No fundo do coração, eu sabia – talvez essa fosse a única coisa que meu coração sabia naquela época – que assim que eu tivesse dormido o suficiente ficaria bem. Eu me renovaria, renasceria. Seria uma pessoa totalmente nova, cada uma das minhas células se regeneraria a tal ponto que as antigas pareceriam memórias distantes encobertas pela névoa
POR JÔNATAS PEREIRA*
jonataspereiradonascimento@gmail.com
Há algo de comovente na frase narrada pela protagonista do romance Meu ano de descanso e relaxamento (Todavia, 2019), da norte-americana Ottessa Moshfegh. Ela acredita firmemente que se passar um ano inteiro dormindo, hibernando dentro de casa, ela esquecerá as lembranças doídas, se alienará do mundo e ficará bem.
Apesar do método não convencional, ela não está de todo errada. Dormir é o único comportamento que nos dá a chance de restituir nosso organismo, de reparar tanto a nossa saúde física quanto nossa saúde emocional e mental, permitindo que acordemos renovados para um novo dia. O equívoco da personagem está em achar que abusando de um coquetel de remédios ela irá garantir um sono reparador que traga serenidade e relaxamento para a sua vida.
Quando fazemos o uso de medicamentos que induzem o sono, principalmente quando não são prescritos por orientação médica, podemos nos tornar dependentes deles. E com isso, deixamos de cumprir certos estágios do sono.
Durante a noite, o cérebro humano passa por duas fases do sono: sono sem movimentos oculares rápidos (NREM), denominado de estágios NREM 1 a 3, de profundidade crescente e o sono com movimentos oculares rápidos (REM), descrito como o estágio dos sonhos.
A cientista e professora do curso de medicina da Universidade do Vale do São Francisco (UNIVASF), Bruna Del Vechio Koike, explica que, quando ficamos muito tempo em sono NREM 2, os estágios de sono NREM 3 e REM são reduzidos, alterando toda a arquitetura do sono.
“A arquitetura alterada do sono não é um sono reparador. Podemos dizer que é uma restauração falsa”. Pois, mesmo tendo realizado nossas horas de sono, ainda assim, não passamos por todos os seus estágios, diz a pesquisadora. A não realização de todos os estágios do sono nos impede de alcançarmos uma série de benefícios noturnos que são garantidores de saúde.
O pesquisador britânico Matthew Walker, autor do livro “Por que nós dormirmos?”, esclarece que “cada estágio — o sono NREM leve, o sono NREM profundo e o sono REM — oferece benefícios cerebrais distintos em momentos distintos da noite. Desse modo, um tipo não é mais importante do que outro. A perda de qualquer um deles causa dano cerebral” O neurocientista explica que o sono NREM é essencial para o nosso aprendizado e memória. Dormir antes do aprendizado restaura a nossa capacidade de aprender, preparando o cérebro para gravar novas memórias. Após o aprendizado, o sono impede o esquecimento, protegendo informações recém-adquiridas, num processo chamado de consolidação.
Na fase de sono REM, onde acontecem os sonhos mais vívidos, aqueles com direito a narrativa cinematográfica, o sono onírico nos oferece uma importante terapia noturna. Para Walker, é o sono onírico que alivia nossas lembranças dolorosas, permitindo que possamos reviver memórias difíceis sem a bagagem dramática que de outra forma nos deixaria paralisados.
É graças à atuação do sono REM como um decodificador de experiências que acordamos pela manhã e conseguimos identificar com precisão expressões faciais. É ele que calibra as regiões do cérebro que leem e decodificam o valor e significado de sinais emocionais, principalmente aqueles que são manifestados no rosto, diz Walker.
Outra função que o sono REM e o ato de sonhar oferecem é o processamento inteligente da informação que inspira a criatividade e a solução de problemas. O sono REM nos ajuda a encontrar conexões não óbvias entre o conjunto de informações e a processá-las de maneira mais fluida.
Foi através de um sonho que Dmitri Mendeleiev – o criador da tabela periódica – conseguiu organizar todos os elementos químicos conhecidos. Só depois que se rendeu a uma noite de sono que o cérebro do químico russo foi capaz de gerar associações que durante à luz do dia não era capaz de fazer. A sugestão de Walker é que não fiquemos acordados sobre um problema, mas durmamos sobre ele.
Além de todos os benefícios citados, o sono ainda calibra os nossos circuitos emocionais, dando-nos a liberdade de enfrentar os desafios sociais e psicológicos do dia com autocontrole – reabastece o nosso sistema imune, atua na regulação do apetite e associa-se à boa forma do sistema cardiovascular.
No fim das contas, a maioria de nós não precisa se dopar com remédios para alcançar um estado de descanso e relaxamento. Só precisamos respeitar o nosso ritmo circadiano e aproveitar a abundância de benefícios noturnos que o sono nos proporciona.
* Estudante de Jornalismo em Multimeios/ Reportagem especial para Agência MultiCiência.