são uma das principais ferramentas utilizadas pelo movimento para buscar a auto-representação dos grupos sociais discriminados, como negros, LGBT+ e feministas, seja através de frases de efeito, da organização de eventos que destaquem a música negra e da periferia, do empreendedorismo voltado para grupos minoritários e dos famosos “textões” de facebook. Deste modo, os representantes dessa geração têm pautado questões sociais que foram invisibilizadas durante muito tempo, como o racismo, machismo, sexismo, gordofobia e a LGBTfobia.
>> Assista o mini-doc sobre a Geração Tombamento, produzido pela Saturnema, no qual participa a pesquisadora Adriele Regine: