Em 1987 as pesquisadoras Tania Brazil, Rejâne Lira, Luciana Casais e Tatiana Rocha deram um grande passo para a desmistificação do ofidismo e dos animais peçonhentos na Bahia com a criação do Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia (Noap). A iniciativa tem sido fundamental na formação de estudantes, qualificação de professores, elaboração de material informativo para as comunidades participantes e na produção de conhecimento e materiais didáticos
POR SALETE MASO*
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Reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como Museu Itinerante em 2008, o Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia (Noap), completa 30 anos de atuação este ano. Criado pelas pesquisadoras Tania Brazil, Rejâne Lira, Luciana Casais e Tatiana Rocha, em 1987, o Núcleo é localizado no Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (IBIO- UFBA), além de ser um dos grupos de pesquisa mais antigos da universidade, registrado no diretório de grupos do CNPq em 1992 e reconhecido pelo Ministério da Saúde como Núcleo Regional de Ofiologia, referência para a região Nordeste.
A coordenação geral do Noap está a cargo da pesquisadora Rejâne Lira, do IBIO, e funciona como um laboratório de desenvolvimento de pesquisas em animais peçonhentos – aranhas, escorpiões, serpentes – além dos lagartos. O Noap destaca-se pela formação de recursos humanos na área dos animais peçonhentos, além das áreas de ensino de ciências, educação científica, educomunicação, museologia, saúde e história das ciências.
O núcleo agrega ainda o Programa Social de Educação, Vocação e Divulgação Científica, que é um centro avançado de ciências, com bolsistas de iniciação científica júnior, a Rede de Zoologia Interativa (Redezoo) e a Sala Verde da “Ciência, Arte & Magia” da UFBA. Através das ações desses programas, são desenvolvidas atividades de formação de estudantes, qualificação de professores, na elaboração de material informativo para as comunidades participantes e na produção de conhecimento e materiais didáticos. “Nesses 30 anos, o Noap foi o celeiro para a formação de científica de mais de 300 pessoas, desde estudantes da educação básica, na iniciação científica júnior, estudantes de diversos cursos de graduação na iniciação científica, iniciação à docência, iniciação à extensão e profissionais formados, mestres e doutores sob a nossa orientação”, destaca a bióloga Rejane Lira.
O Noap foi responsável pelo desenvolvimento das primeiras pesquisas sobre animais peçonhentos, incluindo o estudo dos acidentes, veneno e envenenamento humano, além da criação das coleções de aracnídeos, anfíbios e répteis e da coleção histórica, tombadas no Museu de História Natural da Bahia. Houve uma grande atuação na descoberta de novas espécies de aranhas, escorpiões, lagartos e serpentes. Em seu laboratório abriga o primeiro serpentário e aracnidário da Bahia e possui um rico acervo, referentes aos bancos de venenos e de tecidos. Diante do reconhecimento da comunidade científica pelo trabalho desenvolvido, o núcleo já recebeu visitantes famosos na área da ciência, como pesquisadores de diversas instituições nacionais e internacionais.
Desfazendo os mitos – Uma iniciativa bem interessante do Noap é desenvolvida pela Rede de Zoologia Interativa, que atua na mudança da percepção da população em relação aos mitos que são construídos ao redor dos animais peçonhentos, em especial, as cobras. Mitos como “as serpentes são guardiãs do tempo e mantenedora dos segredos da imortalidade”; “mudar de pele é uma renovação das forças”, ou ainda, “a cobra quando entra na lagoa, deixa seu veneno na folha para tomar banho”, além de outras que podem estar ligadas diretamente com a segurança das comunidades que mantêm contato com animais peçonhentos. A Sala Verde atua na educação ambiental, com apresentação de peças teatrais infantis, montadas e apresentadas pelos alunos das atividades de extensão do núcleo, onde explicam a importância de não acumular o lixo em locais próximos às residências, evitando assim, a proliferação de animais peçonhentos e vetores em busca de comida nesses ambientes, colocando em risco a vida das pessoas.
Na percepção de Lira “gostar e trabalhar com animais peçonhentos já nos coloca em situações inusitadas frente à maioria das pessoas, que acha no mínimo estranho estudar serpentes, aranhas e escorpiões. Animais que, infelizmente, se aprende desde cedo a odiar, seja dentro da família ou na própria escola. Ouvimos mitos, lendas e histórias, tipo ‘as cobras mamam né?’, esperando a nossa confirmação. O que fazemos é oportunizar ao público a reflexão sobre o conhecimento científico e ajudá-lo a construir a sua própria concepção acerca desses animais”, reforça.
