Além de fortalecer a culinária afetiva de valor consagrado, as mulheres que integram a comunidade Recanto Peixinhos, na Barreira do Tubarão, Heliópolis - Bahia, ainda bordam, pintam, costuram, cantam, escrevem, lêm, organizam documentos e um sem-fim de atividades que não param nem à noite, porque elas não dormem, apenas cochilam
POR LILIANA PEIXINHO*
lilianapeixinho@gmail.com
Elas arrumam a casa, cuidam de filhos, netos, sobrinhos, companheiros, aram a terra, plantam, regam, colhem, preparam doces e salgados para vender fora, costuram, cantam, fazem artesanatos, rezam, tocam instrumentos, cuidam de doentes… Elas não dormem, dão uns cochilos, do contrário, não dariam conta de tanto trabalho, que não para de aparecer na lida cotidiana.
A reportagem dos Movimentos AMA/REAJA/Mídia Orgânica acompanhou de perto, durante semanas, a labuta de diversas mulheres da zona rural que integram o projeto. Todas e têm tarefas em comuns, mas, cada uma mostra empenho, dedicação e responsabilidade que orgulha um lugar de gente feliz, leve e que sabe viver.
Dona Nice, 77 anos, levanta antes do sol nascer, todos os dias. Faz suas orações, lava os olhos, escova os dentes, abre a janela da cozinha, pega as vasilhas de ferver água para café e chá e, entre uma tarefa e outra, a lida começa e avança durante todo o dia, sem trégua, até a noite, quando assiste um pouco de televisão deitada na rede. Não demora muito, logo, logo, é hora de ir para a cama, dormir um pouco e acordar antes que o sol se levante. Ela faz o café, pega o milho que colocou de molho na noite anterior, despeja na bacia, leva para o moinho, liga a máquina, vai colocando os punhados dos grãos, separa peneira peneirando, até restar só as casquinhas, que vão para as galinhas, em ciclos harmoniosos com o lugar onde a vida se desenvolve. Como uma típica nordestina, Nice é mãe, mulher, avó, tia, madrinha, amiga, assim mesmo, em múltiplas facetas, uma infinidade de atividades para dar conta, todos os dias. Essa rotina de acordar e botar água para ferver, andar até o quintal para ver o tempo, regar as plantas… é ritual sagrado para quem, desde cedo, aprendeu o valor da terra.
Com esses cuidados, eles garantem um café da manhã com cuscuz de milho plantado, colhido e moído no próprio lugar. Aipim cozido, com ovos, café e leite. Beiju, mungunzá, arroz-doce com leite de coco. Tem também frutas como goiaba, manga, laranja, umbu, banana, pinha… espalhadas quintal afora, roça adentro, para a criançada e quem mais chegar se alimentar. Entre um chá, um café, uma água, tem toda uma cozinha, com pratos, panelas, talheres, ali, em constante uso no preparo de arroz, feijão, pirão, galinha de quintal, peixe frito, cozido de carneiro, couve cortada fininha regada com azeite de oliva, salada de tomate-cereja, cebola, pimentão, alface, salsa, manjericão, e tudo ali, no quintal, na horta, cultivados por mãos calejadas de trabalho.
Além de fortalecer a culinária afetiva de valor consagrado, Nice e outras mulheres como Zefa, Andreia, Gidelma, Valdirene, Marilza e cada uma das batalhadoras que integram aquela comunidade, na Barreira do Tubarão, Heliópolis, Bahia, ainda arranjam tempo para bordar, pintar, costurar, cantar, escrever, ler, organizar documentos e um sem-fim de atividades que não param nem à noite, porque elas não dormem, apenas cochilam.
Zefa, mais de 70 anos, é dessas mulheres que, mesmo na labuta desde criança, nunca reclama da vida e está sempre disposta para fazer o que lhe aparece à frente. A repórter pôde constatar toda essa energia, numa das visitas à casa dela, no pé da serra, sob um frondoso flamboyant.
Durante o encontro falou-se sobre o início da vida dela e do irmão, Bento, ali na Barreira do Tubarão, desde os anos 1970 até aquele dia do nosso encontro, repleto de riqueza de vida. Das 7h até às 15h, ela preparou o café da manhã, o almoço e merenda para o marido, mostrou dezenas de peças artesanais que faz – colchas, tapetes, panos de chão, panos de prato e encosto de porta. Tudo ensacado, dobrado, guardado com carinho para ser exibido a ocasionais visitantes, o que acaba gerando um complemento à renda familiar. Além do artesanato, Zefa fabrica balas de coco com rapadura, conhecidas na comunidade como “as delícias de dona Zefa”.
