Existe realmente uma rivalidade entre fé na Ciência e fé em Deus? É sobre essa dicotomia que a jornalista e professora universitária, Joana Brandão, fala no texto da semana. Confira!
POR JOANA BRANDÃO*
A cena é cotidiana. Saio de casa para deixar o lixo em uma portinhola que fica do lado externo do condomínio. Ato que não faço sem uma dose imensa de culpa por não ter assistido aquele vídeo que ensina a fazer compostagem com galões de água mineral (até arrumei os galões e jazem inertes no canto da cozinha), e ter que enviar aquela mistura que contém o lixo orgânico, papel higiênico e recicláveis – que eu separo e limpo, mas que por falta de uma coleta seletiva coloco junto com o lixo comum. Soma-se a isso a fralda de plástico que o Petshop tem como única opção para receber as necessidades da cachorrinha de 30 cm que temos em casa e que é recorde em produção de lixo não reciclável.
Este pacote de contradição segue seu caminho ao lixo, quando encontra uma outra pessoa na mesma direção. Esforço-me por manter a distância de dois metros, estamos ambas desmascaradas. Ela avante, abre a porta e, ao perceber que aguardo parada a uns três metros dela: – Ah, você está com medo!
Eu tento esboçar alguma resposta formal sobre a importância de nos prevenirmos, sobre não ser algo pessoal, sobre assintomáticos contaminarem e, antes que eu possa tomar algum ar, ela emenda: – Tenha fé em Deus minha filha. Ele é maior.
Meu alerta terraplanismo é aceso e minha paciência vai para parâmetros moleculares: – Por acaso, se a senhora ou alguém de sua família se acidentar, vocês irão ao hospital ou a uma igreja? Pois bem, eu tenho fé na ciência e na medicina também.
Vem um milhão de coisas na cabeça e falta-me paciência para elaborar um sermão. De qualquer forma nem adiantaria muito o esforço, já que a vizinha passou na frente olhando para mim como se eu fosse a pessoa mais mal educada que atravessou o seu dia. Será que expor alguém à possibilidade de contaminação devido ao seu próprio ato de fé, à religião de sua escolha e à sua interpretação dessa religião, não é um ato de falta de educação maior? Penso o quanto precisamos pensar em ética no nosso cotidiano. A ética de cuidado do outro, da nossa coletividade, independente de nossas escolhas individuais.
Penso em mais um monte de coisa. Sobre a visão de Deus como um ser paternal que fará tudo por nós. Veja bem, já diziam os muçulmanos: “Confie em Alá, mas amarre seu camelo primeiro, porque Alá não tem outras mãos a não ser as suas”. E dizem por aí que eles que são fanáticos. Afinal, o Criador fez o homem a sua imagem e semelhança para delegar alguma tarefa, não? Ou seria apenas para vagarmos, ou melhor, vagabundearmos, excluídos do paraíso, sem nenhuma capacidade de discernimento e auto-cuidado, a não ser pedir a Deus um taco de misericórdia?
Para não me aventurar mais pela teologia, vamos aos elementos pragmáticos. Será que não morreu nenhum cristão nesta pandemia? Claro que morreu, recentemente foi noticiado a morte de uma cantora gospel assim como de policiais e este e aquele seguidor da ideia de não isolamento que se contaminou e não resistiu. Então, não é bem a fé que nos resguarda.
Ou será que estes cristãos que se contaminaram teriam tido pouca fé em Deus? Em qual balança se mede a fé de alguém? Lembro-me eu criança, na igreja, a ouvir o padre dizendo: – Cristão frio não serve para Deus, Deus quer quente, morno ele vomita. Na minha cabeça infantil, vinha a imagem repulsiva de Deus vomitando a mim ou a qualquer um daqueles prostrados em um domingo a tarde, que tinham saído de sua casa com tanta boa vontade para escutar que seriam vomitados pelo senhor se a fé não passasse no teste do termômetro.