A informação é a ferramenta mais eficaz para combater o aumento de casos de picadas de cobra no Brasil. O Instituto Butantan divulgou dados onde revelou que em 2014, cerca de 150 pessoas perderam a vida no Brasil devido a acidentes com serpentes peçonhentas. Mais de 29 mil casos registrados de acidentes com serpentes, sendo que menos de 1% terminaram em óbito. Segundo o Instituto, se não fosse pela desinformação e pelos mitos que envolvem a picada do animal, esse número poderia ser bem menor.
Segundo o portal da saúde do Sistema Único da Saúde (SUS), acidente ofídico ou ofidismo é o quadro de envenenamento decorrente da inoculação de toxinas através do aparelho inoculador (presas) de serpentes. No Brasil, as serpentes peçonhentas de interesse em saúde pública são representadas por quatro gêneros da Família Viperidae: serpentes do grupo Bothrops (jararaca, jararacuçu, urutu, caiçaca, combóia), o qual, atualmente, está agrupado em dois gêneros – Bothrops e Botrocophias; Crotalus (cascavel); Lachesis (surucucu-pico-de-jaca); Micrurus e Leptomicrurus (coral-verdadeira).
O envenenamento ocorre quando a serpente consegue injetar o conteúdo de suas glândulas venenosas, o que nem sempre ocorre já que algumas espécies de serpentes não possuem presas, mas quando as possuem, encontram localizadas na porção posterior da boca, o que dificulta a injeção de veneno ou toxina. Em 2015 foram registrados mais de 24 mil casos de ofidismo no Brasil, sendo que nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste apresentaram mais de cinco mil ocorrências, contra pouco mais de 2 mil casos ocorridos nas regiões Sul e Centro-Oeste. (veja tabela aqui. Fonte: Portal Saúde – Casos de ofidismo entre 2000 e 2001).
Mulher na ciência ainda é um tabu – Um estudo realizado pela pesquisadora Jacqueline Leta, professora-adjunta do Departamento de Bioquímica Médica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordena o Programa de Educação, Gestão e Difusão, revela que apesar do crescimento da participação de mulheres nas atividades de C&T, as chances de sucesso e reconhecimento na carreira ainda são reduzidas. A concessão das bolsas de produtividade, das mais de 7 mil bolsas concedidas, apenas 32% foram direcionadas às mulheres em 2001 e 2002, e, no que se referia a participação das mulheres em cargos administrativos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a maior universidade do sistema federal, apenas 23 mulheres, enquanto que as outras vagas eram ocupadas por 73 homens. Os dados indicam que as mulheres representavam em 2003, 43,7% do total de docentes da universidade. No entanto, elas ocupavam somente 24% dos cargos administrativos da instituição. Nem mesmo nos centros onde elas eram maioria, como no Centro de Filosofia e Ciências Humanas e no Centro de Letras e Artes, o quadro se apresentou diferente.
Um estudo da Universidade de Washington apresenta dados mais recentes do panorama da publicação científica. No Japão, por exemplo, as mulheres compunham apenas 11,1% da força de trabalho acadêmica do país em 2004, enquanto Portugal apresentava uma taxa de 40%, segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). No Brasil, a situação é um pouco melhor, em comparação com outros países, já que, segundo Jacqueline Leta, a entrada de mulheres é cada vez maior em todos os níveis acadêmicos.
Dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostraram que as mulheres ampliaram seu espaço na pesquisa científica, mas esse crescimento seria mais lento no topo da carreira. Em 2010, elas alcançaram a maioria entre estudantes de doutorado no Brasil, com cerca de 55% do total – em 2000 eram 49%. Já em número de pesquisadores, respondiam pela metade do contingente brasileiro. Entre os líderes de grupos de pesquisa, as brasileiras também estavam conquistando mais espaço: eram 45% do total de líderes em 2010, e 39% em 2000. No entanto, os homens recebem mais bolsas de produtividade do CNPq do que as mulheres. (Fonte: Revista Pesquisa/Fapesb – Territórios Femininos)
Em 2005, o CNPq, que tem como papel fomentar a pesquisa científica e tecnológica e incentivar a formação de pesquisadores brasileiros, criou o Programa Mulher e Ciência, que tem como objetivo, estimular a produção científica e a reflexão acerca das relações de gênero, mulheres e feminismos no país e promover a participação das mulheres no campo das ciências e carreiras acadêmicas, uma tentativa de diminuir as diferenças de gênero ainda existentes no campo da ciência.