Depois do café, a equipe de reportagem acompanhou dona Zefa à roça, para ver de perto o que ela planta e cria. Tem galinhas bem tratadas, porcos, umas vaquinhas, cachorros e gatos. Perguntada pelo pé de aipim que ela tinha tirado e me mostrou e disse que estava guardado, num canto do quintal, para plantar depois. Então sugeri plantar naquele momento, porque se lhe foi servido com gosto, seria justo plantar e, quem sabe, numa outra oportunidade poder voltar para saborear o aipim que replantaram coletivamente. E o plantio das manivas foi mais um aprendizado da vivência a que eu, como repórter, me propus.
Depois do plantio, a coleta de frutas, cabaças é a visita na horta de sua filha, na casa vizinha. No cenário, mostras de artesanatos, mulheres em ação, na lida da enxada, na colheita, no preparo de alimentos na cozinha, na lavagem de pratos e roupas em bacias, mães com criança no colo e com o marido sendo acolhido na volta do trabalho da roça. Um ambiente com muita ação, sem descanso, todos envoltos em tarefas! De volta à casa de Zefa, é hora do preparo do almoço e finalizar a conversa sobre a história da família. A repórter foi pra cozinha, ajudar e observar cada detalhe. Até o sabão que ajudou a lavar os pratos foi feito. Zefa é uma mulher linda, doce, forte, carinhosa, paciente, cheia de amor e coragem como uma nordestina de valor é dignidade.
Valdirene, a Val, 35 anos, é mulher de Bentinho e mãe de Tainá e de Henrique (surdo como o pai). Ela faz sabão caseiro, colhe frutas, rega horta, cozinha, lava, faz artesanato, cuida da saúde dos animais: as galinhas nas quais está sempre a examinar os olhos, as penas, os pés. Ela participa de todos os eventos de recepção aos visitantes do projeto, resolve problemas de saúde, não reclama de nada e passa a impressão de que, se um dia tivesse 50 horas, ela as utilizaria integralmente para trabalhar. Calma, tranquila e incansável, Val faz parte de um universo de mulheres movidas por fé e coragem que enfrentam um cotidiano estafante, sem lamúrias ou reclamações. Tudo é harmoniosamente compartilhado para que ninguém se sinta sobrecarregado.
Com o marido e um filho surdo, Valdirene buscou ajuda e desenvolveu um sistema prático que agiliza comunicação familiar. A impressão que se tira desse ambiente de trabalho é que nada é problema quando se busca as soluções de forma harmoniosa. Com essa filosofia, um dia longo, que começa antes do nascer do sol e só termina quando o cansaço não mais tem tempo, é comemorado como agradecimento de vida, de luta, de vitórias ou nem tanto, mas sem esmorecer, jamais.
Gidelma, 25 anos, é uma das mães da Barreira do Tubarão que não sabem o que é descanso. Ela e o marido cuidam dos filhos o tempo todo, revezando as atividades. Quando ele viaja, ela lava, cozinha, arruma a casa e ajuda as crianças nas tarefas escolares. Tem ainda que arranjar tempo para administrar o controle do estoque da Budega do Recanto e colaborar com as atividades coletivas da comunidade. A cada ano, uma pessoa é convidada a fazer o acompanhamento de tudo o que entra e sai do armazém, onde se guardam as comidas e os produtos utilizados nas casas do Recanto. Em 2018, Gidelma é a responsável.
Andreia, 26 anos, esposa de Rosalvo, ajuda o marido no agendamento da dinâmica das atividades comunitárias. Ela é mãe de Pedro e Angelina, de 6 e 4 anos, desempenha uma série de atividades, como todas as pessoas da comunidade, e é, também, uma das cantoras do coral da igreja. Andreia, como todas as mulheres e homens da localidade, trabalha em tudo, seja na casa, na roça, no preparo das refeições, na organização de eventos, na plantação, no regamento e colheita de frutas, legumes, raízes.
* Jornalista, ativista, Especializada em Jornalismo Científico e Meio Ambiente. Fundadora e coordenadora do Movimento AMA.MIDIA ORGANICA. REAJA. RAMA. Colaboradora de diversas mídias especializadas em Jornalismo Ambiental.
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