Fico pensando nesta visão tacanha de um Deus que olha para nosso espirito, mas não olha para as complexidades dos nossos atos cotidianos. Não é um ato de ofensa com a criação divina este conglomerado com nossos restos que jogamos dentro de um saco e lançamos em uma portinhola, fechando-a, como se não nos dissesse respeito? Como se não fosse o mundo em que habitamos, em que habitam nossos irmãos e os belos animais de quem nos comprazemos em cantos e imagens, que fossem consumir microplásticos por toda eternidade.
Penso em um artigo do Drauzio Varela que me deu um tapa na cara há alguns anos quando eu estava a avaliar se iria vacinar minha filha ou não. Chamava-se “Os sábios antivacinais”. Nele, Drauzio (desculpe a intimidade de usar o primeiro nome, é que o duplo “L” do sobrenome não afasta a lembrança do sensacionalismo policialesco de jornais que se espremer sai sangue aqui pela Bahia), ironiza as contradições e prepotência dos antivacinais. Pessoas que defendem entusiasticamente a amamentação exclusiva até seis meses e prolongada até dois anos e citam a Organização Mundial da Saúde quando convém para fundamentar seus argumentos, mas ao bel-prazer, com base em pesquisas de procedência duvidosa, acham que as vacinas não são tão boas assim. E eu mesma, quando fui ler as pesquisas partilhadas em um destes grupos secretos no Facebook sobre o mal que as vacinas fazem, fiquei horrorizada com a má qualidade da escrita e a incapacidade de aqueles artigos sequer apresentarem uma formatação razoável. Fiquei envergonhada por ter considerado a possibilidade de ser uma seguidora daquela seita antivacinal e por ter colocado a saúde da minha filha em risco devido à minha ignorância.
Neste ponto, é importante dizer que uma das vaidades que aprendi a cultuar nesta vida é a intelectual. Percebi de forma mais notória isso um dia na praia, abrigada sob três guarda-sóis em uma tempestade de ventos e chuva, junto com uma passante que, ao ver minha filha entretida com algo tipo lacinhos, falou: – É importante incentivar, uma mulher tem que ser vaidosa. E quase escapou da minha boca: – Realmente uma mulher tem que ser vaidosa, intelectualmente, para não sair por aí falando besteira. Como não sabia quanto tempo a chuva ia durar, e era domingo, e a gente estava tentando ter um dia relax na praia, guardei para mim o comentário.
Mas a mensagem vale para os dias de hoje: é feio sair por aí falando besteira. Causa vergonha alheia, e, pior ainda, mata! Sua ignorância mata. Pois não há testes, não há respiradores e leitos de UTI o suficiente, não há relaxantes musculares para colocar os respiradores que existem, os profissionais de saúde estão exaustos e adoecendo, se arriscando por sua ignorância. Enquanto vemos a Nova Zelândia dizer que não há casos ativos em seu território, nós, aqui no Brasil, por essas e outras, subimos ladeira acima nos gráficos e ladeira abaixo na decência e respeito às vidas.
Afinal, para que o Criador nos Deu-s a capacidade de produzir ciência e medicina? Foi lá nos idos anos mil e quatrocentos que os padres, freis e freiras eram os médicos das comunidades. Isso porque não havia medicina nem pesquisa cientifica. Será que voltamos a estes idílicos tempos em que a fé era de fato quente? Assim, em vez de hospitais, pedimos aos governantes que nos construam mais e mais igrejas. Quando o coração der aquela pontada e o braço ficar dormente, quando o açúcar no sangue demandar insulina, quando baterem os carros e motos uns contra os outros em seus cotidianos ungidos pelo Senhor, peçam para serem levados para as igrejas. Quem sabe lá encontrem uma boa sangria esperando por vocês. Com sorte, o material estará esterilizado.
*Joana Brandão é jornalista, cineasta e educadora. Sempre sonhou em vivenciar um momento histórico importante para humanidade. Só não pensou que seria agora e trancada na própria casa. Escreve a coluna “Crônicas do fim do mundo” para a Ciência e Cultura sobre implicações socioculturais da pandemia global pelo Covid-19.