A pesquisadora Rejâne Lira salientou que a ciência ainda é um campo masculino, e para uma mulher trabalhar com animais peçonhentos não é tarefa das mais fáceis. “O risco de ser picada por esses animais não é nem de longe, maior do que o medo de sofrer violência sexual em campo. Felizmente, nunca ocorreu comigo nem com a minha equipe e nem de viajar sozinha tanto no Brasil, quanto na África, na Índia ou Papua Nova Guiné. Um dia me perguntaram se tinha perdido o medo e eu respondi que não, mas aprendi a controlá-lo. Mais do que isso, aprendi a colocar a minha humanidade à frente do meu medo”. Rejâne explica que se apoiou nos exemplos que teve de mulheres fortes na família, como a mãe, as irmãs e a filha, além das orientadoras Tania Brazil (IC) e Júlia Franceschi (doutorado), e de tantas outras colegas que também trabalham na área.
Uma trajetória de sucesso – A trajetória na ciência da antes estudante do Bacharelado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal da Bahia, Rejane Lira, começou aos 18 anos, com a participação na criação do Noap. Aos 22 anos (1990), concluiu o curso, quando ganhou 2 prêmios como jovem cientista da UFBA. Logo depois fez o aperfeiçoamento no Natural History Museum, em Londres, na Inglaterra (1991), o que, segundo ela, mudou completamente a sua vida e ampliou a forma de ver a ciência. No mesmo ano, fez a especialização em Venenos Animais pelo Instituto Butantan, em São Paulo, o que representou para ela “uma experiência incrível de imersão na maior instituição do país na área dos animais peçonhentos”, ressaltou.
Já professora da UFBA, Lira concluiu o mestrado em Saúde Coletiva pela UFBA, em 1996, doutorado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, em 2001, pós-doutorado no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, Portugal (2007-2008 e 2015), pós-doutorado na The University of Melbourne, Austrália (2015-2016). Com o objetivo de conhecer a fauna de animais peçonhentos e a problemática dos acidentes ao nível mundial realizou visitas técnicas ao Instituto Pasteur, Benin (2015); Instituto Pasteur, Costa do Marfim (2015); Em 2015 realizou o aperfeiçoamento no Muséum d´Histoire Naturelle, Paris, França e University of Adelaide, Austrália (2016). No mesmo ano realizou ainda, a visita técnica ao Charles Campbell Toxinology Centre, Papua Nova Guiné, Institulo Clodomiro Picado, Costa Rica, Madras Crocodile Bank Trust and Centre for Herpetology e Little Flower Hospital, ambos na Índia.
“Minha contribuição para a ciência se refere à formação de cerca de 270 estudantes e profissionais, a participação em 64 projetos de pesquisa e extensão, produção de quase uma centena de materiais didáticos e de divulgação científica (vídeos, jogos, jornais, revistas, dentre outros) e a publicação de 77 artigos e livros. Destaco aqui minha participação como editora-chefe da Revisa Jovens Cientistas de divulgação científica com e para jovens, um compromisso social da Universidade”, ressaltou.
Atualmente é professora associada 4 da UFBA, desde 1992, coordenadora do Núcleo de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia (NOAP/UFBA), desde 1997, e é curadora da Coleção Herpetológica do Museu de História Natural da Bahia (MHNBA/UFBA), desde 2013. É avaliadora de cursos de graduação e avaliadora institucional do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES/MEC), ex-coordenadora do PIBID/CAPES de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFBA (2010-2014); vice-coordenadora (2010-2012) e coordenadora (2014-2016) da Rede Vital para o Brasil – Rede Nacional de Informação, Diálogo e Cooperação Acerca dos Animais Peçonhentos; editora-chefe da revista Jovens Cientistas de Divulgação Científica (ISSN 2318-9770); bolsista do CNPq em Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora, desde 2014 e voluntária da Organização das Nações Unidas/ONU Internacional, desde 2014.
Definitivamente, a pesquisadora e doutora Rejâne Lira é um dos raros exemplos da atuação da mulher na Ciência Brasileira. Que a sua trajetória inspire outras mulheres a conquistar o seu espaço na história da ciência.
*Estudante do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura