Segundo pesquisador da UFBA, aranhas podem estender seu processo cognitivo para as teias
GIOVANNA HEMERLY E REBECA ALMEIDA*
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Você já parou para pensar sobre como é o processo cognitivo das aranhas? Segundo o biólogo e professor da Universidade Federal da Bahia, Hilton Japyassú, as aranhas são capazes de pensar a partir de suas teias. Ou seja, a teia construída pela própria aranha assume a função de mídia pela qual ela pode obter as informações que precisa para fazer sua leitura do mundo e, assim, realizar suas ações com base nessas leituras.
Como aconteceu? - A descoberta aconteceu na época em que o biólogo trabalhava no Instituto Butantan, em São Paulo. Carolina Garcia, uma de suas alunas, acidentalmente rompeu um dos fios da teia da espécie Zozis geniculata onde estava localizado um inseto que serviria de alimento para a aranha, deixando o mesmo pendurado pelo fio. Ao observar a reação do aracnídeo, a aluna percebeu algo peculiar: a aranha realizou um movimento de captura incomum a espécie. O movimento semelhante ao de uma pescaria para capturar o inseto não seria uma novidade para algumas outras espécies de aranhas que constroem suas teias de forma irregular, como as pertencentes à família do teridídeos. Mas, para a Zozis geniculata, que constrói sua teia em formato circular, esse tipo de comportamento não é típico.
A partir desse evento, o biólogo passou a realizar o experimento com outras espécies de aranhas e, através de suas pesquisas, Japyassú passou a desenvolver a ideia de “cognição estendida”. Segundo o pesquisador, ao invés de agir e reagir apenas com base no sistema nervoso central, a aranha também processa informações que chegam até ela através de meios externos, o que torna-se uma vantagem diante da capacidade limitada da visão dos aracnídeos, que são praticamente cegos. Além disso, a teia seria também uma forma da própria aranha acessar a memória do seu passado, já que através dos diferentes aspectos do próprio fio da teia, que se alteram conforme o passar do tempo, ela é capaz de entender que aquele é um caminho já percorrido.
Ferramentas de cognição - Hilton Japyassú, que realiza pesquisas que envolvem psicologia experimental, comportamento animal (etologia) e evolução da cognição, afirma que ao pensar com os objetos construídos, seja uma teia de aranha, um túnel escavado por um roedor, um ninho de um pássaro ou até mesmo ferramentas construídas por primatas, esses animais modificam a forma como as pressões seletivas afetam sua sobrevivência. Sendo assim, ao pensar a partir desses objetos, as espécies, além de ampliar sua aptidão, e por tanto, o seu próprio sistema cognitivo, estão também superando obstáculos naturais e desenvolvendo comportamentos que influenciam o seu processo de seleção natural. “Animais muito pequenos, por exemplo, que têm dessa forma um cérebro também muito pequeno, estando restritos em termos de capacidade cognitiva, quando exportam cognição para fora do corpo, ampliam essa capacidade que passa a ser menos restrita”, explica o pesquisador.
No entanto, nem todos os objetos construídos pelos animais são necessariamente uma ferramenta cognitiva, pois nem sempre eles auxiliam exatamente no processamento das informações. Mas ainda assim os objetos não cognitivos possuem relevância na evolução das espécies, já que atuam no processo de seleção natural. “Nem toda a ferramenta vai ser uma ferramenta cognitiva, no sentido que ela vai processar informações para você. Mas ao usar ferramentas, mesmo que comuns, isso já amplia a capacidade de diminuir as pressões seletivas que estão atuando sobre a espécie”, afirma Japyassú.
Um comparativo utilizado pelo pesquisador para explicar a diferença da ferramenta cognitiva das demais é o uso da bengala simples por pessoas com dificuldades de locomoção. Ela é uma extensão do homem, mas não é um artefato cognitivo por não ter a função de processar informações distintas e relevantes. Ela apenas dá sustentação para que haja uma locomoção. Mas caso a bengala pudesse ser moldada e se mexesse para ressaltar diferentes tipos de informações, ela poderia ser considerada uma ferramenta de cognição estendida.
O pensamento animal - Atualmente, a capacidade de pensamento dos animais é um consenso entre a maioria dos cientistas. Diversos experimentos já demonstraram que animais não-humanos também são capazes de planejar, antecipar o que está por vir e tomar decisões acertadas com base em processamento de informações. Em alguns casos, existem espécies que podem deduzir o pensamento de outro indivíduo do mesmo grupo social, como no caso dos corvos que são capazes até de “teorizar” o que se passa na mente de outros corvídeos.
No entanto, nem sempre foi assim. Japyassú explica que as ideias do filósofo francês René Descartes, importantes durante a revolução científica do século XVI, influenciaram por muito tempo a concepção de que os animais não-humanos não possuíam capacidades cognitivas. “Certamente os animais pensam. Essa era uma dúvida que existia, desde de a época de Descartes, quando ele dizia que o corpo é uma máquina e a mente é onde se dá o pensamento, o cogito cartesiano. Mas do ponto de vista dele só os seres humanos tinham esse tipo de pensamento”, afirma o biólogo.
Racionalismo cartesiano - René Descartes foi filósofo e cientista francês, conhecido pelo pensamento cartesiano e por sua contribuição para o surgimento da Filosofia Moderna. Descartes era adepto do racionalismo, corrente filosófica que considera ser a razão a única forma de se ter conhecimento do mundo, buscando as respostas através do método científico.
Enquanto desenvolvia ideias acerca do pensamento, que resultaria em sua célebre frase “penso, logo existo”, Descartes passou a considerar que apenas o ser humano era capaz de realizar processos cognitivos. As outras espécies seriam somente máquinas agindo de acordo com impulsos meramente instintivos, ideia que ficou conhecida posteriormente como “doutrina dos animais-máquina”.
Além da filosofia racionalista e mecanicista, as ideias do filósofo francês também recebia influência do método de pensamento escolástico, que associava a fé cristã ao pensamento racional. Sendo assim, Descartes acreditava no princípio da “dualidade substâncial”, na qual separava o corpo (substância extensa) da alma (substância pensante) em duas concepções distintas. No livro, “Consciência e Matéria”, o autor Jonas Gonçalves Coelho, mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade de Campinas, afirma que, de acordo com a filosofia de Descartes, havia o receio em considerar que os animais pensam, pois implicaria que os animais possuem alma, o que levantaria discussões acerca da imortalidade, liberdade e responsabilidade moral das espécies não-humanas.
REFERÊNCIAS
COELHO, Jonas Gonçalves. Consciência e matéria: o dualismo de Bergson. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. (Coleção PROPG Digital – UNESP). ISBN 9788579831089. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/110759>.
DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Escala, 2009. ISBN: 8575564056
*Estudantes do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA