A jornalista Liliana Peixinho interagiu com diversas mulheres na labuta diária entre os afazeres domésticos, o cuidado com a família e o trabalho fora de casa. Nessa matéria, a repórter retrata cotidianos em dias longos e noites curtas e reforça o que ouviu, certa vez, da escritora Fernanda Young: "As mulheres não dormem, dão um cochilo".
POR LILIANA PEIXINHO*
lilianapeixinho@gmail.com
A mídia, movimentos sociais, coletivos diversos, reforçam o proativismo feminino em seus múltiplos papéis. O reconhecimento da capacidade de luta da mulher, apesar de visível, não corresponde ao esforço histórico de luta nas diversas frentes. A mulher não precisa mais dar provas de sua capacidade para encarar desafios. A proporção entre o tempo de corrida para fortalecer e elevar esse perfil, e a garantia de estruturas sociais dignas do esforço são injustas e não correspondem às necessidades. Chega a ser abusiva, exploradora. Mas a mulher, depois de tanta luta, pede um tempo para si mesma.
O protagonismo feminino precisa ser traduzido em direitos que continuam sendo negados. A desvalorização da mão de obra, do suor, da entrega ao trabalho, em todas suas múltiplas jornadas, tem elevado os níveis de dores a insuportáveis. O que se vê é a submissão das mulheres que se anulam diante do provedor e a escravidão por meio de uma agenda onde ela mesma tenta até se encaixar, mas sem muita opção para priorizar-se, colocar-se no topo, antes de qualquer outra atividade. Antes dela, existem outros: a família, o patrão, os colegas de trabalho, a mãe, o pai, o neto, o sobrinho, a amiga, num ritmo de atenção e cuidados sem fim.
A escritora Fernanda Young resumiu bem essa perfil a dizer, de forma contextualizada, que : “a mulher não dorme, ela dá um tempo”. Também ousou dizer que: “A mulher moderna é aquela que permite ser um pouco relapsa”. Relapsa! Que luxo poderia ser! Mas não pode, ou ela não se permite.
Constatamos, durante 63 dias dirigindo sozinha na na trilha da seca, Sertão adentro, porque mulheres não se permitem ser relapsas. Como se permitir, fazer de conta que não vê, sente, ouve o que estão a necessitar filhos e filhos à sua frente? Como deixar de lado famílias inteiras, numerosas, para dar de comer, vestir; cuidar da saúde, em ambientes de muita carência? Como ser relapsa vendo o companheiro desempregado, o rio seco, a plantação morta, os bichos caindo de fome, tentando resistir sem forças para se levantar? Mulheres ao lado de maridos, filhos e parentes, lutando pela vida, com bichos de um lado pro outro, à procura de água. Mulheres em pés de fogão de lenha com panelas quase vazias.
Vi mulheres em filas: avó, mãe, filha, neta, sobrinha, uma atrás da outra, com latas na cabeça, andando léguas, à procura de água, ou com bacias cheias de roupas, procurando um poço, com feixes de lenhas sobre as rodas de pano na cabeça para amortecer as dores. Mulheres, novas e idosas, andando quilômetros em sol a pino para ir no lugar mais perto de casa comprar a banana, o feijão, a farinha, porque na roça há anos não se pode plantar. Não tem água para cultivar.
Mulheres que criam, transformam, improvisam, inventam, tentam, conseguem e resistem às dores de perdas. Mulheres que tentam sair de perversos ciclos de negação de direitos. E, nesse cenário, a capacidade de trabalho da mulher nordestina chega a indignar, por tanta abnegação. Depois de tanto correr, lutar, desafiar, se entregar inteira, na criação de filhos e filhos, sobrinhos, netos e vizinhos, a guerreira ainda não se permite dizer não. E é grande a cumplicidade dos que não tem a mesma coragem.
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* Liliana Peixinho é jornalista, especialista em Jornalismo Científico e Tecnológico, com atuação em Mídia, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ativista socioambiental, fundadora dos Movimentos Amigos do Meio Ambiente (AMA) e Rede de Articulação e Mobilização Ambiental (RAMA).