A Agência de Notícias ouviu alguns membros da comunidade LGBTQIAPN+ e profissionais do Sistema Único de Saúde para saber o que a Prefeitura de Salvador tem feito para garantir o direito à saúde dessas pessoas.
Nathalí Brasileiro*
Em diversos países ao redor do mundo, incluindo o Brasil, comemora-se em junho o mês do orgulho LGBTQIAPN+. Marcado por diversos movimentos em favor dos direitos da comunidade, o mês foi escolhido porque foi nessa data, em 1969, que ocorreram as manifestações contra abusos policiais em Nova York, numa época em que ser homossexual ainda era ilegal.
“Junho representa o orgulho de sermos quem somos e tudo o que já conquistamos, mas também é símbolo de luta e resistência. Muita gente sofreu para que chegássemos até aqui e, por isso, não temos o direito de parar de lutar. Por nós, por eles e pelos que ainda virão”, afirma Julianna Souza, 24, lésbica, estudante de psicologia e moradora do Cabula. Ela destaca que muita coisa foi conquistada nos últimos anos, mas que ainda é pouco. “Não podemos mais aceitar que sejamos reduzidos por ‘sermos por inteiro’. Precisamos de menos julgamentos e mais ações inclusivas, de tratamentos médicos especializados, de mais cuidado e empatia”, completa.
Assim como ressalta Julianna, a inclusão, o acolhimento e o respeito para com a população LGBTQIAPN+ no Sistema Único de Saúde (SUS) são algumas das principais reivindicações da comunidade. Esse sistema, que tem como princípio a universalidade e a abrangência a todos os cidadãos sem distinção de tratamento, na prática ainda não executa com êxito esses princípios, presentes em sua legislação desde 1990, ano de criação do SUS.
Para entender e analisar as ações da Prefeitura de Salvador relacionadas à saúde deste grupo, a Agência de Notícias em CT&I (AGN) utilizou o Querido Diário, uma ferramenta de busca criada com o intuito de facilitar o acesso aos Diários Oficiais das cidades brasileiras, para identificar as ações feitas no setor, ouvindo também membros da população LGBTQIAPN+ e especialistas no assunto.
Ouvindo a comunidade LGBTQIAPN+
O publicitário Ricardo Gomes, 33 anos, assumidamente gay desde os 22, conta que são inúmeras as dificuldades para acessar o sistema de saúde, não apenas na capital baiana, mas no Brasil como um todo. “Infelizmente, o preconceito é algo enraizado na nossa sociedade, não permitindo a aceitação de nada que fuja do padrão, do politicamente correto, e isso, quando se fala de inclusão e saúde LGBT, obviamente reflete naquilo que é ensinado nas universidades”, afirma. Ele completa dizendo que é preciso ter profissionais mais humanos e preparados para atender a todos nas unidades de atendimento.
Seguindo na mesma linha, Cícero Silva Proença, 25 anos, homem trans, conta que considera o sistema de saúde da capital baiana inclusivo, mas que ainda falta muito para que chegue ao ideal. “No meu cartão do SUS, por exemplo, tem o meu nome social, mas nos atendimentos ainda erram o pronome e isso é algo que sempre me deixa muito constrangido. Acredito que, se os funcionários passarem por mais capacitações para atender pessoas LGBTs, problemas assim poderiam ser evitados”, afirma. Ele ressalta que nunca teve seu acesso à terapia hormonal negado, mas que a lentidão do sistema dificulta muito o processo.
Os problemas na abordagem e no atendimento também são reforçados por Karoline Silveira, 23 anos, estudante de Letras que se identifica como não-binárie desde 2017. “As situações que, mesmo lutando tanto, ainda passamos deveriam ser raras. O problema está naquele lugar onde ninguém quer mexer. Fico extremamente mal quando me associam ao gênero feminino ou masculino, como se o mundo fosse assim, preto no branco. Quando vou a alguma unidade de saúde ou hospital, é por necessidade, até porque a saúde é um direito de todes. Os cochichos, as perguntas fora de hora, os risos, tudo isso dói.”
Ações da Prefeitura para a Inclusão no SUS
Assim como ocorre com outras políticas instauradas pelo Governo Federal, a Secretaria de Saúde de Salvador (SMS) segue a Política Nacional de Saúde Integral para a população LGBTQIAPN+, instituída em 2011 pela portaria nº 2.836. O objetivo é promover integralmente a saúde desta população, eliminando a discriminação e o preconceito institucional, incluindo e acolhendo a todos, além de contribuir para a consolidação do SUS como um sistema universal, integral e equitativo.
Reforçando essa adesão, o decreto nº 34.799, publicado no Diário Oficial em 19 de novembro de 2021, estabelece que a promoção da saúde para pessoas LGBTQIAPN+, independentemente da raça, no âmbito municipal deve estar em conformidade com a Política Nacional de Saúde Integral de Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Em contato com a AGN, a SMS afirmou que realiza atividades permanentes de educação e qualificação dos profissionais de saúde para o atendimento à população LGBTQIAPN+, livre de preconceito e discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero. Além disso, a Secretaria produz e distribui materiais educativos abordando todos os direitos em saúde dessa população.
Além das capacitações e dos materiais educativos, a Secretaria afirma que sempre orienta toda a equipe e os colaboradores sobre o respeito ao nome social e à identidade de gênero de pessoas trans, e que publicou boletins e outros materiais informativos sobre a saúde deste grupo, como o boletim de violência interpessoal e autoprovocada.
Quais são os desafios para que o SUS seja realmente para todos?
Em entrevista com a AGN, a enfermeira e pesquisadora Lanna Katherine Leitão, integrante do Grupo de Estudos em Sexualidades, Vulnerabilidades, Drogas e Gênero do CNPq, destaca que os desafios para que o SUS seja verdadeiramente universal e inclusivo para a população LGBTQIAPN+ são múltiplos e envolvem diversos aspectos.
“Um dos principais desafios é a construção da sexualidade, frequentemente vista como algo puramente individual, com a ideia de que ‘o que a pessoa faz entre quatro paredes não é da minha conta’. Essa visão é também influenciada por uma perspectiva cristã que restringe o exercício da sexualidade ao propósito da reprodução e não ao prazer. Isso levanta a questão: onde ficam as pessoas que não buscam a reprodução, como aquelas que se identificam como LGBTQIAPN+?”, questiona.
Ela ressalta que a formação dos profissionais de saúde é um desafio significativo. “Antes de recebermos os diplomas, somos moldados por uma cultura comum e por aspectos individuais. Portanto, não é possível desconstruir preconceitos da noite para o dia, nem podemos simplesmente eliminar nossa bagagem cultural ao iniciar uma profissão. Essas influências culturais e pessoais afetam nossa prática profissional”.
Lanna também aponta que a falta de inclusão da diversidade sexual e de gênero nos currículos das graduações na área da saúde é um obstáculo importante. Ela enfatiza a necessidade de treinamentos específicos para melhorar o atendimento.
Apesar de alguns avanços, como a portaria do nome social no SUS e a inclusão da identidade de gênero e da orientação sexual como determinantes de saúde, ainda existem muitos desafios. “Muitas pessoas trans evitam serviços de saúde por não terem seu nome social respeitado, e um grande número de fichas permanece sem o devido preenchimento.”
Superar esses desafios é crucial para garantir que o SUS seja verdadeiramente inclusivo. A implementação efetiva de políticas e treinamentos adequados, junto com uma abordagem mais sensível e respeitosa, é essencial para assegurar que todos, independentemente de sua identidade de gênero ou orientação sexual, recebam o cuidado e o respeito que merecem. A jornada em direção a um sistema de saúde universal e equitativo continua, e cada passo na direção certa representa um avanço significativo para a inclusão e o bem-estar de todos.
* Estudante de jornalismo na UFBA e estagiária da Agência de Notícias em CT&I
**Esta reportagem foi produzida com o apoio da Open Knowledge Brasil (OKBR), no âmbito do programa Querido Diário nas Universidades, e contou com o uso do Querido Diário, ferramenta de inovação cívica criada para abrir e integrar os diários oficiais. A iniciativa tem por objetivo aproximar o projeto Querido Diário às atividades de instituições de ensino e pesquisa brasileiras, potencializando seu desenvolvimento e impactos.
***Revisão e apuração: Bia Nascimento, Cinthia Maria e Manoela Santos.